Evna Moura é do Pará e vê como exploração cultural boa parte dos registros feitos por artistas de fora
Por diversas vezes, a região amazônica, seu povo e sua cultura foram retratados de forma superficial e romantizada por fotógrafos, cineastas e pintores, o que gerou um apagamento da identidade do nortista.
“Muitas vezes confundem a nossa cultura, a nossa comida e o nosso jeito de falar com os do Nordeste. As nossas tradições não são respeitadas e reconhecidas”, diz a fotógrafa paraense Evna Moura, de 33 anos, que está expondo seu trabalho no Armazém do Campo, que fica na Alameda Eduardo Prado, 499, região central da capital paulista.
Evna começou a fotografar por conta das aulas em uma ONG em Belém. Suas primeiras exposições têm como foco as diversas comunidades e povos que formam a população amazônica.
A artista destina 30% da renda das vendas de fotografias para ONGs e projetos sociais da Amazônia. Sua obra também retrata as desigualdades da região, que correm o risco de agravamento devido à política entreguista e anti-ambientalista do governo Jair Bolsonaro.
A condição de vida cada vez mais precária para grande parte da população da Amazônia é o foco do dossiê “Amazônia Brasileira: A Pobreza do Homem como resultado da Riqueza da Terra”, do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, que é ilustrado com fotos de Evna Moura. Confira trechos da entrevista com a fotógrafa.
Brasil de Fato: Por que você começou a fotografar?
Evna Moura: Venho da ilha do Marajó, de uma cidade chamada Cachoeira do Arari. Sou fruto do projeto social de fotografia e desenho Curro Velho, da Fundação Cultural Tancredo Neves, e isso foi traçando o meu interesse pela fotografia. Depois fui dar aula na mesma instituição e fiz faculdade de Artes Visuais em Belém. Fora as minhas experiências pessoais de produção artística, eu fui me envolvendo com arte-educação. Isso foi traçando o meu currículo como profissional e a minha identidade como artista. Fui descobrindo o que eu queria e o meu interesse em que tipo de fotografia eu queria fazer.
Como foram as suas primeiras exposições?
O começo foi com a identidade amazônica, com comunidades ribeirinhas. Eu vinha de uma universidade pública em Belém, mas, como eu era do interior, havia uma proximidade com essas comunidades. Fotografei a comunidade do Cumbu, que é uma ilha próxima a Belém, durante quatro anos. Eu sempre tive interesse por antropologia visual. Apesar de Cumbu ficar a apenas 15 minutos de Belém, que é a maior cidade do Estado, a comunidade tem um modo de vida muito rústico, que vem da venda do açaí. Depois trabalhei, para o meu mestrado, na ilha de Cotijuba. Muitas das imagens escolhidas para ilustrar o dossiê do Instituto Tricontinental são desse início de processo criativo.
Como se deu a mudança de estética na sua fotografia?
Tem uma relação de me reconhecer como mulher amazônica, esse fortalecimento de identidade. Eu comecei a sair do Pará e a ver a importância e a valorização da cultura local de outras regiões, o que não tem na região Norte. Por exemplo, o Nordeste é muito próximo da discussão do que é a religião afro-brasileira, o que é a identidade negra, e isso é muito fortalecido e é uma coisa conquistada. No Norte não tem essa proximidade. Por isso, eu vim fazer mestrado em São Paulo, para falar dessas questões de especificidades da região Norte. O Brasil não conhece o Brasil. Não tem como um país ser forte social e politicamente se ele não se conhece.
Como é para você fazer esse trabalho de aproximação das culturas?
É preciso lutar por esse espaço de fala aqui. Não é fácil se deslocar de lá e vir para cá. Tem uma diferença cultural, a gente se sente um pouco deslocado, mas estamos aqui, eu e outros artistas, por esse lugar de fala.
Quais os impactos da eleição do Bolsonaro na política e na economia da região amazônica?
Tem vários problemas com a mudança de governo, apesar de muita gente ter votado nele por falta de informação. Um impacto que já é visível acontece nos projetos sociais, que estão acabando. Se antes tinha dez projetos em cada comunidade, hoje tem só um. Isso impacta na comunidade toda, porque são lugares onde não tem lazer, não tem cultura e os jovens estão usando drogas. As comunidades estão virando rotas de tráfico. Os adolescentes estão ficando viciados em cocaína, que é uma coisa que não é natural da região.
Teve algum impacto ambiental?
A agricultura familiar perdeu todo o incentivo. As comunidades estão parando de plantar para ir trabalhar no comércio, nas cidades. Isso tem um impacto direto na saúde. Mudou o tipo de alimentação, e as pessoas estão começando a ter problema com diabetes, porque não tem mais a produção local e estão consumindo mais produtos superprocessados.
Como é o seu engajamento cultural e político?
Há uns cinco anos, eu faço parte de um coletivo de artistas chamado Nós de Aruanda, que são artistas de terreiro do Pará. Estou em uma exposição em Montevidéu, no Uruguai, da Associação FotoAtiva de Belém, que é uma referência da fotografia da Amazônia e existe há mais de 30 anos. Hoje o Pará é um dos principais centros de fotografia no Brasil.
Te incomoda o jeito como artistas de fora retratam a região amazônica?
Eu vejo que tem uma visão totalmente rasa, que as pessoas se apegam muito ao que aparece na televisão, parece que é só violência e disputa territorial. Óbvio que tem isso, mas não é só isso. Elas não conhecem o outro lado, que é a cultura. Eu sinto que tem uma visão de que a nossa cultura é a mesma do Nordeste. Isso passa por uma questão de identidade. A nossa passa por ancestralidade indígena. Uma coisa que me incomoda na visão dos artistas de fora é confundir o místico da Amazônia, a pajelança que está morrendo, com algo menor. Dizem que é engraçado, que é pouco importante. Na Bahia, por exemplo, já foi conquistado um respeito para as questões de religiosidade.
Você acha que estão explorando a imagem da Amazônia nessas exposições de artistas de fora?
Na real, é interessante ter a presença de outras pessoas indo lá, até porque estamos trabalhando por essa proximidade, porém é importante trabalhar a forma de aproximação com essas comunidades, é uma questão básica da antropologia. Nosso trabalho é dificultado por isso. As comunidades são desconfiadas porque já foram exploradas. As pessoas vão lá, ficam na casa deles, fazem as fotos e vão embora. Eles nem sabem para onde foi aquilo e não têm retorno financeiro nenhum. São comunidades que vivem em situação de muita pobreza. Muitos vão lá para fazer só a exploração cultural.
E como é a sua relação com as comunidades onde você fotografa?
Todas as fotos que eu vendo com uma qualidade maior, separo 30% para a comunidade, para a ONG que me acolheu. Nas obras do meu mestrado vai 30% para a ONG de mulheres da Amazônia.