Para Patricia Feeney, diretora executiva da ONG britânica Rights and Accountability in Development e professora da Universidade de Oxford, o segundo Fórum da ONU sobre Empresas e Direitos Humanos corre sério risco de apresentar mais do mesmo e frustrar as organizações que ainda apostam em um espaço internacional de diálogo sobre o tema. A agenda do evento, afirma, é tão cuidadosamente controlada como uma reunião da Suprema Assembleia do Povo da Coréia do Norte. O evento acontece entre os dias 2 e 4/12 em Genebra, na Suíça.
Não lhe falta experiência para declarar a sentença: Feeney é também fundadora da OECD Watch, uma rede que monitora a implementação dos princípios orientadores para empresas multinacionais da organização. “As vítimas foram apagadas da foto e é frustrante ver que, aparentemente, o Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos é conivente com isso”, afirmou em entrevista à Conectas. Para ela, é preciso que o debate tenha sempre em conta a criação de mecanismos de responsabilização e de reparação às vítimas de violações. “As ONGs deveriam expor as limitações do pragmatismo e defender uma aproximação genuinamente de direitos humanos.” Veja a entrevista completa:
1. Na próxima semana ocorrerá o Segundo Fórum de Empresas e Direitos Humanos da ONU. Qual a sua avaliação da primeira edição?
O primeiro fórum foi uma experiência surreal. De acordo com o site do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) o evento foi o “maior encontro global sobre empresas e direitos humanos até hoje”. O que estava completamente ausente do debate, no entanto, era um foco em direitos humanos. O evento foi dominado pelas vozes da indústria ou por seus principais prepostos, as consultorias para negócios, que crescem cada vez mais em número e apresentaram-se como “experts” no assunto de empresas e direitos humanos. Apenas uma sessão plenária tratou das vítimas de abusos de direitos humanos por empresas. A mensagem do Fórum pareceu ser a de que os direitos humanos podem ser “gerenciáveis. Os discursos oficiais enalteceram as “áreas promissoras para consenso e cooperação entre as empresas, a sociedade civil, governos e instituições internacionais”, sendo que tais áreas estariam cegas às críticas das ONGs de direitos humanos.
2. O que você acredita que se pode esperar da segunda edição?
O Segundo Fórum será ainda maior e é bastante provável que reproduza o mesmo modelo da primeira edição. A agenda é tão bem controlada como uma reunião da Assembleia Popular Suprema da Coreia do Norte. Enquanto que ONGs têm alguns espaços para exposições, elas geralmente se veem encurraladas por escudeiros do setor corporativo ou lhes são reservados apenas os eventos paralelos. Como resultado, o Fórum pode ser ainda menos aberto à visão daqueles que representam as vítimas e as comunidades que têm seus direitos afetados pelas corporações.
As palavras de ordem de 2013 são “inovação, boas práticas e alinhamento”. Um razoável número de sessões serão devotadas a metodologias de treinamento dos Princípios Orientadores [de Empresas e Direitos Humanos da ONU] e ferramentas para auxiliar o setor privado a conduzir processos de auditoria (due dilligence) em direitos humanos e a elaborar relatórios. Os proponentes dos Princípios Orientadores parecem desesperados em assegurar que não haverá desvios nem críticas a essa abordagem. Convenientemente aos seus interesses, eles fazem uma confusão entre os Princípios Orientadores (que são, afinal, apenas uma ferramenta para a implementação do Marco “Proteger, Respeitar e Reparar” da ONU) e os padrões internacionais fundamentais dos direitos humanos. Na realidade, os Princípios Orientadores servem exatamente para assegurar o cumprimento desses padrões fundamentais. Faz pouco sentido, portanto, propor o alinhamento de um conjunto limitado de ferramentas. O Fórum está sendo usado para promover uma resposta administrativa às violações de direitos humanos decorrentes da atuação das empresas privadas, que são reduzidas a um problema comunicacional: “knowing and showing”. Isso tem pouco a ver com uma abordagem de direitos humanos genuína – as empresas estão definitivamente no comando da situação. As vítimas dos abusos das corporações têm sido apagadas da foto e é decepcionante ver que o ACNUDH está sendo conivente com essa realidade.
Em uma ação particularmente insensível, uma dos poucos espaços para falas foi entregue à Barrick Gold, uma mineradora envolvida em um controverso programa de reparação a mulheres estupradas por seus próprios agentes de segurança na mina Porgera, na Papua-Nova Guiné. O ACNUDH deveria ter o cuidado de não permitir que esse evento seja capturado por empresas que desejam melhorar sua reputação, do contrário o Fórum pode acabar se transformando em uma versão barata de Davos.
3. Você acredita que a proposta do Equador de uma norma vinculante é viável no curto prazo? Quaissuas ponderações sobre essa proposta?
A proposta do Equador de pautar os trabalhos pela discussão de um instrumento internacional vinculante para violações de direitos humanos cometidas por empresas é bem-vinda. É importante na medida em que evidencia a preocupação compartilhada de ONGs e governos sobre a falta de responsabilização das empresas por violações graves de direitos humanos. Mas qualquer iniciativa no sentido de desenvolver uma convenção internacional enfrentará bastante oposição. No entanto, a situação atual não é sustentável e talvez, se levada a cabo de forma cuidadosa, a proposta pode desembocar em uma convenção com um escopo mais limitado. O ex-Representante Especial do Secretário Geral [para Empresas e Direitos Humanos, John Ruggie] mencionou a “aplicabilidade, às empresas, de padrões internacionais que proíbem graves violações de direitos humanos e que potencialmente constituam crimes internacionais” como uma área que “requer uma imediata atenção da comunidade internacional”. Mesmo o titubeante Grupo de Trabalho da ONU sobre Empresas e Direitos Humanos já indicou que está apoiando uma iniciativa do ACNUDH para explorar formas de se chegar a uma medida global mais coerente para a responsabilização das empresas nos casos de graves abusos de direitos humanos. As ONGs devem enxergar tais oportunidades como motivação para seguir adiante com as reivindicações.
4. O que exatamente ficou perdido quando foi deixado de lado o Rascunho de Normas para Empresas e Direitos Humanos preparado pela antiga Subcomissão da ONU e se aprovaram os Princípios Orientadores (em 2011)?
Logo no início do seu mandato, o ex-Representante Geral encerrou quaisquer debates sobe as Normas, insistindo que elas seriam tão cheias de falhas que nenhuma parte poderia ser salva. No entanto, como muitos observaram à época dos fatos, essa rejeição completa de todos os aspectos das Normas fazia pouco sentido pois em algumas partes o documento simplesmente reafirmava princípios legais que já eram aplicáveis às empresas com relação às suas obrigações pelos direitos humanos.
A principal diferença das Normas para os Princípios Orientadores é que aquelas previam alguns mecanismos nacionais e internacionais para o cumprimento de suas regras, uma anátema no mundo corporativo. Após uma turbulenta consulta regional na Argentina em 2009 (em que as ONGs tentaram sem sucesso instar o ex-Representante Especial a estabelecer um mecanismo de consulta sistemática a pessoas e comunidades afetadas), o mesmo declarou em comunicação trocada com a Rede de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (ESCR Net) que as Normas poderiam ter sobrevivido se tivessem se limitado a traduzir princípios amplos em práticas e ferramentas administrativas. Há uma suspeita forte de que o setor corporativo teria sido persuadido a endossar amplamente os Princípios Orientadores em retorno a uma promessa cuja garantia seria a ausência de qualquer proposta no sentido de uma maior regulação.
5. Da sua experiência com responsabilidade corporativa em casos no Zâmbia e na República Democrática do Congo (RDC), quais são os principais obstáculos para o acesso à justiça?
Os obstáculos para o acesso à justiça são semelhantes ao redor do mundo mas em países onde não há “rule of law” o problema é amplificado, especialmente naqueles afetados por conflitos. O caso Kilwa é o único na RDC em que uma empresa e seus empregados foram indiciados por crimes internacionais. O caso refere-se a um incidente militar ocorrido em Outubro de 2004 em que um número de combatentes e civis foram mortos no contexto de uma taque pelas forças do governo para recuperar a cidade de Kilwa das mãos das forças rebeldes.
Anvil Mining Congo, uma subsidiária da mineradora canadense/australiana Anvil Mining, foi acusada de ter auxiliado um suposto massacre de civis pelo fornecimento de apoio logístico e transporte. A companhia Anvil Mining afirmou que os seus equipamentos e meios transporte foram requisitados pelas autoridades e que a empresa não tinha margem para ir contra tais ordens. Em 2007, uma corte militar absolveu todos os acusados, incluindo a companhia e três funcionários. Em todos os estágios, a corte tentava rejeitar ou descreditar as provas apresentadas pelas vítimas e suas famílias. Muitas testemunhas estiveram sob forte pressão para não prestar depoimento e seus advogados eram impedidos de participar das audiências em Kilwa.
Em novembro de 2010, famílias das vítimas congolesas ajuizaram uma ação coletiva contra a empresa Anvil Mining, a controladora canadense. Em abril de 2011, a Corte Superior do Quebec determinou que a ação poderia seguir para a fase de admissibilidade. No entanto, a Corte de Apelações do Quebec, apesar de declarar-se solidária aos obstáculos encontrados pelas vítimas que buscavam justiça, reformou a decisão sobre a jurisdição e a Suprema Corte do Canadá indeferiu o pedido de autorização para a interposição do recurso. Assim, após nove anos de sofrimento as famílias viram-se diante da obrigação de começar tudo novamente em outra jurisdição de modo a superar as barreiras procedimentais. Caso de gravidade dessa magnitude não deveriam ser tratados por mecanismos não judiciais mas no presente eles encontram-se em um limbo jurídico.
A promoção de mecanismos operacionais por setor da indústria ou no nível da empresa para reparação de vítimas, fomentada pelos proponentes dos Princípios Orientadores, deu um ímpeto imenso às iniciativas de natureza privada. Os grupos da sociedade civil têm alertado para a desproporcional assimetria de poderes entre as empresas e as comunidades afetadas como um fator agravante. Os critérios de efetividade dos Princípios Orientadores para esses mecanismos são inócuos, e não representam uma salvaguarda verdadeira para assegurar que seu funcionamento se dê de maneira igualitária e imparcial. Na realidade tais mecanismos de denúncias – desprovidos de ferramentas de monitoramento – são bastante propensos a interferências e manipulações por aqueles que detêm mais poderes.
6. O que fazer para superar tais obstáculos?
Atualmente parece haver duas abordagens sobre empresas em direitos humanos em conflito direto: uma poderia ser chamada de “consequencialista” (defendida por John Ruggie), voltada para “resultados práticos”, e a outra seria mais principiológica ou “deôntica”. A abordagem baseada em princípios pressupõe a responsabilização porque tortura, execuções extrajudiciais e outras violações de direitos humanos crescem em um ambiente de impunidade. Sem responsabilização, não há contenção dos abusos e nenhuma expectativa real de reparação às vítimas. A responsabilização é essencial para a construção de padrões normativos, que deve ser baseada em investigações meticulosas de modo que os direitos humanos envolvidos sejam identificados e compreendidos de maneira apropriada e que as lições sejam efetivamente aprendidas. A ampla disseminação dos Princípios Orientadores para Empresas e Direitos Humanos da ONU tem acelerado a tendência visível de privatização dos direitos humanos. Assim como os governos têm cada vez mais terceirizado e privatizado funções públicas para agências e atores privados, essa tendência também está se tornando uma regra no que tange aos direitos humanos. Essa realidade impõe um desafio imenso ao movimento dos direitos humanos.
Como a Human Rights Watch tem afirmado, atingimos o limite do atual modelo para lidar com problemas de direitos humanos relacionados à atuação das empresas, basicamente desprovido de ferramentas para o cumprimento das normas e responsabilização. As ONGs deveriam expor as limitações do pragmatismo e defender uma aproximação genuinamente de direitos humanos – uma que trate as vítimas com compaixão e que lhes ofereça remédios legais efetivos contra abusos corporativos. Já está mais do que na hora de mudar a atual realidade.
Fonte: Conectas.