Fogos de artifício: Os olhos do menino. Por Urda Alice Klueger.

Foto: Juan Karita/AP

 (Para Evo Morales Ayma)

Aquilo era tão fascinante que eu nem tinha coragem de espiar os fogos de artifício que cobriam a praça como se fosse noite de ano novo. Mal e mal dei uma espiadinha com o rabo dos olhos, só para ter certeza de que não me enganava, bobagem minha, pois não precisava me certificar de nada, era só olhar para o deslumbramento daqueles olhos de menino que espiavam para a maravilha!

Decerto um dia, nos longos anos da infância de pouca comida, ele tinha sonhado com coisas magníficas, como naquele ano em que só houve parco milho na mesa da sua casinha de adobe, de manhã, de tarde e de noite. Que  teria sido magnífico então? Talvez sonhasse com um pouco de leite, ou de  manteiga, quem sabe com um pedacinho de carne… talvez sonhasse com tais maravilhas não só para sua mesa de menino que tinha muita fome – talvez pensasse que tais maravilhas poderiam acontecer a todos os meninos das terras do seu campo, do seu cerro, quiçá de toda a sua província… Era muito pequeno e faminto o seu mundo, então, para que pudesse imaginar que talvez pudesse haver carne, e leite, e batatas nas mesas de todo o país…

Eu penso que ele não tinha, ainda, o entendimento do que era país…

Por fora, aquele menino cresceu em tamanho e sabedoria, e se agarrou a todas as oportunidades de aprender e de se alimentar, e criou dentro de si um coração enorme que passou a pensar em termos de país, e de sonhar em termos de país, e  de se maravilhar  com as possibilidades de fazer muitas coisas por cada pessoa, por cada mesa, por cada coisa do seu país, até que chegou um dia em que o país entendeu que aquele homem adulto poderia ser mesmo o mago de que precisava e, corajosamente, elevou-o autoridade  máxima, e ele foi sagrado em Tiauanaco como o Grande Chefe, e depois tomou posse do seu cargo também na Plaza de Armas, como tantos antes dele o tinham feito, no tempo em que sua gente era sacrificada por fome e maus-tratos até a morte nas minas de prata de Potosi, aos milhões, aos muitos milhões…

Aquele homem empunhou seu cetro ferreamente, e lutou contra todas as forcas que não aceitavam que um índio que um dia que passara tanta fome na infância, ou mesmo não o aceitavam simplesmente porque era um índio, pois  por mais de três séculos tinham dito ao invasor que índio sequer tinha alma – como entender um índio no poder agora, mandando no país inteiro? Pois aquele índio segurou seu cetro com tal força, sabedoria e habilidade que ninguém diria que um dia fora um menino que comera cascas de laranja jogadas pela janela de um ônibus que passava como se fosse uma iguaria preciosa, tamanha a sua fome, que muito mais gente se somou a gente que um dia já o elegera para presidente do país, e a sua segunda vitoria nacional foi estrondosa!

Eu estava lá, por horas e horas em pé naquela Plaza de Armas que se chama Murillo, espremida dentro de uma imensa multidão que o esperava, por tantas horas que os meus pés formigavam de dormência, mas enfim ele veio com o seu séquito, e era inegavelmente o séquito de um rei, e como um rei ele falou uma fala de concórdia e de bem para o seu país e a sua gente, e eu achei que era mesmo um rei adulto, como aqueles velhos reis das  historias infantis – mas então começaram os fogos de artifício, e ele fitou a beleza deles explodindo no céu, e então foi que pude ver, dentro dele, através dos seus olhos de adulto, os seus olhos de menino, e um menino inteiro que havia dentro dele, um menino maravilhado com a beleza daqueles fogos, e tanto o homem de fora quanto o menino de dentro sorriam de tanta beleza e encantamento, e pensei, por um momento, como alguém podia não entender que ele era o mago e o príncipe que era! Mas pensei só um pouquinho, pois a mim também os fogos me encantavam – só que não me virei para vê-los. Bastava-me olhá-los refletidos nos olhos daquele menino que estava por dentro do Príncipe, e se os fogos eram lindos, a maravilha dos olhos do menino o eram muito mais!

Os minutos se emendavam e o homem que tinha o menino por dentro sorria e  luzia os olhares de criança e de adulto, a ponto de eu já não saber quem ele era, se o adulto ou a criança –  só sabia que aquilo era uma das  coisas mais bonitas que eu já tinha presenciado na  minha vida!

Então, como que para me aclarar, o menino fez o que só meninos fazem quando vivem maravilhas: enquanto os fogos de artifício iam para o final, com naturalidade ele bocejou  como os meninos bocejam quando está na hora de ir dormir, e então meu encanto aumentou, pois me certifiquei que o menino de um dia sobrevivera dentro do Príncipe e estava ali, atento, para depois de um soninho de nada, acordar refeito e sonhar com a sua gente  todos os sonhos que ela merecia. Um dia talvez seus sonhos tivessem sido o de algumas batatas e de um pedacinho de carne – agora seus sonhos são enormes, de uma dignidade que esta transformando todo um país e o amor- próprio do seu povo.

Evo Mago, Evo menino, como valeu a pena vir até aqui te ver!

Cochabamba/Bolivia, 09 de dezembro de 2009.

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