A cidade de Florianópolis é vista como um lugar bastante conservador, e é. Principalmente na política. Apenas duas vezes provou a experiência de uma administração mais progressista. A primeira com Edson Andrino (PMDB – 1986 a 1988), logo após a ditadura militar, quando a população teve chance de participar dos projetos, começaram as eleições diretas nas escolas e foi criada uma política cultural com a Fundação Franklin Cascaes e Conselho de Cultura. Depois, com Sérgio Grando (Frente Popular/1993 a 1997), quando foi criado o orçamento participativo (iniciativa do vice, Afrânio Bopré, que era do PT), de ampla participação popular. Mas, logo depois, essa proposta foi derrotada pela Ângela Amin, do então PPB, hoje PP. Hoje, nem mesmo a vertiginosa migração que faz com que a cidade comporte gente de todos os lugares, mudou essa cara conservadora. Na última eleição, por exemplo, venceu o candidato que representa a oligarquia que domina esse lugar desde sempre.
Por outro lado, as gentes não são ignorantes no que diz respeito ao que querem. O resultado das urnas deu uma resposta muito clara: as pessoas querem uma cidade mais acolhedora, com menos cimento, mais jardins e preservação da natureza. E o candidato vencedor fez um uso muito eficaz desse desejo. Só que essa vontade de uma cidade mais “humana” não se cristalizou unicamente no voto dos que apostaram no candidato do PSD. Ela apareceu, surpreendente, nos 14% que votaram no candidato do PSOL, Elson Pereira, que pautou sua campanha na denúncia do processo de destruição da cidade, apontando propostas viáveis, e acabou fazendo muito mais votos do que se esperava.
No segundo turno, o recado da população foi ainda mais incisivo. Entre a velha oligarquia e o PMDB que entregou a cidade aos empreiteiros, as gentes decidiram dar passo atrás, na tentativa de barrar o processo de crescimento desordenado na cidade. Uma aposta da consciência ingênua, mas, ainda assim, uma aposta em outra proposta de desenvolvimento, embora seja bem provável que nela, os mais pobres continuem segregados. Como sempre acontece, os eleitores perderam a memória do que foram os governos do casal Amin em Florianópolis. Durante o mandato de Esperidião Amin e Bulcão Viana (1989 a 1993), a cidade viveu grandes e violentos despejos. Foi quando “limparam” a Via Expressa da presença dos pobres, quando as gentes das comunidades de Chico Mendes, Vila Aparecida, Monte Cristo tiveram de ocupar a prefeitura, Câmara de Vereadores e realizar tantas outras lutas para garantirem o direito de – apesar de serem empobrecidas – morarem na cidade em espaços nobres. Depois, nos dois mandatos de Angela Amin (1997 a 2005), os mais pobres também padeceram, principalmente os moradores de rua que tiveram o albergue Maria Rosa fechado, sofreram violências e alguns até foram misteriosamente assassinados. Isso sem falar da destruição da vida cultural que havia na Praça XV quando os artesãos foram removidos sob forte aparato policial e expulsos do lugar.
Assim, tendo como base o passado, é bem pouco provável que a situação mude. A cidade mais “humana” pode vir a ser mais humana só para alguns. Durante o processo eleitoral isso já ficou bem visível quando os candidatos ignoraram olimpicamente as demandas do movimento popular. Chamados para dois debates promovidos pelo movimento dos sem-teto no norte da ilha, os candidatos César, Gean e Angela não compareceram. Chamados para outro debate organizado pelos movimentos sociais, os três igualmente ignoraram. Era o sinal de que os mais pobres estavam definitivamente fora da agenda de qualquer um dos três que levasse a cidade. O que nos permite pensar que a pobreza continuará assim: fora da agenda.
Mas, como a vida é dialética, o povo excluído começa a se mexer. Das 64 áreas de periferia que a cidade tem, algumas já estão se levantando em luta, principalmente no quesito moradia. Comunidades como o Papaquara e Vila do Arvoredo, que ou já foram removidas ou estão em processo de remoção têm protagonizado atos, caminhadas, protestos e insistem em fazer ouvir suas vozes. Querem ter o direito de morar na ilha, em lugares bons, assim como os ricos migrantes de São Paulo e de outros lugares que aportam em Florianópolis todos os dias, com a diferença de trazerem as carteiras recheadas.
O golpe legislativo
E é justamente a questão da moradia que tem causado quedas de braço entre os que mandam na cidade e as gentes empobrecidas. Ainda durante o processo eleitoral, a Câmara de Vereadores, votou, no apagar das luzes do recesso pré-eleitoral, um bloco de alterações de zoneamento que mudará radicalmente o perfil de alguns bairros da cidade. Nelas, o principal ponto em questão é o número de andares que podem ser construídos. Enquanto as comunidades, em cinco anos de discussões do Plano Diretor Participativo, definiram claramente que não querem a verticalização dos bairros, os vereadores que as representam fizeram ouvidos moucos e votaram pela alteração. O “golpe” não ficou sem resposta. Imediatamente as comunidades responderam com manifestações, protestos e ocupações da Câmara. Nada adiantou. Em Florianópolis os vereadores parecem não representar o povo.
Passada a eleição, os vereadores realizaram nova votação dos projetos de alteração, dessa vez um por um. Mas, de novo enganaram a cidade. A sessão marcada para uma quarta-feira foi adiantada na sessão de terça-feira e a votação se fez tarde da noite, com a Câmara vazia de gentes. Nos discursos dos vereadores estava estampada a tentativa de jogar os pobres contra os pobres. Dividir para reinar, lição tão antiga. Segundo eles, a proposta de elevação do número de andares era para atender ao projeto “Minha Casa, Minha Vida”, que se propõe a fazer moradia para famílias de baixa renda. A negativa dos movimentos sociais em permitir essa elevação era então colocada como um entrave ao bem-viver dos pobres. Nada mais demagógico e mentiroso.
Se qualquer pessoa tiver o bom senso de procurar pelas propostas que estão sendo defendidas pelo movimento social no Plano Diretor Participativo, vai ver que é justamente o contrário. A proposta popular, definida em cinco anos de reuniões e debates, não quer que sejam criados guetos nas comunidades, com os pobres concentrados em regiões periféricas dos bairros. Um exemplo disso é o Campeche. A proposta de apartamentos para o “Minha casa, Minha Vida”, defendida pelos vereadores (que aprovaram a alteração) estão concentradas na beira da SC 405, bem longe da praia e da parte urbanizada. A proposta do movimento é totalmente diferente. O que está definido no traçado dos mapas é a integração de todos os patamares econômicos. Estão previstas áreas de moradia popular também perto do mar, no centrinho do bairro, enfim, espalhadas, para não causar segregação e muito menos a conurbação, que é a ocupação de todos os espaços, sem áreas de respiro para a natureza. E também não há nenhuma regra no projeto federal de que as moradias tenham que ser em prédios de quatro andares. Por que não apostar em projetos que levem em conta a cara do bairro, o modo de vida de cada comunidade? Por que não permitir que pessoas de baixa renda possam morar em espaços mais abertos, com natureza, horta e outros confortos ambientais? Por que ao pobre tem de estar reservado o cubículo? Essas são questões que os vereadores não quiseram responder.
E isso não foi ao acaso. É que os vereadores, na verdade, não estão se importando com os pobres. Eles querem elevar o número de andares para que outros projetos de condomínios de luxo possam se fazer. Defendem os interesse dos empreiteiros, das construtoras, das imobiliárias. O “Minha casa, Minha vida” foi só a forma que encontraram de jogar os pobres contra o movimento. Matavam assim dois coelhos com uma única paulada.
O Plano Diretor
Pois aí está um dos grandes desafios do novo prefeito. Tão logo passou a ressaca da vitória, César Souza declarou na imprensa que a primeira coisa que vai resolver quando assumir é o Plano Diretor. Isso mostra que o próximo ano será de grandes embates. Ninguém sabe ainda qual é a proposta que o novo prefeito vai defender. Hoje, são duas concepções que estão colocadas na mesa. Uma é o projeto elaborado pela Fundação CEPA, empresa privada chamada pelo governo de Dário Berger para organizar o que foi definido pelas comunidades e que acabou criando um monstrengo, totalmente desconectado da vontade popular. Praticamente nada do que foi definido em cinco anos de reuniões comunitárias foi levado em conta. E a outra é a do movimento comunitário, consolidada em cinco anos de encontros, oficinas, debates e deliberações, que desenha um modelo de cidade que leva em conta a proteção da natureza, a criação de parques, outro modelo de mobilidade, melhor equilíbrio na ocupação do solo, modelo de saneamento alternativo, respeito ao modo de vida típico dos bairros, proteção do patrimônio cultural, enfim, uma cidade onde caibam todos, sem discriminação nem segregação.
E esse projeto comunitário não é um amontoado de princípios abstratos ou de caráter ideológico. Cada proposta está embasada no conhecimento da cidade, está fundamentada tecnicamente e desenhada nos mapas. Não foi brincadeira o que as comunidades trabalharam e produziram ao longo desses anos. Toda essa força foi jogada fora pelo governo Dário. E agora com César, quem saberá?
Assim, enquanto corre o tempo, os movimentos sociais seguem discutindo e burilando o projeto de Plano Diretor. Querem ter tudo pronto para quando janeiro chegar, quando então travarão o debate com o novo prefeito. A composição da Câmara também está modificada, alguns dos vereadores que protagonizaram as alterações de zoneamento não se reelegeram, mas outros seguem ali. A bancada progressista engordou, em quantidade e qualidade. Alguns vereadores, ainda que de partidos mais ao centro, podem ser aliados da população, mas há muita coisa em jogo e tudo ainda está bastante obscuro. É bem possível que esse debate do Plano Diretor defina claramente os lados e quem está com quem.
O certo é que as comunidades estão alerta e atuando, movimentos sociais estão mobilizados, algumas demandas estão na rua. Todos sabem que o legislativo não é aliado, embora uns poucos vereadores o sejam. Então, o ano de 2013 certamente será de muitas lutas, porque a história já mostrou que só o povo organizado muda a vida.