Por Sônia Weidner Maluf, para Desacato.info.
Até alguns anos atrás havia uma narrativa, que percorria de trabalhos acadêmicos a discursos públicos de políticos e jornalistas, de que Florianópolis seria uma cidade inclusiva, com uma cultura receptiva, marca de sua “açorianidade”, em que açoriano aparecia como uma categoria de inclusão de todo aquele que se afirmasse ou identificasse como tal. Uma fábula local da “democracia racial” brasileira, que nunca existiu. Uma cidade simpática, assentada em parte sobre uma ilha que virou destino de pessoas atraídas pela natureza, pelas relações comunitárias de seus bairros e freguesias e pela simplicidade da vida.
Essa narrativa não se sustentou por muito tempo. Sabemos que as elites se utilizaram de mão de obra escrava, tanto na produção agrícola quanto na vida doméstica; que a urbanização do centro da cidade no início do século XX provocou o deslocamento de populações inteiras para os morros e a periferia; que lideranças e ativistas que lutaram na cidade contra a ditadura foram perseguidos, mortos e desaparecidos; que no final do século XX aconteceu um processo de proletarização das populações litorâneas que viviam da pesca e do plantio de subsistência; que existem hoje bolsões de miséria e de pobreza na cidade (e não apenas daqueles que migram do interior do estado, como se gosta de contar); que os serviços de saúde estão sendo precarizados, dentro de um projeto de privatização da saúde que o atual prefeito tenta impor; que a violência racista, homofóbica e misógina tem aumentado, atiçada pelo discurso de ódio; que a população indígena que circula pela cidade é vítima de todo tipo de violência e preconceito; que a população de moradores em situação de rua tem aumentado vertiginosamente nos últimos anos, como efeito do empobrecimento e da falta de políticas sociais; que a resposta dada pelas autoridades e órgãos públicos relembra as medidas higienistas do século XIX e do início do século XX: afastar os pobres e miseráveis, limpar a cidade da pobreza e dos desempregados. Sabemos que a violência e a insegurança pública aumentam, na mesma medida em que aumenta a violência das polícias, que aplicam aqui a máxima que ficou famosa no ano passado, quando um comandante da PM de São Paulo deixou claro o modo de operar dessa polícia militarizada: a gente não age nos Jardins (bairros da elite) como age na favela.
Vivemos em Florianópolis, de modo local, o que o Brasil está vivendo com o golpe de 2016: uma ruptura com o pacto de classes representado pela Constituição de 1988. A narrativa da inclusão e da receptividade açorianas foi substituída pela narrativa das elites agressivas da cidade contra qualquer projeto popular e democrático, cultivando estratégias de ódio político e de destruição moral de quem pensa diferente. O fascismo tornou-se um instrumento da nova hegemonia das elites brasileiras.
A contundência e o ativismo dessa narrativa fizeram com que à direita e à esquerda se tornasse fácil dizer que Florianópolis é uma cidade conservadora. Para isso, são acionadas manchetes de jornal, textos de colunistas fomentadores de ódio, manifestações públicas de algumas organizações profissionais e empresariais, resultados eleitorais, que levaram por exemplo à atual composição da Câmara de Vereadores (que sistematicamente tem votado contra o povo da cidade), e as últimas enquetes eleitorais para a presidência da República, que dão em torno de 25% de votos para o candidato da extrema direita.
Florianópolis, ou mais precisamente, a avenida Beira-Mar, também foi palco das manifestações dos batedores de panela de 2015 e 2016, que impulsionaram e deram um sustento moral ao golpe. Tudo isso com respaldo da mídia local, jornais impressos, emissoras de rádio e de televisão. A mídia da cidade tem partido.
Existe um ativismo extremista e mesmo arrogante por parte das elites de Santa Catarina e de sua capital, que têm sua narrativa amplificada pela mídia local, verdadeira porta-voz das elites econômicas e políticas da cidade.
Mas a tudo isso é necessário fazer um contraponto.
Nos últimos anos surgiu uma mídia alternativa e independente cada vez mais robusta, que tem produzido uma outra narrativa da cidade. Vários portais de notícia, como o Desacato, o Maruim, o Catarinas (com noticiário na perspectiva feminista e de gênero), a Rádio Campeche.
Florianópolis foi também palco das primeiras grandes manifestações contra o golpe em 2016, com mais de 20 mil pessoas no centro e a grande marcha mundial das mulheres em 2017. Aqui também escolas e universidades viveram as ocupações estudantis em 2016, movimentos de resistência ao golpe e de exercício de formas emergentes de democracia e participação.
Se olharmos e ouvirmos para além das elites e de suas narrativas hegemônicas, é possível encontrar outra cidade. Aquela que vive nos morros, nos bairros, que está sofrendo um processo acelerado de empobrecimento e que, abandonada pelos poderes públicos e desprezada pelas elites, constroi redes de solidariedade e de apoio, que começa a se reorganizar nas associações e sindicatos (às vezes apesar dos dirigentes que ainda não aprenderam a olhar para além do que contam as elites). É possível ver nas universidades, para além do crescimento dos grupos proto-fascistas ligados ao MBL, movimentos dos estudantes que estão lá pela política de inclusão – e chegaram para ficar, mudando a cara da universidade, e que hoje sofrem com o corte das políticas de permanência.
Em seu aniversário de 345 anos, Florianópolis vive uma encruzilhada. Nada pode ser esperado das elites, que hoje aprofundam o discurso do ódio para barrarem projetos populares e de combate à desigualdade. Essas estão cada vez mais à direita, cada vez mais contra os pobres, os desfavorecidos, as mulheres, as negras e negros, as populações indígenas, as pessoas LGBTs. A outra cidade está aí, pulsando no cotidiano dessas populações, grupos, comunidades e pessoas largadas pelo poder público, tornadas abjetas pelas elites. É preciso olhar para ela, para além, muito além do que conseguimos enxergar hoje.
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[avatar user=”Sonia Maluf” size=”thumbnail” align=”left” link=”attachment” target=”_blank” /]Sônia Weidner Maluf é antropóloga, jornalista, professora titular da UFSC e pesquisadora do CNPq.