Conhecido por discursos misóginos e transfóbicos, Jordan Peterson vem à capital gaúcha com promoção do Grupo RBS e da produtora Brasil Paralelo, em parceria com o Fronteiras do Pensamento. Para o professor Moysés Pinto Neto, eventos como esse deslocam o debate público para a direita.
A entrevista é de Gregório Mascarenhas, publicada por Matinal, 19-03-2024.
O psicólogo Jordan Peterson vive em uma rua residencial em Toronto, no Canadá, e mantém na sala de casa uma série de objetos de arte, do chão ao teto. Boa parte é propaganda comunista do tempo da União Soviética. A uma repórter do New York Times que descreveu o local em uma reportagem de 2018, disse que os pôsteres de soldados em marcha e cenas de execução servem como lembrança permanente do que é a opressão política.
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Naquele ano, Peterson despontou como o autor de não ficção mais lido nos Estados Unidos, mas seu sucesso não se restringiu às páginas impressas: ganhou relevância na internet, com milhões de visualizações em seu canal no YouTube e em outros canais que veiculam trechos de seus discursos, que estão também no TikTok e nos reels do Instagram; tem ainda um podcast semanal que frequentemente está no topo das paradas.
É seguido sobretudo pela nova direita, que vê nele uma referência intelectual. É nas relações de gênero que costumam estar suas declarações mais controversas – tornou-se celebridade ao dizer, por exemplo, que feministas têm “desejo inconsciente por dominação masculina brutal”. À jornalista Nellie Bowles, do New York Times, afirmou que “o espírito masculino está sob ataque”.
Peterson estará em Porto Alegre no dia 20 de junho. Ele começa sua primeira visita ao país por São Paulo e segue para a capital gaúcha, na turnê chamada “We Who Wrestle With God” (“Nós que lutamos com Deus”). A conferência é apresentada pelo Fronteiras do Pensamento em paralelo ao evento principal, com promoção da produtora conservadora Brasil Paralelo e do maior conglomerado de mídia do sul do país, o Grupo RBS. Em seu site, o Fronteiras se coloca como um evento “sem doutrinação ideológica”.
Nas edições em que apresenta Peterson, Zero Hora, o principal jornal do Grupo RBS, descreve o psicólogo como liberal cristão e “um dos intelectuais mais relevantes da atualidade”. O próprio discorda do rótulo de direitista e se diz um “liberal tradicionalista”. Essa leitura, porém, é contestada por acadêmicos mundo afora, muito pelas posições de Peterson acerca de temas significativos do mundo contemporâneo.
A transexualidade, para ele, é resultado de um “contágio”, e “mulheres trans são homens”. Ao NYT, disse que apoiaria a monogamia forçada, e, em palestra a um grupo holandês de extrema direita, afirmou que países em desenvolvimento são “poços de catástrofe”. Declarou também que a ideia de que mulheres foram oprimidas ao longo da história é uma “teoria terrível” e que o privilégio branco é “uma mentira marxista”.
Os conselhos de Peterson empoderam, com ares de autoajuda, homens em crise. Quem busca seu nome no YouTube poderá receber sugestões de vídeos do tipo “Como ser um homem alfa”, conteúdo reproduzido por uma página motivacional.
Em nota enviada à Matinal, a organização do evento diz que se trata de um projeto que “estimula o diálogo e a diversidade de opinião, explorando temáticas importantes para públicos também distintos, e promove, desde 2006, a reflexão sobre assuntos relevantes para a sociedade”. Como lembrou a organização, já passaram pelo projeto nomes ideologicamente distintos de Peterson, como Thomas Piketty, Mia Couto, Nadia Murad, Graça Machel e Manuel Castells. “Acreditamos na diversidade de pensamento, na integridade intelectual e no debate construtivo”, disse o Fronteiras.
Para entender o fenômeno, a Matinal conversou com o filósofo porto-alegrense Moysés Pinto Neto. Ele é doutor em filosofia, docente no ensino superior há 16 anos, sócio-fundador da plataforma educacional Alternativa Hub, e falou sobre o pensamento da nova direita, como Peterson influencia esses grupos, e como o debate público – representado, neste caso, pelo evento Fronteiras do Pensamento – se desloca à direita.
Eis a entrevista.
Como a produção de Peterson, em vídeos, palestras e livros, influencia o ecossistema político conservador?
Peterson ficou conhecido a partir de um vídeo em que discutia com ativistas em uma universidade no Canadá. Ele se apresenta como junguiano, trabalhando com arquétipos. Para ele, masculinidade e feminilidade são arquétipos reais, e a cultura queer é vista como uma ameaça à civilização, pois supostamente ameaça as bases dessas estruturas psíquicas. Isso se encaixa em um ecossistema virtual masculinista, alimentando ressentimentos contra o feminismo e as conquistas das mulheres, bem como contra pessoas trans.
A produtora Brasil Paralelo serve como um ponto de organização dessas ideias, promovendo revisionismo histórico e buscando restaurar ideias monarquistas no Brasil, por exemplo. Ideias que antes seriam vistas como absurdas estão sendo disseminadas para conquistar adesão cultural, deslocando a janela de debate mais para a direita. Antes, nos anos em que a política brasileira se estruturava na disputa entre PT e PSDB, tanto a direita quanto a esquerda evitavam discutir a ditadura militar, por exemplo, mas hoje vemos uma direita que se identifica com ela.
Há uma ilusão criada pela chamada alt-right nos Estados Unidos, que se inspira nas ideias de Peterson, de que a nova cultura transgressora é de direita. Supostamente, há uma hegemonia cultural da esquerda, evidenciada nas questões de racismo e LGBTQIA+, e a transgressão agora é personificada pelo macho alfa, enquanto a esquerda fica na posição de defender o que já foi conquistado. No entanto, isso é apenas uma ilusão. Quando olhamos para a realidade social, percebemos que o racismo e outras formas de opressão ainda persistem, as pessoas negras continuam sendo mais pobres e mais matáveis pela polícia.
A suposta transgressão da extrema direita é, na verdade, uma forma de manter e perpetuar privilégios, mas eles conseguiram construir uma narrativa em torno disso, apresentando-se como os rebeldes da sociedade atual.
O que a presença de Jordan Peterson na programação paralela do Fronteiras do Pensamento, evento tradicional de debates, indica sobre a política contemporânea?
Parece ser mais uma iniciativa comercial do que uma plataforma para discussões genuínas. Considero que há uma tentativa de dar um verniz teórico e filosófico a uma posição que está se fortalecendo na direita brasileira, isso que eles rotulam como guerra cultural. É uma oposição ao que antes era chamado de politicamente correto, agora conhecido como “cultura woke” (expressão pejorativa usada inicialmente nos Estados Unidos, referindo-se a ativistas por direitos civis).
É interessante observar a tentativa de separar posições mais liberais e conservadoras da extrema direita, como se houvesse uma direita civilizada e uma outra mais radical, como a representada por Bolsonaro aqui no Brasil. Hoje, percebemos que essa divisão se dissipa gradualmente. São os chamados gurus que emergem nas redes da extrema direita e são inclusive convidados para um evento que aparentemente tem um viés moderado – já recebeu Bauman, Lipovetsky e Maffesoli, por exemplo.
Quanto a Jordan Peterson, é curioso como alguém cujo trabalho acadêmico é considerado medíocre, no sentido de ser apenas mediano, conseguiu ganhar tanta visibilidade, principalmente impulsionado por plataformas digitais e pela batalha que acontece nas redes sociais. Ele é tratado como um grande pensador, quase equiparado a figuras como Bauman, o que é no mínimo questionável.
Isso faz recordar do debate ocorrido em 2019, entre Peterson e o filósofo marxista Slavoj Žižek. Penso na hipótese de uma situação inversa: se fosse Žižek vindo a Porto Alegre, seria apresentado como um teórico marxista ou como um grande pensador do mundo contemporâneo?
Uma das críticas que faço à cobertura midiática é que, embora alguns veículos brasileiros tentem se posicionar como uma espécie de direita moderada, acabam contribuindo para uma assimetria de tratamento dado a distintas ideologias. A extrema direita é recorrentemente normalizada, enquanto qualquer posição à esquerda é imediatamente rotulada como radical.
Isso é estratégico, pois desloca o espectro político mais para a direita, fazendo com que a posição considerada centrista seja, na verdade, de centro-direita, e não uma posição verdadeiramente de centro. Isso é evidente nos Estados Unidos, onde a polarização política tornou-se tão extrema que agora temos uma disputa entre o fascismo e o centro-direita, engolindo o centro. Até mesmo as posições tidas como ponderadas, como as de Barack Obama, parecem radicais em perspectiva, embora não representem qualquer ideia de ruptura.
Essa ideologia reacionária comumente passa incólume. É irônico como a ideologia por excelência é aquela que se recusa a se assumir como ideologia, buscando apresentar-se como neutra e técnica. No caso de Peterson, sua abordagem da psicologia é pouco relevante para explicar sua popularidade, que está mais relacionada à formação de um ecossistema conservador que se opõe ao politicamente correto e ao marxismo cultural, utilizando essas expressões para marcar sua oposição.