A ascensão de Dick Cheney, de moleque inútil, beberrão e brigão a todo-poderoso vice-presidente dos EUA no governo W.Bush, é o elogio do burocrata enrustido, oportunista e isento de escrúpulos. VICE faz isso como quem semeia, junto com a semente, a praga que vai destruir a planta.
O título VICE já sinaliza: em inglês, significa vice e vício, depravação ou corrupção moral. Cheney é visto ganhando peso corporal e político, galgando os degraus do poder impulsionado pela mulher ultradireitista e por sua própria capacidade de ser pusilânime. O aprendiz do Congresso passa a lacaio de Donald Rumsfeld, daí a seu sucessor como Chefe de Gabinete da Casa Branca, Secretário de Segurança e mais tarde vice-presidente. Assim se tornava cada vez mais influente, gozando em silêncio cada salto e somatizando uma eventual má consciência em sucessivos enfartes.
Sua participação seria decisiva como eminência parda do pálido Bush, movendo as peças do governo à revelia do presidente e liderando a chamada guerra contra o terror. O filme o mostra cochichando no ouvido de Bush os estímulos para atacar o Iraque, o que implicaria em liberar a tortura e fazer valer a estratégia do medo entre os cidadãos americanos. Tudo sem nunca levantar a voz.
Durante todo o filme, o modelo de cinebiografia é sabotado pela linguagem. Adam McKay volta a utilizar recursos de A Grande Aposta, mas com efeitos ainda mais contundentes. A narrativa avança por choques, inserções metafóricas ou dedutivas, materiais de arquivo reais ou simulados, congelamentos, etc, em montagem mais uma vez diabólica de Hank Corwin. A síntese de cada informação dramática e visual é extraordinária.
Um narrador onisciente dá as caras de vez em quando, como um Forrest Gump cuja identidade só vai se revelar – grande surpresa! – pertíssimo do final. Numa conversa de cama, Cheney e a mulher falam em versos de métrica shakespeareana, invocando o paralelo com uma forma clássica de drama histórico. Em outra cena, as maldades do governo Bush são servidas por um chef de restaurante de posse de um menu infame. Ou seja, o instrumental da comédia é aplicado a uma sátira impiedosa, embora nunca caricata, pois baseada em sagaz observação dos personagens reais. Enquanto eu via o filme, me pegava rindo e ao mesmo tempo odiando o que via. Não deve ser muito diferente do que McKay almejava.
Nos créditos finais, um agradecimento aos jornalistas que cobriram Cheney e sua administração. Deviam incluir um obrigado também à liberdade de que o cinema americano desfruta para fazer perfis ousados como esse de um político ainda vivo. Não saiam antes de uma cena perdida em meio aos créditos, quando um grupo de avaliação do eleitorado ressurge para fazer uma derradeira investida contra a direita aos moldes do mecanismo autorreflexivo que Jean Rouch usava no seu cinema-verdade. VICE é inteligente e vigoroso até o fim do fim.
[O filme concorre a oito Oscars: filme, direção, ator (Christian Bale), atriz coadjuvante (Amy Adams, a esposa), ator coadjuvante (Sam Rockwell como W. Bush), roteiro original, montagem e maquiagem/cabelos.]