Por Xandra Stefanel.
Era uma vez um grupo de ciganos que, durante uma viagem, se vê obrigado a atravessar a fazenda de uma condessa, de onde todos acabam sendo expulsos. Em meio ao tumulto da fuga, a menina Reka se perde do grupo e é raptada. Ela é criada no casarão da fazenda como servente da condessa que, obcecada em não envelhecer, suga e destrói tudo à sua volta. Kaia, sua amiga de infância, continua a viver com a família até que, já adulta, decide deixar o acampamento para procurar Reka.
Este é o enredo de Rio Cigano, primeiro longa-metragem de Julia Zakia, que estreiou no dia 17, às 21h, no Cine Caixa Belas Artes, seguido de debate e de festa cigana. O filme é uma fábula sobre a cumplicidade entre as duas meninas que foram separadas na infância e criadas em mundos completamente distintos. Kaia se mantém junto de sua cultura cigana, é forte, sabe o que quer e luta por isso. Já a outra garota é mais frágil e, depois de raptada, acaba crescendo presa e absorvida pelo trabalho extenuante no castelo da condessa, uma mulher vaidosa que se alimenta da beleza e juventude de jovens como Reka.
Instigadas pelas fábulas contadas pela avó, Kaia e Reka bebem água de uma pegada de loba – divulgação
Antes de serem separadas, as duas viveram juntas a magia da infância, sempre maravilhadas pelas histórias fantásticas que Baka, a avó e matriarca do grupo, contava às crianças. A preferida das meninas era sobre o que acontecia com quem bebia água de uma poça que tinha a pegada de uma loba. “Quando chove, é fácil a gente perceber as pegadas das lobas. Nessas pegadas, a gente pode beber uma água especial. Quem bebe dessa água especial fica enxergando e ouvindo mais e sentindo mais o cheiro e o gosto das coisas”, contava a senhora.
Para construir a narrativa do filme, Julia se inspirou na tradição oral cigana e nos universos ciganos brasileiro e europeu. Ela traz às telas a beleza das cores e a musicalidade deste povo, deixando de lado estereótipos e preconceitos geralmente a eles associados.
Antes de Rio Cigano, a diretora fez o curta-metragem documentário Tarabatara, sobre o cotidiano e os encantos de uma família cigana do sertão de Alagoas. Foi assim que ela conheceu profundamente esta cultura, se encantou e decidiu representá-la em um longa-metragem de ficção cheio de fábula e fantasia. Para tanto, Julia não só conviveu com a família Ferraz, no sertão alagoano, mas também foi para a Sérvia, Bósnia e para a República Eslováquia em busca das raízes ciganas europeias.
A inspiração para dar vida à condessa do filme veio de Elizabeth Bathory, uma condessa sanguinária húngara bela e vaidosa, conhecida pelos requintes de crueldade com que tratava seus empregados, especialmente as jovens mulheres. Tanto a condessa quanto Kaia adulta são interpretadas por Georgette Fadel, que também acompanhou a diretora nas viagens pelos Bálcãs. O convívio entre as duas fez com que Julia decidisse interpretar Reka na fase adulta.
Mulheres fortes
Apesar de saber que os ciganos mantêm uma cultura patriarcal, Julia Zakia resolveu dar ênfase no papel das mulheres, no filme sempre presentes nas decisões centrais do grupo. Além de sua beleza estética, o longa põe em evidência a força das meninas e mulheres ciganas. Saltam à tela sua vitalidade e coragem, além da importância que elas têm no dia a dia da comunidade: são elas que recolhem a lenha, que carregam barris de água, que cuidam das crianças, da comida, das roupas e que fazem também a mediação de conflitos.
As fábulas contadas pela avó Baka fazem lembrar as estórias reunidas no livroMulheres que Correm com os Lobos – Mitos e Histórias do Arquétipo da Mulher Selvagem (Editora Rocco, 576 págs.), da psicanalista junguiana Clarissa Pinkola Estés. A escritora americana de origem mexicana estudou a biologia dos lobos e percebeu muitas semelhanças entre estes animais selvagens e a natureza feminina. “Os lobos saudáveis e as mulheres saudáveis têm certas características psíquicas em comum: percepção aguçada, espírito brincalhão e uma elevada capacidade para a devoção. Os lobos e as mulheres são gregários por natureza, curiosos, dotados de grande resistência e força. São profundamente intuitivos e têm grande preocupação com seus filhotes, seu parceiro e sua matilha. Têm experiência em se adaptar a circunstâncias em constante mutação. Têm uma determinação feroz e extrema coragem”, afirma Clarissa na introdução da obra em que interpreta 19 lendas e histórias antigas que revelam o que chama de “arquétipo da mulher selvagem”. Todas essas características estão presentes no long- metragem brasileiro.
Porém, segundo a psicanalista, lobos e mulheres também têm em comum o fato de terem sido perseguidos e acossados na tentativa de “domesticá-los”. No filme de Julia este “enquadramento” fica claro quando ordenam que tirem, um a um, os pêlos da axila de Reka: “Muito preto, muito grosso, parece bicho… É feio. É sujo”, diz a condessa, escrava de padrões sociais e de beleza.
De forma distinta e talvez até por acaso, Rio Cigano acaba trilhando os mesmos de caminhos do livro de Clarissa Pinkola, rumo ao resgate de uma natureza indomável das mulheres que, um dia, já correram livres com (e como) os lobos.
<iframe width=”560″ height=”315″ src=”https://www.youtube.com/embed/lw_ec5T9c3Y” frameborder=”0″ allowfullscreen></iframe>
Rio Cigano
Roteiro e direção: Julia Zakia
Elenco: Georgette Fadel, Leuda Bandeira, Ricardo Peccetti e Jerry Gilli
Produção executiva: Patrick Leblanc
Direção de fotografia: Adrian Cooper
Direção de arte: Mônica Palazzo
Montagem: Idê Lacreta e Julia Zakia
Figurino: Luciana Buarque
Desenho de som: Guile Martins
Direção de produção: Cris Alves
Distribuição: Raiz Distribuidora
Duração: 79 minutos
País: Brasil
Fonte: Rede Brasil Atual