Por Paulo Moreira Leite.
No 247. -Se há vários motivos para aplaudir o filme “Eu, Daniel Blake,” de Ken Loach, Palma de Ouro do Festival de Cannes, um dos mais importantes do mundo, é fácil reconhecer a razão principal.
Centrado na luta de um carpinteiro para proteger seus direitos, a obra apresenta um retrato sem enfeites do colapso do Estado de bem-estar social na Inglaterra, país que, entre outros benefícios sociais, construiu um sistema público de saúde gratuito e universal, ponto de partida para diversos países, inclusive o nosso SUS.
Do ponto de vista dos 200 milhões de brasileiros, Eu, Daniel Blake ganha uma importância especial pela conjuntura política, de guerra aberta do governo Temer e da equipe de Henrique Meirelles contra a CLT e programas sociais como Bolsa Família, Previdência Social e Minha Casa Minha Vida. Num momento em que, em Brasília, o Congresso debate a reforma da Previdência e projetos destinados a flexibilizar as leis trabalhistas, Loach mostra o destino de um dos países mais ricos do planeta, antiga potência imperial, que se encontra numa etapa posterior do processo que leva ao Estado Mínimo.
“Eu, Daniel Blake,” registra numa cena a condição de cidadãos britânicos que passam fome.
A tradução para a realidade brasileira exige adaptações importantes, como uma renda per capta menor, um patrimônio acumulado também menor — apesar do crescimento dos últimos anos.
O mundo que se vê na tela retrata uma classe trabalhadora capaz de gestos individuais de solidariedade mas vencida em derrotas sociais imensas, onde homens e mulheres são obrigados a lutar de forma individual por seus direitos e improvisar caminhos no limite da ilegalidade para reforçar a dispensa. Num momento divertido, retrata-se um cidadão que engorda os ganhos pelos labirintos da globalização, fazendo contrabando de tênis produzidos na China.
No mundo pós-moderno de Eu, Daniel Blake, as ações coletivas sequer são cogitadas. A existência de sindicatos, que já foram uma glória do movimento operário, nem é mencionada. Ao longo do filme, o protagonista está mergulhado numa realidade que os brasileiros conhecem muito bem: no combate por seus direitos junto aos serviços de tele-marketing, enfrentando um exasperante labirinto de recomendações e explicações que nada resolvem. São apenas uma forma cínica encontrada pelos governantes para adiar a entrega de um direito que as duas partes sabem que é liquido e certo — mas dificilmente será reconhecido.
Nas cenas finais, o filme mostra o que vem depois. Após perder os direitos como trabalhador, o protagonista também é destituído de direitos como cidadão e acaba sendo tratado como criminoso comum quando tenta de realizar um protesto por conta própria.
Com preciosas lições para a atualidade, Eu, Daniel Blake tem uma omissão do ponto de vista histórico. Você vai para casa perguntando como tudo aquilo pode acontecer.
Em vários momentos, o filme faz referências esparsas ao governo responsável pela tragédia social do país, o Partido Conservador. Está correto. Nos 18 anos em que permaneceram no poder, onze deles com Margaret Thatcher como primeira-ministra, os conservadores fizeram um trabalho meticuloso e profundo para destruir o Estado de Bem-Estar Social. O problema é que, a seguir, o Partido Trabalhista ocupou o governo por treze anos. Em dez deles, Tony Blair foi o primeiro ministro e, contrariando as expectativas da maioria dos britânicos, nada fez para reverter a herança recebida. Em 2010, sofreu uma nova derrota nas urnas e até agora não se recuperou.
Cabia ao Labour, pelo seu lugar na história do país, o papel de resistir aos ataques contra os direitos da maioria. A recusa em assumir este lugar também ajudou a criar um mundo no qual a questão social virou caso de polícia — e este também é um debate que interessa aos brasileiros de 2017.