O principal batalhão do exército de Florianópolis recebeu detalhes do protesto que estudantes planejavam contra a visita do presidente Figueiredo em 1982, três anos após a Novembrada. Nome, profissão e tendência política em destaque. Tudo apontado para engordar a ficha política dos manifestantes. A serviço da ditadura, os informantes davam expediente dentro da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Eram agentes da Assessoria de Segurança e Informações (ASI).
“A voz corrente dos ativistas no campus era de que pessoal ligado à ASI acompanhava nossos passos em assembleias, reuniões de grupos ou atos públicos realizados nos diversos locais da universidade”, diz o professor de Estatística da UFSC, José Francisco Fletes. Nascido na Nicarágua, era ativo militante da Associação dos Professores (APUFSC).
Conhecidas pelas siglas ASI ou AESI?—?com acréscimo de “Especial” no nome?—?, as Assessorias de Segurança e Informações eram um dos componente da rede de informações do regime militar, reformulada no final da década de 1960. A nova estrutura fechou o cerco aos setores civis. O Serviço Nacional de Informações (SNI) comandava a rede, formada pelas Divisões de Segurança e Informações nos ministérios e ASIs como correspondentes nos grandes órgãos públicos. Na UFSC, o setor foi criado em 1972. A data de extinção é incerta. Entre 1985 e 1986, quando o MEC decretou o fim de todas as assessorias nos campi.
Até companheiros de “Bar da Nina” e um monitor da disciplina que Fletes lecionava apareciam como aliados de militância clandestina do nicaraguense nos relatórios confidenciais da ditadura. Para o professor, os documentos “beiravam o ridículo quanto à caracterização da postura ideológica de cada ativista”. Em 1982, o Ministério da Justiça emitiu parecer pela prisão de Fletes, baseado num apanhado de registros de supostos atos subversivos, como participar do PCdoB e distribuir o Jornal da Luta Operária. Naquele mesmo dia, a Polícia Federal revirou o apartamento do professor atrás de livros de esquerda, principalmente exemplares sobre a Guerrilha do Araguaia. Levaram quilos de papel. Exceto os mais cobiçados, que estavam escondido na tubulação. Fletes respondeu em liberdade a um processo por subversão até ele prescrever, cinco anos mais tarde.
A década de 1980 foi de distensão política dentro da UFSC. Caiu a portaria que proibia manifestações no campus. Aconteceram as primeiras greves. E professores que haviam perdido o emprego por questões políticas foram recontratados, beneficiados pela Lei de Anistia. Na contramão, o SNI não aprovou a nova dinâmica da universidade, “um dos locais mais procurados” para manifestações de conotação “político-partiárias e ideológicas, contrariando ao governo e ao regime”, conforme um documento.
À época ligado à associação de servidores técnico-administrativos (ASUFSC), Luiz Henrique Prazeres desconfiava conhecer um dos agentes da ASI. “Aquele galego era sempre o primeiro a chegar na assembleia”, diz, com forte sotaque ilhéu. Funcionário há mais tempo em atividade dentro da universidade, Prazeres foi contratado pela antiga Faculdade de Medicina, em 1959. O nome dele aparece em relatórios de assembleias gerais realizadas na antiga ala C do Restaurante Universitário. No mesmo documento, enviado para Polícia Federal, MEC e SNI, há o registro de quem vendia cada jornal e panfleto na entrada da assembleia.
Ex-presidente do DCE, Lédio Rosa Andrade afirma que era latente a sensação de estar sendo vigiado dentro da universidade. Porém, desconhecia que uma ramificação do SNI atuava no campus. “Sabíamos que havia espiões por todas as partes e, no Direito, pelo menos um aluno era informante da ditadura”. Décadas após o fim do regime militar Lédio teve acesso aos documentos em que era fichado. “Fiquei muito surpreso e agora vejo como éramos amadores mesmo.”
Reitor interino instalou ASI
Quando Ernani Bayer assumiu como reitor interino em 1971 foi chamado ao 5ºDistrito Naval para um jantar com o Almirante, principal autoridade militar de Florianópolis na época. Lá encontrou outros homens fardados. Numa refeição amarga, fizeram sabatina com o novo gestor da universidade, indicando como se daria a relação.
A chegada de Bayer ao poder na UFSC gerou a desconfiança das autoridades do regime. Ele era dono de ficha política marcada por um crime para aqueles anos: foi a Cuba como representante da União Catarinense dos Estudantes (UCE) em 1961, contrariando a avó, o vigário e demais conservadores da pequena Florianópolis (cerca de 100 mil habitantes à época).
O presente de grego veio de cima. A DSI/MEC enviou ofícios para as universidades indicarem o diretor da ASI. Foi durante a passagem de poucos meses como reitor interino da UFSC que Ernani Bayer assinou a portaria de instalação da assessoria.
Florianópolis, 16 de fevereiro de 1972 PORTARIA Nº 0075/GR/1972.
O Reitor da Universidade Federal de Santa Catarina, no uso de suas atribuições,
R E S O L V E :
DESIGNAR o Bel. FERNANDO ANTONIO MEDEIROS BECK para exercer as funções de Chefe da Assessoria Especial de Segurança e Informação.
Prof. Ernani Bayer
Era Fernando Antônio Medeiros Beck, já falecido, o diretor do órgão recém-criado. Apontado pelo fundador da universidade e nome do campus, João David Ferreira Lima, como um “ bom menino” do “segundo team”, Beck fazia parte de uma leva de egressos da Faculdade de Direito que se tornou servidor da reitoria.
“Indiquei ele porque precisava de alguém que não ia me criar problema”, afirma Bayer. “Tinha de criar o órgão. A gente botava essas pessoas que não atrapalhavam. O doutor David Ferreira Lima dizia um negócio que gosto de repetir: o pior burro é o burro dinâmico.”
Uma ação do movimento estudantil foi o assunto do informe número 01 produzido pela assessoria da UFSC, ainda com nome AESI. A lei era pouco permissiva para realizar grandes eventos dentro da universidade e o DCE planejava um encontro nacional para debater o ensino superior. O presidente da entidade, “convocado a prestar esclarecimentos, não teve paciência de esperar o Sub-Reitor de A.O.E”, registra o documento. A Secretaria de Segurança e Informações de Santa Catarina (SSI/SC) recebeu e repassou o informe para órgãos do exército, marinha e aeronáutica.
Apesar da tentativa de manter a ASI inofensiva, a ficha política de Bayer cresceu com os documentos da assessoria. Perto de completar um mês de atividades, enviou o seguinte informe à Agência Central do SNI (reprodução abaixo):
Informe 006/AESI/UFSC?—?Candidatou-se (Ernani Bayer) ao cargo de reitor da UFSC, em lista sêxtupla. Seu nome consta de uma lista de contribuintes de SANTA CATARINA ao encontro de soliedariedade à CUBA e auto-determinação dos povos. Contribuiu com Cr$ 200,00.
O destaque em negrito aparece repetidas vezes nas 15 páginas de ficha política de Bayer encontradas pela reportagem.
Porém, a ASI não rendeu apenas manchas na ficha política de Bayer. Em 1980, quando entrou novamente na lista enviada ao presidente com os candidatos à reitoria, o SNI escreveu: “durante sua gestão como reitor pró-tempore autorizou a implantação da ASI. Tendo sempre dado todo o apoio aos integrantes da assessoria.” No ano seguinte Bayer assumia a reitoria em definitivo, nomeado por João Batista Figueiredo.
Durante duas semanas o primeiro diretor da ASI/UFSC, Beck, fez estágio na Escola Nacional de Informações, criada nas reformas do SNI. As disciplinas oferecidas poderiam incluir táticas de espionagem, disfarce, interceptação de conversa e interrogatório. Dependia da modalidade do curso. E alguns duravam um ano. Beck dividiu o quarto 11, no bloco J do alojamento da escola com Geraldo Nogueira Diógenes e Hélio de Souza Leão. O primeiro era diretor da ASI da Federal do Ceará (ASI/UFCE) e militar do exército. O outro foi diretor da ASI da Federal do Sergipe (ASI/UFSE) e, anos depois, fundaria a TV Sergipe, afiliada da Rede Globo.
Mexer com a ASI depois da ditadura era caso de polícia
O SNI não aceitou se render ao fim do regime. Continuou atento aos “subversivos”, produzindo relatórios com o mesmo tom dos anos anteriores.
Em 1987, a jornalista Raquel Wandelli virou alvo por reportagem que publicou no Jornal de Santa Catarina sobre a rede de informações do regime militar. A ASI/UFSC era um dos principais assuntos. “De conotação sensacionalista e inoportuna, (…) caracteriza tão somente, a intenção das esquerdas em denegrir o Sistema perante a opinião pública”, diz o documento do SNI sobre a publicação.
A reação dos agentes do órgão reforça o título da reportagem: “SNI na espreita para dar o bote”.
Wandelli é jornalista do INSS e ex-aluna da UFSC. Para o SNI, uma “ativista de esquerda”. Ela conheceu o documento ao ser apresentado pela reportagem. Lembrou que, quando ainda criança, mostrou a língua para um militar ex-presidente que estava de passagem pelo interior de Santa Catarina. No dia seguinte os pais de Wandelli foram chamados para dar explicações pelo ato subversivo da filha.
Para a jornalista, apesar de os diretores da ASI alegarem que o órgão era inofensivo e burocrático, as informações ficavam marcadas nas fichas políticas e poderiam trazer problemas numa hipotética guinada autoritária. “O regime endureceu algumas vezes na ditadura. Era muito recente o fim dela, poderia acontecer de novo.”
A investigação parou no ofício e Wandelli não foi chamada para dar explicações. Porém, ela especula: “depois de conhecer estes documentos, questiono se os empregadores tinham acesso às fichas políticas. Eu tive problemas com demissões e para assumir cargos”.