Filhos africanos de portugueses que lutaram em ex-colônias buscam reconhecimento e cidadania

Por Marana Borges. 

Militares de Portugal lutaram entre 1961 e 1974 em Angola, Guiné Bissau e Moçambique, onde deixaram filhos que hoje reivindicam suas origens.

Eles são filhos da guerra. Têm pais portugueses, mães africanas. Os pais eram jovens soldados a serviço de um país que, em plena metade do século 20, ainda se esforçava por conservar as colônias no além-mar; as mães, mulheres pobres que em geral lavavam a roupa das tropas portuguesas durante a guerra em Guiné-Bissau, Angola e Moçambique. Por vezes, colonizador e colonizada se apaixonavam; outras vezes, elas lhes ofereciam serviços sexuais em troca de dinheiro ou comida. Os filhos nascidos dessa situação são muitos. Centenas. Talvez milhares. Nunca ninguém os contou. Sem registro do pai biológico, vivem estigmatizados em seus países, onde são conhecidos como “restos de tuga”.

Quarenta anos após as guerras coloniais travadas por Portugal em seus ex-territórios africanos, alguns destes filhos começam a reivindicar suas origens. Tarefa difícil. Com o acirramento da violência e a eclosão da guerra civil nos territórios que conquistaram a independência, as mães queimaram a pouca documentação que pudesse servir para rastrear os pais de seus filhos. Cartas, fotos, até certidões. Temiam as perseguições e frequentes assassinatos contra qualquer suspeito de ter colaborado com a ex-metrópole. Dos filhos, geralmente registrados em nome de outro pai, também guardaram segredo. Mas se os sobrenomes podiam esconder a origem portuguesa, a cor da pele a denunciava. Vistos como “brancos” no país natal, muitos pagaram caro por isso.

Um deles é Fernando Hedgar da Silva. Caminhoneiro, ele vive na Guiné-Bissau. Dedicou grande parte de sua vida a buscar o paradeiro do pai. Não teve sucesso. Aos 48 anos, ainda sente-se discriminado, “meia pessoa”. “Todo filho tem o direito de conhecer quem o gerou”, disse por telefone a Opera Mundi. Em 2014, foi à Embaixada de Portugal na Guiné, que lhe comunicou ser o pai quem devia reconhecer o filho, e não o Estado. O cônsul, contudo, prometeu analisar o caso e contatá-lo. Fernando ainda espera uma resposta. Agora está à frente de uma associação com 50 desses filhos, e reclama o direito à cidadania portuguesa.

Essa batalha depende de se interpretar a questão como um assunto particular ou do Estado. Aosamerasians, como ficaram conhecidos os filhos de mulheres vietnamitas com militares norte-americanos nascidos durante a Guerra do Vietnã (1955-1975), os Estados Unidos concederam o estatuto de imigrante norte-americano nos anos 1980, após um intenso debate público. Não houve exigência de provar a paternidade – bastavam os traços físicos. Cerca de 26 mil filhos emigraram aos Estados Unidos, apesar de apenas 3% deles terem logrado reaver seus genitores.

Mas em Portugal – que enviou ao continente africano cerca de um milhão de combatentes durante os 13 anos de guerra colonial (1961-1974) – o assunto ainda é tabu. Contatado por Opera Mundi, o Ministério de Negócios Estrangeiros, responsável pelas relações externas do país, se absteve de comentar o caso, alegando que o órgão “nunca foi confrontado com essa questão ou com situações concretas”.

A primeira (e única) pessoa a dar projeção nacional ao tema foi Catarina Gomes, repórter do jornal Público, com uma série de reportagens, uma das quais lhe rendeu este ano o Prêmio Internacional de Jornalismo Rei da Espanha. Descobriu o assunto por acaso, durante trabalho de campo para escrever um livro sobre a guerra colonial. Depois, criou um canal online para receber informações sobre pais e filhos. Assim encontrou António Bento, que aceitou o convite de regressar a Angola para conhecer o filho que deixara ainda na barriga de sua então parceira, por quem se apaixonara aos 23 anos.

António é um caso raro de um pai em busca do filho. Buscou-o a vida toda. A maioria dos ex-combatentes colocou uma pedra sobre o assunto. Casado, com duas filhas e morador de uma pequena cidade de 11 mil habitantes na região do Alentejo, a 85 km de Lisboa, Antonio tornou sua paternidade um assunto público. Participar da matéria do jornal foi a única forma de superar os custos de uma viagem impossível para alguém que, aos 63 anos, está desempregado. Do encontro com o primogênito, hoje sargento de 40 anos com quatro filhos, lembra com voz emocionada. “Sou sentimental, choro ao ver final de novela, imagine ao conhecer meu filho depois de tanto tempo?”

A principal razão para a maioria dos pais esconderem o passado, segundo António, é o medo de fragilizar o ambiente familiar atual: “Muitos nunca disseram às suas esposas que tiveram um filho antes”. Ele disse, e não foi fácil. Agora junta suas poucas economias e aguarda a aposentadoria para poder ver o filho mais uma vez. Mas o faz discretamente: “Esse assunto continua a ser tabu, a ser só meu.”

O drama da paternidade revela outros – machismo, racismo, desigualdade social e econômica. “Os militares eram o símbolo do poder colonial: homens, brancos, fortes; elas, mulheres, africanas, negras. Muitas não voltaram a casar ou foram escondidas do meio social”, conta a jornalista Catarina Gomes. Se os “filhos do vento”, como também são chamados, tivessem tido mães brancas, ricas, europeias, continuaria sendo assim tão difícil encontrar seus pais portugueses? Ninguém se atreve a responder.

Foto: Reprodução/Opera Mundi

Fonte: Opera Mundi

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