Filas de desempregados e a Foto de uma família proletária

Este é o quinto conto de uma série que leva o título de Histórias do proletariado digital.

Imagem: Reprodução

Filas quilométricas de desempregados cortam o país, desenhando perturbadoras retas que são tortas, estranhas formas geométricas que escapam a qualquer cálculo matemático. Uma mãe que não podia deixar o filho de colo sozinho em casa, estava no fim de uma dessas filas. Ela limpou com um pedacinho de papel higiênico o nariz do guri que escorria em câmera lenta . Um homem de quarenta anos que perdeu o emprego de frentista, estava no meio da fila. Ele exclamou para quem quisesse ouvir:

- Minhas perna dói tanto que só passando salmoura pra aguentá o tranco ! 
Quase na ponta da fila, dois jovens desempregados conversavam. Um deles comentou levantando os braços que possuíam enormes tatuagens:

- Dizem que eu preciso falar inglês, mas a verdade é nem a porcaria da língua portuguesa eu sei falar direito.

Será que todos que amargaram nesta e em outras filas de desempregados do país, poderiam ter o seu próprio negócio? Será que todos os desempregados serão algum dia empreendedores? Essas perguntas tomaram por quinze segundos a cabeça de uma jovem que trabalhou como doméstica e cuidadora de idosos. Os quinze segundos se passaram e ela, que estava no fim da fila, decidiu esquecer o seu pensamento pelas vias dos sinais adestrados do celular. Sua cabeça rolava agora para frente, para trás, pelas diagonais. O que importa a fila se dentro do celular o mundo insinua-se tão confortável? O que importam as pernas que doem de tanto ficar em pé, o que importa se o infernal sol das 13 h cozinha em fogo alto a sua cabeça?

Não tinham mais vagas e no final da tarde a fila se desfez num barulhento lamento anônimo. Um enfermeiro desempregado foi embora e observou no celular, num outdoor e em várias telas gigantescas espalhadas pela avenida da cidade, imagens paralelas que formavam um colorido carrossel. Um alegre mundo sem doenças flutuava na paisagem virtual feita de lorotas. Do outro lado da avenida vários desempregados seguiam o seu caminho. Um objeto não identificado surgiu no caminho de uma operária: eram as folhas verdes de uma árvore. A trabalhadora pensou que por não ter preço a árvore não deve valer nada.

Agora a penumbra engole aos poucos um quartinho de pensão na cidade de Campinas. O quarto não tem luz porque a conta está vencida. Repousa na empoeirada mesinha um retrato de família. 5 personagens aparecem na foto feita no começo do ano de 2018. Quem são aquelas pessoas?

1- Dona Nair(1948-2019)
A senhora de cabelos branquinhos aparece séria na foto. O simples vestido novo e o batom rosa não escondem que ela já estava doente. Complicações cardíacas a levaram á morte no começo deste ano, quando o pequeno posto de saúde da cidadezinha do interior de Pernambuco, em que morava, não tinha estrutura e nem recursos para atende-la.

2- Marcos( 1980- )
Na foto o filho de Dona Nair aparece como um rapaz sorridente, com olhar zombeteiro e ao mesmo tempo cheio de esperanças. Hoje ele está vivo porém encarcerado. Após trabalhar no interior de São Paulo colhendo frutas, mudou-se para a capital do Estado. Trabalhou numa empresa de gás, viu-se desempregado e envolveu-se num assalto á mão armada no fim do ano passado. Foi preso e sua pena está longe de ser diminuída.

3- Sérgio( 1945- )
O marido de Dona Nair está sério na foto, com um ar amargurado. Seus olhos insinuam mais de mil cicatrizes pelo corpo e pelo espírito. Na cidade do Rio de Janeiro, trabalhou no ano de 1968 como operário e tornou-se militante sindical. Em 1971 Sérgio foi preso e barbaramente torturado por agentes do Estado. Em 1986 ele retornou para a sua cidade natal para se casar com Dona Nair. Apesar da sua geração ter sofrido com a ditadura militar, Sérgio não se arrepende de nada e faria tudo de novo. Ele se entristece apenas por não ter conseguido transmitir aos seus filhos os seus sonhos revolucionários.

4- Letícia(1977-2019)
Na foto Letícia aparece abraçada com o irmão Marcos. Ela ergue uma taça de Cidra e desliza um enorme sorriso. Moça dedicada, trabalhou durante anos como funcionária numa empresa em São Paulo. Quem se lembra dela, fala de uma mulher constantemente preocupada, assombrada com a possibilidade de ficar desempregada. Segundo amigos, Letícia se preocupava intensamente em atingir as “ metas “, sempre levando trabalho pra casa. Demitida no meio deste ano junto a uma leva de trabalhadores sob a alegação de cortes de despesas na empresa, Letícia caiu em depressão. Ela foi encontrada morta no banheiro da sua casa alugada, após tomar grande quantidade de comprimidos.

5- Andréia(1997- ?)
A jovem faz uma careta para a câmera. Ela está abraçada com a avó , Dona Nair. A garota está desaparecida desde o começo deste ano. Após trabalhar em Belo Horizonte como faxineira e depois como lojista no setor de calçados, envolveu-se com o tráfico de drogas. Segundo comentários de conhecidos, Andréia tornou-se dependente química e passou a ser uma andarilha, cujo parecer é um grande mistério.

Na penumbra daquele quartinho de pensão, um homem que está ausente na foto, olha tristemente para o retrato. A história daquela família só pode ser contada por alguém que encare de frente a morte, a tortura, a prisão e a loucura. O homem que prepara-se para dormir pensa que as coisas precisam mudar. Amanhã ele terá que enfrentar uma longa fila de desempregados.

Observação: Esta é uma pequena obra de ficção. Apesar do pano de fundo ser inevitavelmente histórico, personagens e lugares foram inventados.

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