Por Flávia Biroli.
O futuro do feminismo, como projeto transformador, está na sua capacidade de situar-se claramente no campo da esquerda. Entendo que isso implica conectar as lutas feministas à crítica ao sistema capitalista. No momento atual, significa discernir entre as respostas à crise mundial do capitalismo que abrem caminhos para a justiça de gênero e as respostas que, diferentemente, implicam o aprofundamento das desigualdades e mais vulnerabilidade para as mulheres.
Fechamento de fronteiras para as pessoas e ação livre das grandes corporações em diferentes partes do globo, desmonte de direitos sociais e redução da proteção a trabalhadoras e trabalhadores, alargamento dos limites do debate público para que nele caibam “legitimamente” a expressão da misoginia, do racismo, da xenofobia e da homofobia: são movimentos que temos acompanhado e que, fica mais claro a cada dia, caracterizam essa quadra da história em que nos tocou viver.
Como estão situadas as lutas feministas nesse contexto? Que lutas estão sendo travadas quando se fala em justiça e igualdade de gênero?
A contestação do patriarcado ou da dominação de gênero pode ser tomada como característica do feminismo ao menos a partir dos anos 1960 – da chamada “segunda onda” do feminismo, que superaria a “primeira onda” (da luta por direitos iguais aos dos homens) ao tematizar e enfrentar a opressão contra as mulheres em diferentes dimensões da vida. Seria equivocado reduzir os feminismos a uma única direção, tanto na virada do século XIX para o XX quanto nas lutas que emergem a partir de meados do século XX. Mas há uma utilidade nessa caracterização em “ondas”: ela torna mais claro o redireccionamento das lutas pelo acesso a direitos para o enfrentamento crítico da opressão às mulheres em diferentes espaços, repensando a gramática dos direitos e os limites das democracias liberais. A dominação de gênero passaria, assim, a ser vista como estruturante das relações, das instituições e das normas.
Acompanhando a leitura que tem sido feita por Nancy Fraser, o feminismo da “segunda onda” emerge em meio aos movimentos contestatórios que denunciavam os limites do economicismo e o caráter antidemocrático do tecnicismo. A pressuposição de que todos os problemas são de ordem distributiva legava as questões de gênero, assim como as raciais, étnicas e da sexualidade, ao silêncio e à desimportância. Ao mesmo tempo, a representação da política como um espaço em que burocratas trabalham pelas melhores soluções técnicas impede que se tematize o bloqueio sistemático a uma das dimensões da cidadania, a da participação. O que está em questão é, portanto, também o exercício de influência política. Segmentos amplos da população têm sido alijados dos espaços em que normas e políticas são realizadas, em que são definidas prioridades para a alocação de recursos, privando-os também do reconhecimento como atores políticos competentes.
A atenção a esse tipo de exclusão também fez nascer do debate feminista teorias da democracia e da justiça de grande potencial crítico. Seu foco ultrapassa o gênero e elas se definem como críticas a formas estruturais de marginalização.
Mas esse potencial contestatório, voltando ao argumento de Nancy Fraser, teria sido enfraquecido pelo deslocamento da crítica ao economicismo e ao tecnicismo para um “imaginário culturalista”, que negligenciaria a dimensão político-econômica das opressões, mergulhando na agenda do reconhecimento identitário. Segundo Fraser, isso teria enfraquecido os movimentos em um contexto no qual avançavam as políticas neoliberais dos anos 1990, com promessas de liberdade que implicavam um recuo do Estado – do capitalismo organizado pelo Estado – e um avanço da lógica de mercado. Não é que o feminismo tenha mobilizado valores ou projetos de caráter neoliberal. O ponto, para Fraser, é que um estreitamento de foco teria reduzido sua potência crítica. Algo que ela percebe que estaria sendo remexido hoje, quando novos elementos na crise e novas disposições de luta se apresentam no cenário.
Mas como têm se configurado as lutas feministas nessas décadas recentes, no Brasil e na América Latina?
Começando por um breve panorama da posição relativa das mulheres, por aqui acompanhamos, ainda que um pouco tardiamente em relação ao norte global, a ampliação significativa do acesso das mulheres à educação e ao mercado de trabalho, ainda que o fato de serem hoje mais educadas do que os homens não tenha modificado as condições de desvantagem que enfrentam nas relações de trabalho: são maioria entre as pessoas que exercem trabalho precarizado e entre o contingente de desempregados. Além disso, recebem em média cerca de 24% da renda dos homens nas mesas ocupações. As mulheres também continuam a ser as principais responsáveis pelo trabalho doméstico e de cuidado, o que significa que seu acesso a tempo também é desigual, sendo esse um componente nas desigualdades no trabalho e na política.
Ao mesmo tempo, a ascensão de mulheres brancas e profissionalizadas a posições de poder no mundo empresarial, nas profissões liberais, na burocracia de Estado e no Judiciário ainda é um dado relativamente novo por aqui. Assistimos ao que Helena Hirata e Danielle Kergoat descreveram como o “aparecimento, pela primeira vez na história do capitalismo, de uma camada de mulheres cujos interesses diretos (não mediados como antes pelos homens: pai, esposo, amante) opõem-se frontalmente aos interesses daquelas que foram atingidas pela generalização do tempo parcial, pelos empregos em serviços muito mal remunerados e não reconhecidos socialmente e, de maneira mais geral, pela precariedade”. Mulheres negras e pobres estão na base da pirâmide social, e isso representa inclusive vantagens para mulheres melhor posicionadas, que podem contar com seu trabalho mal-remunerado para driblar a divisão sexual do trabalho. Essa divisão, as barreiras para o acesso à política, assim como a violência contra as mulheres e a criminalização do aborto, incidem sobre as mulheres negras e pobres de forma mais aguda porque não são contrabalançadas por vantagens que a branquitude e a posição favorável de classe oferecem.
Mas é preciso dizer que nos feminismos no Brasil e na América Latina a temática do reconhecimento identitário tem se apresentado há décadas articulada ao debate sobre o racismo estrutural, sobre as desigualdades de classe e sobre os efeitos das políticas neoliberais e da prevalência do livre-mercado sobre a vida das mulheres. Na imprensa feminista desde os anos 1970 e em encontros realizados a partir do início dos anos 1980, como os Encontros Feministas da América Latina e do Caribe e o I Encontro Nacional das Mulheres Negras, de 1988, a pauta foi atravessada pela crítica às desigualdades. Na “Carta aos Constituintes”, de 1987, a interpelação para que fossem suspensas as discriminações contra as mulheres foi acompanhada da defesa da reforma agrária e dos direitos sociais no âmbito do trabalho, da saúde, da educação e da sexualidade. Mais tarde, a “Plataforma Feminista”, de 2002, documento produzido para intervenção coordenada dos movimentos nas eleições daquele ano, apresentaria críticas ao neoliberalismo, situando o combate ao racismo juntamente com a defesa do direito ao aborto e da justiça e equidade de gênero.
É verdade que nos anos 1990 a lógica das Organizações não-Governamentais orientou parte importante das ações e que, desde os anos 2000, os movimentos estiveram mais próximos do Estado e, com isso, limitaram-se pela lógica de governo, sobretudo pelas alianças assumidas pelo Partido dos Trabalhadores no período. Mas mesmo uma olhada rápida nos documentos resultantes das Conferências Nacionais para Mulheres, ocorridas em 2004, 2007, 2011 e 2016, deixa ver uma agenda na qual a luta contra as desigualdades é aliada a uma agenda distributiva e de enfrentamento com o racismo. No mesmo período, os documentos das Marchas das Margaridas, que reuniram milhares de trabalhadoras do campo em Brasília em 2000, 2003, 2007 e 2011, são um exemplo da crítica feminista ao sistema capitalista e às diferentes dimensões da opressão às mulheres que o atravessam, a partir de olhares bem situados nas experiências locais.
Entre elas, mas também em outros movimentos pela América Latina, tem se dado ainda a incorporação de temáticas ambientais e de cuidado a partir da influência do pensamento decolonial, das lutas das populações indígenas e das mulheres do campo. Os conflitos são apresentados na oposição entre vida e capitalismo, posicionando o feminismo no primeiro polo e alertando para a deslegitimação de sua atuação quando suas lutas são rotuladas como pós-materiais. Nas palavras de Lilian Celiberti, trata-se de fortalecer no feminismo a imaginação de “um novo marco das relações humanas, afetivas, econômicas e sociais”, redimensionando o debate político e cobrando das esquerdas alianças que incorporem as agendas indígena, feminista e ecológica.
O que temos hoje é incerto nos seus desdobramentos. O feminismo nunca esteve tão presente na sociedade brasileira. Capilarizado, está em coletivos, manifestações e discursos de mulheres em todo o país, inclusive no interior. É visível na postura e na fala desenvoltas das garotas que ocuparam escolas e lideraram movimentos no Ensino Médio e das moças que estão à frente de ocupações nas Universidades por todo o Brasil. O interesse pelo tema se ampliou e há indícios de uma disposição para o enfrentamento de pautas nas quais os avanços têm sido limitados por aqui, como a do direito ao aborto. É algo que vimos na chamada Primavera Feminista em outubro e novembro de 2015, quando mulheres de todo o Brasil tomaram as ruas contra um projeto de lei que limitava o atendimento de mulheres violentadas, transformando a resistência pontual na primeira manifestação massiva pelo direito ao aborto no país.
Hoje vivemos um contexto em que as investidas contra a democracia têm sido cotidianas. A deposição da primeira mulher a chegar à Presidência da República abriu espaço para um grupo que interrompeu o diálogo com os movimentos sociais, aumentou a repressão contra esses mesmos movimentos e contra a liberdade de expressão política, e está empenhado na desconstrução de direitos sociais.
Temos de maneira clara nossa versão da aliança que tem crescido também em outras partes do mundo entre o conservadorismo “moral” e o neoliberalismo. Trata-se, nos dois casos, da investida contra direitos, embora se articulem por meio de discursos distintos: o eixo do primeiro é a “defesa da família”, o do segundo é a “austeridade fiscal”.
O primeiro pressiona pelo reordenamento de relações que se modificaram no cotidiano da sociedade, elegendo como alvo os movimentos feministas e LGBT (promotores da “ideologia de gênero”), enquanto o segundo, ao retirar direitos e reduzir equipamentos públicos, fragiliza as famílias reais e produz uma situação que aprofunda a vulnerabilidade das mulheres, responsabilizadas desigualmente pela infância, pelas pessoas doentes, pelos idosos, justamente por aqueles que ficam mais expostos quando o Estado se dobra à lógica de mercado.
As mulheres, em especial as mais pobres, são particularmente afetadas pela precarização do trabalho e pelo desmonte do Estado – que é desmonte das escolas, das creches, da saúde, da segurança pública. Na quadra da história em que estamos, ele não vem aliado a um discurso, ainda que seletivamente, libertário, mas anda junto com a intolerância e vem promovendo a misoginia, o racismo, a xenofobia e a homofobia em novos padrões, que fazem mais do que evocar o passado porque são reativos à agenda igualitária que de algum modo referenciou os debates públicos, ainda que como “o outro” de avanços anteriores das políticas de mercado.
Gostaria de deixar claro, assim, que não são apenas os feminismos que precisam assumir como seu o embate contra o neoliberalismo. A potência da esquerda, como campo, de se desdobrar em futuro depende da incorporação dessa pauta que já se é prioridade para os reacionários e que, nas ações deles, aparece claramente conectada a um projeto de ordem material e não pós-material.
Em uma conferência que fiz recentemente na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, um estudante me perguntou porque sempre se coloca a questão de como os feminismos contemporâneos, os coletivos de jovens mulheres e homens engajados na agenda de gênero, responderão a questões que foram colocadas por outros movimentos e a partir de outros contextos. Ele se referia diretamente à disputa pelo Estado, por interferir na política institucional.
Sem a pretensão de fornecer uma resposta acabada, acredito que a capacidade de renovação vem da crítica às formas de atuação política que marcaram os feminismos nas décadas recentes. Mas acredito também que se trata de disputar um projeto de mundo, de sociedade, no qual a dignidade humana tenha algum espaço. E isso não se dá, parece-me, fora da política. Não podemos, parece-me, nos dar ao luxo de virar as costas aos espaços da política institucional enquanto neles, pela ação e pela inação, outros seguem orientando o modo como o Estado impacta nossas vidas. E refazer a política – no cotidiano e nas instituições – depende, acredito, de uma oposição robusta ao projeto neoliberal. Em sua forma atual, ele responde à crise econômica, política e social instaurando (ou reforçando) o Estado de Exceção, fortalecendo o aparato repressivo e estimulando as pessoas a uma sensibilidade seletiva que vai sendo alimentada pela intolerância. Assim, dá passos rumo a um desmonte que não é apenas dos direitos e do respeito às mulheres, mas de um futuro possível orientado por valores de justiça e igualdade.
O cenário mudou muito desde quando Fraser publicou essa reflexão, mas concordo especialmente com o que deixo aqui com pretensão, sim, mas também com uma enorme empatia pelas lutas que têm se organizado: para escapar da lógica neoliberal e lhe fazer frente, para situar-se firmemente no campo da esquerda, o feminismo precisa “reconectar as lutas contra a sujeição personalizada à crítica ao sistema capitalista”.
REFERÊNCIAS
CELIBERTI, Lilian (2009). La izquierda em el gobierno: comparando America Latina y Europa. Bruxelas: Fundación Rosa Luxemburg; pp. 137-146.
FRASER, Nancy (2013). “Feminism, capitalism, and the cunning of history”. In: Fortunes of feminism: from state-managed capitalism to neoliberal crisis. New York: Verso; pp. 209-226.
HIRATA, Helena e Danièle KERGOAT (2007). “Novas configurações da divisão sexual do trabalho”. Cadernos de pesquisa, vol. 37, n. 132; pp. 595-609.
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Flávia Biroli é professora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, onde edita a Revista Brasileira de Ciência Política e coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades – Demodê, que mantém o Blog do Demodê, onde escreve regularmente. É autora, entre outros, de Autonomia e desigualdades de gênero: contribuições do feminismo para a crítica democrática (Eduff/Horizonte, 2013), Família: novos conceitos (Editora Perseu Abramo, 2014) e, em co-autoria com Luis Felipe Miguel, Feminismo e política: uma introdução (Boitempo, 2014).
Fonte: Blog da Boitempo.