“Feliz Aniversário”, Clarice Lispector. Por Edna Garcia Maciel

A última Ceia, 1490. Leonardo da Vinci, Wikipédia, a Enciclopédia Livre, 2021. Disponível em: https://pt.wikipedia.org./wiki/Leonardo_da_Vinci. Acesso em: 24, agosto, 2021.

Por Edna Garcia Maciel, para Desacato.info

O conto de Clarice Lispector[i], revela impiedosamente relações de uma típica família da classe média brasileira. Toda a história se passa no dia em que uma anciã está fazendo oitenta e nove anos. Desde a descrição do local da festa até o término desta, a autora vai construindo magnificamente a trama poderosa dos laços que movem seus personagens. A velha mãe é quem diz o indizível, aquilo que ninguém ousa expressar a não ser em suas vestes, gestos, posturas e furtivos olhares, tal como convém a uma boa e civilizada família: a sua família.

Seu conto inicia com a chegada dos familiares que vão ocupando lugar em cadeiras enfileiradas ao longo das paredes da sala, com a aniversariante sentada, – desde as duas horas -, à cabeceira da mesa com um bolo açucarado no centro. Tudo fora previamente organizado por sua filha Zélia, a única mulher dos seus seis filhos que, há anos cuidava sozinha da velha mãe. Quem chegou primeiro, foi a nora da Olaria vestida de azul-marinho com paetês, pois a visita seria também exibição de seu novo status: agora, estava “bem de vida”. O marido, filho da velha, João Maximino, não veio porque não queria ver os irmãos dos quais havia surrupiado gorda parte da herança. Mandara a mulher e seus três filhos para não romper de vez os laços: as meninas, com vestidos de cor rosa que as infantilizavam, e o menino, acovardado com um terno novo sufocante. A nora da Olaria, depois de cumprimentar a todos da casa, sentou-se numa cadeira e emudeceu com sua postura de ultrajada.

Depois, apareceu a nora de Ipanema com dois netos e a babá. Foi sentar-se do lado oposto das cadeiras fingindo cuidar do bebê para não encarar a concunhada da Olaria. Seu marido viria depois. Quando a nora de Ipanema pensou que não suportaria nem um minuto a mais estar sentada defronte da nora da Olaria, entraram José e sua família. De repente, depois das quatro horas, a sala foi ficando cheia de gente ruidosa e afobada arrastando crianças como se estivessem esperando embaixo o momento de inaugurar a festa. Quanto à aniversariante, ninguém podia saber se ela estava alegre, pois seu rosto não a interpretava mais. Postada à cabeceira da mesa, parecia oca: apenas uma mulher velha, grande, magra e imponente.

Oitenta e nove anos! Falou José, o filho mais velho, agora que Jonga tinha morrido. Todos fitaram a aniversariante. Alguns pensaram que ela era um recorde. Mas, a velha não se manifestava. Permanecia muda e aparentemente alheia àquilo tudo. Alguns trouxeram presentes: daqueles inúteis e bem econômicos que não teria nenhuma serventia para a velha ou para seus filhos. A dona da casa amarga e irônica guardava os presentes. A velha não se mexia. Concluíram que não adiantava se esforçarem. Então, deram de ombros e continuaram a fazer a festa sozinhos, comendo sem fome, sanduíches que Zilda havia servido como escrava e que nenhuma cunhada se dispôs a ajudá-la.

Então, José cantou bem forte a música de parabéns e todos o acompanharam. Enquanto cantavam, a aniversariante parecia meditar diante da vela acesa. O bisneto mais novo apagou a vela com uma cusparada potente. Todos bateram palma e deram vivas. A aniversariante apenas olhava o bolo apagado, grande e seco. Alguém disse: para o bolo vovó! De repente, a velha pegou uma faca e deu a primeira talhada com punho de assassina. Horrorizada, a nora de Ipanema segredou: que força! Zilda comentou que a mãe subia as escadas com mais fôlego do que ela. Depois da primeira talhada como se fosse a primeira pá de terra que tivesse sido lançada, todos se aproximaram com pratos na mão. Quando viram, a aniversariante estava no seu último bocado. A festa estava terminada.

Na cabeceira da mesa, a toalha manchada de coca-cola, o bolo desabado, copinhos e guardanapos sujos espalhados – ela era a mãe. Eles se mexiam agitados fazendo ruídos. E, de repente, a aniversariante ficou mais tesa na cadeira e mais alta. Como a presilha no pescoço a sufocasse, e ela era a mãe velha – impotente na sua cadeira – sentia enorme desprezo por todos. Pensou que seus filhos, netos e bisnetos não passavam de carne de seu joelho. Rodrigo, seu bisneto de sete anos, era o único a ser carne do seu coração. Aquele menino com carinha dura e viril seria um homem. E pensou: Como!? Sendo tão forte pudera dar à luz aqueles seres opacos, de braços moles e rostos ansiosos? Ela que era forte, que se casara com um homem bom que respeitara e honrara, e que lhe dera esses filhos. O tronco era bom. Mas, produzira aqueles azedos e infelizes frutos. Como pudera dar à luz aqueles seres risonhos, fracos e sem austeridade? A raiva roncava em seu peito vazio. Olhou-os cheia de cólera. Eles  pareciam ratos se acotovelando. Decidida, virou a cabeça e cuspiu no chão. A dona da casa ficou mortificada. Envergonhada, evitou olhar para os outros. Viu que os desgraçados haviam se entreolhado vitoriosos como se coubesse a ela dar educação à velha. Faltava pouco para dizerem que ela não cuidava da mãe, ignorando seu sacrifício. Zélia se apressou em dizer que a mãe nunca tinha feito aquilo. E a mãe pensou: “quando o galo cantar pela terceira vez, renegarás tua mãe”. A Profecia da Negação é feita por Jesus na Última Ceia. Ele diz a Pedro que nessa noite, ele o negaria três vezes, antes que o galo cantasse. Pedro lhe responde que se fosse preciso morreria por Jesus, mas o negou. Todos apóstolos disseram o mesmo, inclusive Judas[ii].

Hoje em dia, é considerado natural a negação de idosos: há mil desculpas. Filhos internam seus pais em abrigos sem sequer ouvirem o galo cantar. O filme, “A Balada de Narayama”[iii], mostra uma aldeia na região de montanhas do Japão onde havia uma tradição: aquele que completava setenta anos devia deixar a vila e ir até o topo da montanha Narayama esperar a morte. Um homem que não suportava a ideia de perder a mãe, adiou o quanto pôde o cumprimento da tradição. E, quando a avó foi levada, o neto egoísta ficou contente em saber que a avó iria morrer: uma pessoa a menos para repartir a escassa comida. Por todo lado, “velhos inúteis” costumam ser abandonados de várias formas.

Zilda suavizou sua vergonha quando viu que todos abanaram a cabeça achando natural que a velha, agora, não passasse de uma criança. Todos olharam pesarosos a aniversariante. A mãe só filosofava: os seus meninos, agora crescidos com mais de cinquenta anos, ainda conservavam traços bonitinhos, mas haviam se casado mal com aquelas mulheres de pernas finas e vaidosas – com colares falsos: de mulher que não aguenta o tranco. E mais irritada ficava com aquelas mulherzinhas cheias de brincos falsificados nas orelhas. A raiva a sufocava. De súbito, ela pediu um copo de vinho para sua neta gordinha e baixinha. A mocinha perguntou se o vinho não ia lhe fazer mal. A velha explodiu raivosa e amarga: o diabo que carregasse aquela corja de maricas, cornos e vagabundas. A menina não sabia o que fazer na festa interrompida. Olhou para todos, mas nenhum rosto se manifestou. Parecia que todos tinham ficado cegos, surdos e mudos. Desamparada e divertida, a neta astuciosa colocou no copo dois dedos de vinho. Inexpressivos, todos esperavam pela tempestade. Porém, a aniversariante sequer tocou no vinho. Seu olhar ficou frio e silencioso como se nada tivesse acontecido.

Todos se entreolharam polidos e, com estoicismo, recomeçaram a falar. A nora da Olaria olhava criticamente os vestidos sem corte, sem enfeites e a mania das outras mulheres em usarem roupas negras com um colar de pérolas dizendo que estavam na moda. Na verdade, era por pura economia. Ainda, examinou de longe os sanduiches quase sem manteiga que quase não tocou. Novamente a festa terminou e as pessoas ficaram sentadas benevolentes. A noite havia chegado. Uma nora disse que tinham que ir e várias se ergueram. A aniversariante recebeu um beijo cauteloso de cada um: como se sua pele estranha fosse uma armadilha. Impassível, recebeu piscando, palavras atropeladas que tentavam dar efusão final ao que não era senão, passado. Para aqueles que a olhavam mais uma vez à porta de saída, a aniversariante era apenas o que parecia ser: uma idosa sentada à cabeceira da mesa imunda, com a mão fechada sobre a toalha como se tivesse encerrando mais um ciclo, e muda: o que era a sua última palavra. Com um punho fechado sobre a mesa, nunca mais ela seria apenas o que pensasse. Sua aparência finalmente a ultrapassara e superando-a, agigantava-a, serena. O punho duro e fechado sobre a mesa dizia para a infeliz, desesperada e perplexa Cordélia, sua nora, que a velhice era um sinal de que uma mulher deve, num ímpeto dilacerante, agarrar a sua derradeira chance de viver.

Relações familiares, ao contrário do vinho, quanto mais antigas, mais amargas se tornam. Afinal, a família não passa de um espelho da sociedade moderna: um terreno de muitas forças em luta. Nem sempre, o vencedor é o melhor, o mais correto ou o honrado. Mas, sim, os espertos: seres que nunca dormem porque só vivem tramando sua “penúltima” velhacaria contra todos. Jamais conhecerão a nobre vida das “Vantagens de ser Bobo

[i] LISPECTOR, Clarice. Feliz Aniversário. In: Laços de Família: Contos. Rio de Janeiro, Rocco, 1998. p. 54-67

[ii] Negação de Pedro. Wikipédia, A enciclopédia Livre, 19 de agosto, 2020. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Nega%C3%A7%C3%A3o_de_Pedro. Acesso em: 24, agosto de 2020.

[iii] O filme,  A Balada de Narayama, foi dirigido por Shôhei Imamura. Ganhou a Palma de Ouro, no Festival de Cannes, em 1983. Petra Belas Artes. Disponível em: https://www.belasartesalacarte.com.br/a-balada-de-narayama. Acesso em: 24, agosto, 2021.

Edna Garcia Maciel é natural de Igarapava, São Paulo. Foi professora e pesquisadora da UFSC. Doutora em Educação. Atualmente, participa do Núcleo de pesquisa Transformações no Mundo do Trabalho, da UFSC. Livros literários são parte do seu viver.

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.