Por Celso Martins.
Dois eventos católicos neste sábado (28.8), em Ratones e em Santo Antônio de Lisboa (Florianópolis-SC), ilustram bem a força da religiosidade popular entre os descendentes dos imigrantes açorianos e dos que foram influenciados por essa cultura. Em Ratones será reinaugurada às 15 horas uma controversa capela erguida em 1924, motivo de longa tensão entre os fiéis locais e as autoridades religiosas. Recentemente, o padre anunciou a sua demolição, o que não chegou a acontecer devido à ação dos moradores. Em Santo Antônio de Lisboa prossegue mais uma Festa do Divino Espírito Santo e Nossa Senhora das Necessidades, festejo proibido pela cúpula católica no início do século 20, mas que se manteve por persistência dos irmãos da Irmandade do Divino e outros católicos.
Ratones rebelde
A primeira inauguração da capela dedicada a Nossa Senhora dos Remédios aconteceu no dia 16 de outubro de 1924, com missa celebrada pelo vigário padre João Casale e a presença de cerca de 1.500 pessoas, conta o historiador Sérgio Luiz Ferreira em seu livro “Histórias quase todas verdadeiras – 300 anos de Santo Antônio e Sambaqui”.* No capítulo “Ratones – a comunidade rebelde”, o autor narra as difíceis relações entre os católicos locais e as autoridades eclesiais.
“A capela foi construída em terreno particular”, escreve Ferreira, mas não foi benta porque o zelador e responsável por sua construção, Antônio José da Rosa, não aceitou doar o imóvel à Mitra Episcopal. A situação permaneceu assim até a década de 1930, quando o então arcebispo visitou o “oratório particular” de Ratones.
Na década de 1940 foi a vez do padre Amilcar Gabriel sentir na pele a independência dos católicos locais. Primeiro em 1947, quando, ao anunciar o desejo de visitar a comunidade, recebeu um não como resposta. “Só querem padre para as festas”, anotou. Também não enviaram condução para que fosse a Ingleses. “Pelo que parece o Norte da Ilha é mais arredio da religião”, deixou registrado.
Ditames de Roma
Entretanto, nesse mesmo ano de 1947, padre Amilcar conseguiu chegar em Ratones, acompanhado do cônego Frederico Hobold e membros da “Liga de São Pedro”. Deveria celebrar missa às 10 horas, conforme aviso que mandara distribuir, mas ela começou com meia hora de atraso, acompanhada por cerca de 50 pessoas levadas pela “curiosidade”. O padre anotou que os moradores de Ratones eram “rebeldes”, o “povo relaxado” e os encarregados da capela “encrenqueiros” (e outros adjetivos). Para piorar as coisas ele teve uma “pousada horrível na sacristia”.
A gota d’água da queda de braços entre o padre Amilcar e a comunidade viria dois anos depois. Em meados de novembro de 1949 ele avisou aos moradores que no dia 29 visitaria a capela, tendo se apresentado no dia previsto, mas a capela estava “propositalmente” fechada. Os encarregados haviam saído de casa e as pessoas que ele encontrou “não quiseram dar a chave”. Por isso não houve missa e o padre Amilcar deixou Ratones praguejando: só voltaria ao lugar por ordem expressa do arcebispo e proibiu o sacristão de fazer novenas de festas.
A “atitude rebelde” dos católicos de Ratones, segundo Ferreira, não resulta de simples desobediência, ignorância ou preconceito, como acusara o padre. “Ela é o grito da resistência da religiosidade popular, característica fundamental da religião ibérica”, diante do processo de “romanização” da igreja ocorrido no início do século 20, ou seja, “a adequação da religião e de suas práticas aos ditames de Roma, retirando todas as características de religiosidade popular”.
Divino proibido
A “romanização”, segundo a mesma fonte, “consistia em proibir as chamadas manifestações populares como terno-de-reis, folia do divino e certas novenas. Pretendia acabar com a dimensão profana das festas religiosas, como os ‘malfadados bailes’, como dizia padre Amilcar”. A idéia era “transformar a religião católica em algo mais racional e conforme a doutrina oficial”.
Um dos que mais se dedicou a essa cruzada contra a religiosidade popular foi frei Evaristo Schürmann que, em 1938, publicou o documento denominado “Peditório com a Bandeira”, repetindo o que havia dito em 1910: “Continuam proibidas as chamadas folias, bem como as devoções feitas em casas particulares com a presença das bandeiras”. Conforme Ferreira, “a igreja proibia que o peditório da bandeira fosse acompanhada da cantoria, chamada de Folia do Divino”.
As novenas continuaram, mas a folia não, pelo menos na maioria das comunidades. “Não era fácil para a religiosidade popular continuar a sobreviver tendo os padres como adversários”. Mais recentemente, após o Concílio do Vaticano II, a igreja passou a valorizar “essas manifestações religiosas e tem ressuscitado em muitas paróquias as festas, novenas e folias do Divino”.
O que acontece no distrito de Santo Antônio de Lisboa é um exemplo vivo da permanência dessa religiosidade popular, renovada em alguns aspectos, mas que mantém vivo o sentido do perdão e da doação. Uma festa que inova com o Cozido e a Farinhada do Divino, por exemplo, ao mesmo tempo que mantém a simbologia principal (a pomba, a coroa, a bandeira, a massa, as novenas, o peditório, a irmandade, o casal imperial), assegurando assim sua continuidade.
* FERREIRA, Sérgio Luiz. “Histórias quase todas verdadeiras – 300 anos de Santo Antônio e Sambaqui”. Florianópolis: Editora das Águas, 1998.
Saiba mais
1) “A Folia Proibida: Imposição de Disciplina e Ordem na Festa do Divino”. Márcia Alves. Aborda as mudanças ocorridas na festa do divino em Florianópolis, pertencentes a um processo disciplinador dos hábitos e costumes da população entre 1890-1930. Íntegra.
2) “Festas do Divino no Brasil”. Cáscia Frade. Textos Escolhidos de Cultura e Arte Populares, vol.2. n. 2, 2005. Leia aqui.
3) “Culto ao Espírito Santo no Brasil Meridional”. Joi Cletison Alves, historiador e diretor do Núcleo de Estudos Açorianos (NEA-UFSC). Confira.
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