Por Tiago Miotto, da Assessoria de Comunicação do CIMI.
Indígenas do tekoha Kokue’y, em Ponta Porã, no Mato Grosso do Sul, relataram que foram assediados por um fazendeiro para deixar a retomada onde há mais de 20 anos aguardam pela demarcação de seu território. Segundo os Guarani Kaiowá, o proprietário da área, que é reivindicada por eles como parte de sua terra tradicional, ofereceu dinheiro para que saíssem de lá imediatamente. Caso não aceitassem, teriam que deixar o local “na marra”, relatam os indígenas.
Moradores do tekoha contam que o fazendeiro foi à aldeia no dia 2 de outubro, uma sexta-feira, e pressionou os indígenas para que abandonassem a área. Na segunda-feira seguinte (5), ele retornou e assediou novamente a comunidade.
“Ele voltou com o filho e a nora, dizendo que tinha trazido o dinheiro. Eu ia para a cidade, e quando saí de casa vi o carro estranho na frente. Ele pressionou e disse que iria pagar o dinheiro para sair no mesmo dia”, relata Ava Poty Rendy I, morador do Kokue’y.
“Ele disse: ‘eu trouxe o dinheiro para vocês, R$ 80 mil, para vocês saírem dessa aldeia. Eu pago imposto dessa área, e vocês não pagam nada, só ficam à toa aqui, só nos prejudicam’”, prossegue o Guarani Kaiowá.
Em um vídeo gravado pelos indígenas no dia 5 (abaixo), é possível ver o fazendeiro falando e mostrando algumas folhas de papel para os indígenas – segundo eles, documentos do processo de reintegração de posse movido pelo proprietário contra a comunidade, que corre na Justiça.
Em torno do minuto 1’30 do vídeo, é possível ouvi-lo dizendo, enquanto mostra os documentos: “Aqui tem uma parte que fala que foi ganha a reintegração de posse. Aí que tá. Daqui uns dias, se começar a mexer e ganhar, aí […] vai vir aqui com a Polícia Federal e vai tirar. Aí eu não dou um centavo para ninguém. Vem aí, vem com carregadeira, com trator, joga tudo […] no chão e tem que sair”.
Segundo os indígenas, o processo foi usado como argumento para convencê-los de que, caso não aceitassem sua proposta, acabariam despejados – e sem o dinheiro. Entre os Guarani Kaiowá, a ameaça foi compreendida como de expulsão imediata, e o pânico tomou conta da comunidade.
“Ele falou assim, fazendo uma ameaça já, e a gente ficou muito preocupado com isso”, conta Ava Poty Rendy I. “Eu falei para ele que não podemos aceitar esse dinheiro, que temos que comunicar tudo isso para as autoridades”.
No dia seguinte, os indígenas relataram a situação numa reunião com o Ministério Público Federal (MPF), que instaurou um inquérito civil para apurar os “relatos de ameaças com pressões econômicas” do fazendeiro e o “estágio do procedimento de demarcação da terra indígena Kokue’y”.
A procuradoria da República em Ponta Porã também emitiu uma recomendação ao fazendeiro, indicando que ele “se abstenha de adotar medidas que possam implicar constrangimento, ameaça ou pressão econômica, política ou de qualquer natureza sobre integrantes da Comunidade Indígena Kokue’y”.
Caso tenha interesse em apresentar “propostas lícitas” para um acordo em busca de boa convivência, o MPF afirma que o fazendeiro deve fazer isso “com a oitiva prévia e informada de toda a comunidade, com participação das demais partes naqueles autos e com a devida assistência jurídica apresentada pela comunidade, comunicando previamente ao MPF”.
Reintegração de posse
Cerca de 33 famílias, com mais de uma centena de pessoas, entre adultos, crianças e idosos, vivem no tekoha Kokue’y. A aldeia ocupa aproximadamente 120 hectares, a maior parte deles sobre a propriedade do fazendeiro que pressionou os indígenas.
Essa área foi estabelecida a partir de uma retomada feita no ano 2000 pelos Guarani Kaiowá, durante o processo de luta pela demarcação do território. Ao longo dos anos, a comunidade conquistou melhoria nas condições e na estrutura da aldeia: hoje, ela possui uma escola, poço artesiano e diversas casas, além de roçados de mandioca, bananeiras e outros alimentos cultivados para sua subsistência.
O processo de reintegração de posse movido pelo proprietário tramita na Justiça desde 2001. Em 2019, ele obteve uma decisão que acatou seu pedido, mas determinou que a execução do despejo poderá ocorrer apenas depois que o processo transite em julgado – ou seja, somente depois que todos os recursos em defesa dos indígenas estejam esgotados.
O próprio MPF recorreu da sentença, e sua apelação ainda não foi analisada. Esta situação, segundo o órgão, “torna ilegal qualquer ação no sentido de determinar a saída da comunidade daquela região”.
“Fomos expulsos duas vezes daqui. Mas sempre voltamos, porque o nosso único lugar é esse aqui mesmo, herança do nosso pai, do nosso bisavô. Eu estou com 70 anos, nascido e criado aqui”
“Num canto, igual a um tatu”
Já faz mais de vinte anos que os Guarani Kaiowá esperam pela demarcação do território que abrange o tekoha Kokue’y, próximo ao rio Apa. Segundo Ava Verá, liderança septagénaria do tekoha, os indígenas sofreram muitas pressões e tentativas de expulsão ao longo das décadas, enquanto viram seu território diminuir, retalhado pelas cercas das fazendas e coberto por lavouras.
“Minha mãe e meu pai nasceram aqui mesmo, nós somos nativos daqui. Minha mãe também fala: ‘vou sepultar junto com o meu velho, onde morreu o seu pai’”, afirma Ava Verá. Sua mãe, anciã de 102 anos de idade, fez uma forte fala em Guarani na audiência da comunidade com o MPF.
“Fomos expulsos duas vezes daqui”, explica o Kaiowá. “Mas sempre voltamos, porque o nosso único lugar é esse aqui mesmo, herança do nosso pai, do nosso bisavô. Eu estou com 70 anos, nascido e criado aqui”.
Segundo os indígenas, a área, cercada por monoculturas de cana de açúcar e soja, guarda poucos resquícios de mata. Além disso, eles relatam que outro fazendeiro proibiu o acesso a uma área de reserva legal onde costumavam ir para caçar e pescar no rio Apa.
Apesar das pressões, Ava Verá também explica que não aceita a proposta de deixar a área. “Aí não dá, não adianta a gente sair por dinheiro. Vai prejudicar todo mundo. Daqui, para onde que a gente vai? Porque está tudo cercado, não tem um vão para a gente ir. Hoje o lavoureiro passou por cima, desmatou tudo, acabou com a nascente, e nós ficamos num canto, igual a um tatu”, afirma a liderança Kaiowá.
“A gente espera essa demarcação, porque estamos nesse lugar, do jeito que foi deixado. A gente está aí, plantando muita coisa, criando algum bichinho para as crianças comer. Mas o fazendeiro está começando a nos cercar”, relata.
Em 2002, a Funai constituiu o Grupo Técnico responsável pelo estudo dos limites da Terra Indígena Kokue’y. A demarcação, entretanto, estagnou.
Ainda a omissão
Em 26 de setembro de 2002, a portaria de número 957 da Fundação Nacional do Índio (Funai) constituiu o Grupo Técnico responsável pelo estudo dos limites da Terra Indígena (TI) Kokue’y. A demarcação, entretanto, estagnou.
Cinco anos depois, em 2007, Kokue’y foi uma das áreas incluídas no Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) firmado entre a Funai e o MPF, que buscava alternativas para superar a morosidade do Estado e resolver os conflitos fundiários envolvendo os Guarani e Kaiowá no Mato Grosso do Sul.
Diversas áreas reivindicadas por esses povos foram reunidas em sete terras indígenas, organizadas conforme as bacias dos rios – os pegua, referência geográfica básica para os Guarani e Kaiowá.
O TAC estabelecia um prazo de dois anos para a conclusão dos estudos de identificação e delimitação das terras e determinava que os procedimentos demarcatórios fossem encaminhados ao Ministério da Justiça até abril de 2010, sob pena de multa diária de R$ 1.000.
Treze anos depois, apenas três relatórios foram publicados e nenhuma das demarcações foi concluída. Em 2014, a multa da Funai pelo descumprimento do TAC já somava R$ 1,7 milhão, em valores da época.
No TAC, Kokue’y foi incluído na TI Apapegua, que compreende também os tekoha Kandire, Jaguari, Mbakaiowa, Syvyrando, Damakue, Ita e Cabeceira Comprida. O Grupo Técnico para a identificação da terra indígena foi constituído pela Funai em julho de 2008. Doze anos depois, segundo o site órgão, ela ainda está “em estudo”.
Enquanto a multa segue acumulando e as demarcações continuam paralisadas, os Guarani e Kaiowá sobrevivem em pequenas áreas, pressionados pelo agronegócio e sem acesso a direitos básicos.
“Esse tipo de pressão é comum, já aconteceram várias situações parecidas. Fazendeiro oferece dinheiro e depois aparece com trator para derrubar as casas. Mas nós nunca vamos aceitar dinheiro em troca da terra, porque o dinheiro acaba, mas a terra não. Nós precisamos da terra, para cuidar dela, e a terra precisa de nós, porque ela também cuida de nós. Por isso, dinheiro nenhum paga por ela”, afirmou Eliseu Lopes, que representou a Aty Guasu – Grande Assembleia Guarani e Kaiowá na reunião dos indígenas com o MPF.
No Kokue’y, conta Ava Poty Rendy I, os indígenas aguardam há anos por reparos na escola da aldeia. A situação se agravou depois que a construção foi destelhada por um vendaval, em maio deste ano. A comunidade também cobra a construção de um posto de saúde, enquanto segue à espera da demarcação do território.
“Hoje o que nós pedimos é apoio”, resume o líder Ava Verá.