*Por Jeison Karnal.
No interior gaúcho, lá pelos Anos 80, era coisa das mais difíceis achar um “orelhão” por perto. Comprar uma linha da extinta CRT custava uma fortuna, poucas famílias e entidades do campo conseguiam acesso ao tão sonhado telefone fixo. Tempos sem WhatsApp, e-mail, ou qualquer outro tipo de comunicação instantânea viável. Desafio monumental e arriscado articular de forma discreta a marcha de um verdadeiro formigueiro humano vindo de 32 municípios do Norte e Noroeste do Estado, para um único endereço. O destino? Uma propriedade rural de 9,3 mil hectares localizada na região de Pontão, município de Sarandi, no Noroeste do Estado. A ação surpresa envolveria nada menos que 1,5 mil famílias de pequenos agricultores, com horário cronometrado de saída dos caminhões e chegada ao “ponto zero”. As estratégias para enganar a polícia ao longo do trajeto não poderiam falhar ou toda a operação restaria comprometida.
É aí que o chope, a mais popular das bebidas fermentadas, acaba tendo um papel nessa história. Em 1985, três dias antes do Dia D, em um Festival de Chope que reunia gente de toda a região no município de Ronda Alta, do lado de Sarandi e a cerca de 370 quilômetros de Novo Hamburgo, líderes do grupo de agricultores definiam os últimos ajustes no plano para o primeiro grande embate da reforma agrária no país: a ocupação da Fazenda Annoni, que completa 34 anos nesta terça-feira, 29.
O corte na cerca
Foram cem horas entre o planejamento da ocupação e o primeiro corte na cerca. A pequena guarnição formada por sete brigadianos, encarregados da segurança pública na cidade, interceptaram os primeiros sem-terra há dois quilômetros da fazenda. Pouco puderam fazer: não paravam de chegar mais e mais caminhões durante toda a madrugada. Pressionados pelo grupo, os PMs cederam à multidão e abriram caminho para que o comboio dominasse a terra prometida pelo Governo Sarney e que esbarrava em disputas judiciais.
Encontramos remanescentes e familiares dos protagonistas da mais emblemática ocupação de terras no Estado que hoje vivem em lotes legalmente conferidos pela União, nos assentamentos no município de Nova Santa Rita, ao lado de Canoas. Quase quatro décadas depois daquela ação ousada, como andam, como estão e o que pensam os agricultores que enfrentaram a precariedade da vida sob lonas, encararam a polícia e a lei, dividiram a opinião pública por todo o país e ergueram a bandeira da reforma agrária em nome do que consideravam inalienável: a tão sonhada terra prometida. Em parte do RS havia pequenos agricultores que trabalhavam por um prato de comida em fazendas maiores. O maquinário também substituía a mão-de-obra.
Sarney e a Reforma Agrária
Sem sucesso, o vice que tomara emprestado a faixa presidencial tentava acalmar os ânimos no campo. José Sarney instituíra, em março de 1985, o Ministério da Reforma e do Desenvolvimento Agrário. Passados alguns meses, em 10 de outubro, assinava o Plano Nacional de Reforma Agrária. A democratização do país deitava um sono intranquilo com o quadro grave de diverticulite do titular, Tancredo Neves (boletins de saúde amenizavam a situação real).
Compromissos estratégicos firmados para o Brasil poderiam sofrer uma reviravolta política. Sarney citava Tancredo nos discursos, faziam questão mostrar-se afinado aos desejos do escolhido pelo colegiado eleitoral, em janeiro do mesmo ano. “Quando o presidente Tancredo Neves esteve com o Papa João Paulo II ouviu dele apenas um pedido: a realização da reforma agrária no Brasil”, reafirmava ao lado do ministro Nélson Ribeiro, que tinha bom trânsito na Comissão Pastoral da Terra (CPT), órgão vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), duas fortes entidades de congregação dos anseios dos pequenos agricultores e os sem-terra.
Capim Annoni: uma praga no pampa gaúcho
Conforme a doutora Simone Lopes Dickel, que pesquisou o impasse jurídico em torno da desapropriação da fazenda, desde os Anos 70 a Família Annoni e a União discutem o tema. “A Fazenda Annoni compreendia uma área de mais de 16 mil hectares. Em 1960, para que a fazenda não fosse desapropriada, a área foi subdividida, passando-a para o nome de seus filhos e netos”, menciona em artigo apresentado em 2015, em Florianópolis. “A pecuária era a atividade predominante, com destaque para a criação de gado de corte. No pasto foi introduzido o famoso ‘Capim Annoni’, que apareceu para ser uma solução para a alimentação do gado e acabou virando um grande problema.”
Noite de Lua Cheia
Noite de lua cheia, 29 de outubro de 1985. A ocupação da fazenda se daria entre 4h30 e 6h. Eram dois locais de encontro: um perto da Annoni e outro entre a comunidade de Encruzilhada Natalino e Sarandi. Pouco antes da uma da madrugada naquela terça-feira, o rapazote de nome Marli Castro, de 29 anos, partiu num dos caminhões lonados para varar a madrugada na estrada até uma encruzilhada nas voltas da Annoni. A caçamba apinhada de gente (e de víveres) balançava como um navio na tempestade.
Um grupo de 60 famílias saía de Tenente Portela, três horas de viagem, escondido sob as coberturas dos veículos. Alguns trechos de “picada” sem ligar os faróis. O veículo desviava por dentro de lavouras. Havia códigos para todos os veículos se reconhecerem na escuridão: três sinais de luz para identificar quem era “companheiro”. Ramos verdes pelo caminho sinalizando que estavam perto, no caminho certo. Às duas horas seria desencadeada a ação surpresa que mudaria a posse do “latifúndio”.
1992
Foi o ano em que as primeiras famílias foram oficialmente assentadas nas terras da Fazenda Annoni pelo Instituto Nacional da Reforma Agrária, o INCRA. Dos 450 que receberam lotes, 423 mantém atividade rural na área.
Um pedaço de terra, uma chance de vida
Cerca de 180 quilômetros distante de Marli, em outro caminhão com mais 22 famílias, estava a jovem Clarisse de Mattos, 19 anos na época. Deixava a cidade de Santo Ângelo para trás em sete horas de viagem na companhia do pai e da mãe em busca de uma vida nova sobre as terras da Annoni. Em ‘questão’ na Justiça desde 1972 por conta de dívidas da família Annoni com o Estado, com tamanho equivalente a nove campos de futebol, a fazenda nem se comparava ao pedaço de chão que os dois dispunham na sua terra natal. O que tiravam dava para se alimentar e vender o pouco excedente.
“Éramos onze irmãos para trabalhar em 11 hectares em Tenente Portela,” recorda o agricultor Marli, hoje com 63 anos. Morador de Nova Santa Rita, ao lado de Canoas, ocupa um cargo político e planta hortaliças em 22 hectares no assentamento Itapuí, o dobro do que possuía. “Sou da localidade de Burro Magro, não havia luz elétrica e só conheci televisão aos 17 anos.”
Marcas da terra
Geni Reginaldo de Mattos, 80, é uma vovó que cozinha bem e cuida com amor do marido, Euclides de Mattos, 83, acamado em decorrência do Alzheimer. Os olhos azuis ainda guardam o passado de luta pela terra. Aos 10, ela começou na roça. O casal esteve na Annoni em 1985 e conquistou o direito de um pedaço de chão anos depois.
DEPOIMENTO
Isaías Vedovatto, assentado da Annoni, o homem que cortou a cerca
“Fui eu que cortei a cerca da entrada da fazenda naquela noite. Na década de 80 tinha uma crise econômica, no interior do país era muito forte, com Ditadura Militar. O êxodo rural era muito forte, a agricultura não ia bem. Tempo de surgimento das organizações na sociedade. Havia mobilização popular, mesmo com o cenário de Ditadura. Na igreja havia uma visão progressista das comunidades eclesiásticas de base. Sindicatos, luta pela terra. Experiências em assentamentos, criando núcleos e coordenações municipais por dois anos, reuniões com governo, audiências, sem sucesso. A decisão foi ocupar o grande latifúndio da região. Fizemos uma preparação como faria, de como se organizaria no acampamento, uma comissão para falar com a imprensa, de negociação, organizar saúde, higiene, montar barracos, processo de segurança, barracos por núcleos de municípios (que se conheciam para evitar infiltrados). Como faria para chegar no local? Definimos dois pontos os caminhos na madrugada do 29, com sinais, como identificar os caminhões nossos e seguir junto. Uma da manhã a gente se encontrava, duas horas saímos de lá em comboio para a ocupação. Passado tanto tempo, é difícil descrever o que era o nosso estado de emoção, ansiedade, insegurança e incerteza. Desde que as pessoas carregaram os caminhões até a ocupação… Clareou, já estávamos cercado pela PM. Depois de dois dias a Justiça decretou Status Quo (ante), e a quantidade de gente era maior que muitas cidades do interior. Significa que permaneceríamos aqui. Organizava-se o lugar da água, um lugar só, não tinha nascente. A gente via os horários das mulheres tomar banho, e dos homens, num riacho só. Teve uma disciplina cooperativa de 7,5 mil pessoas. a PM eixou barreira nas entradas e saídas. E tínhamos nosso controle com senhas. Sobreviveu o acampamento graças a igrejas, até padres foram lá, e começou a negociação com as autoridades.”
“Hoje na Fazenda Annoni (Pontão, antes vinculado à Sarandi) existem 422 famílias assentadas, organizadas em seis comunidades. Todas elas estão estruturadas. É incomparável a condição de vida de antes e o padrão de agora. O que era a Annoni antes com 700 cabeças de gado para 9,3 mil hectares? Isso também mudou, a produtividade… Temos na fazenda hoje duas cooperativas ligadas ao MST com leite (produção de alimentos, indústria com capacidade de 20 mil litros dia, faz queijo e bebidas lácteas) recolhe hoje em torno de 500 mil litros de leite ao mês. Cinco empresas recolhem leite dali. Tem feijão, horta, a Cooperlat (fornece leite para escolas de 23 municípios). Outra cooperativa tem frigorífico com capacidade de abate de 6 mil suínos e mil bovinos mês (e embutidos). Famílias que produzem lavoura diversificada, mais soja e milho (também em escala grande). Todos tem água encanada, luz elétrica, estrada boa com acesso, infra social, isso é muito importante. Foi o Assentamento da Annoni que permitiu criar o município de Pontão, graças ao desenvolvimento gerado pelo nosso assentamento. Grande mídia não mostra, só mostra a história que se vendeu lotes no RS, tentado desmoralizar. Isso ocorreu, sim… mas, das 422 famílias, 17 venderam os lotes, segundo dados oficiais do Incra (e foi vendinha para para outros pequenos). Não dá para cair nesta conversa, de que não funciona. Cuidamos dos aspecto sociais, tem ginásio de esportes, cultura, conjunto de atividades, todos vivem bem.” Isaías Vedovatto
POEMA DE “SEM-TERRA”
O SONHO E A ESPERANÇA MARCHAM SOBRE O LATIFÚNDIO (Isaías Vedovatto)
Eram milhares de homens, mulheres e crianças tomados por este sonho.
Muita gente identificada pela mesma causa: A FALTA DE TERRA.
Há dois anos se organizando nos municípios, formando grupos nas comunidades. Organização sigilosa, porque o inimigo mais temido, a repressão militar, ainda rondava sobre quem quisesse se organizar.
Cada vez que levantávamos os olhos enxergávamos o latifúndio bem ali, escondendo o pão que nos faltava e estava tão perto, quando nos espremia.
Era preciso que nossa união fizesse com que a coragem vencesse o medo.
Três sinais de luz para identificar quem era companheiro. Ramos verdes nas encruzilhadas sinalizando que o latifúndio de 9.300 ha era pra lá.
Era noite de 29 de outubro de 1985, terça feira, lua cheia, parecia estar mais brilhosa, talvez porque a estrada principal de terra vermelha causasse reflexos, ou talvez porque as lágrimas de angústia, nervosismo e alegria ajudassem a aumentar seu brilho.
Ao sair de casa o coração apertava e batia mais forte. Pais e amigos ajudavam a carregar as tralhas. Muitos deram força e coragem, muitos não sabiam o que dizer, mas com certeza os que não embarcavam viviam a mesma sensação.
Os primeiros que chegaram nos horários e locais combinados. O tom de voz se confundia com o silencio da noite e o ruído de pequenos animais. Quanto mais gente chegava mais nossa voz se levantava e nossa coragem aumentava.
Ao longe avistamos uma luz do carro da polícia que vinha piscando pelo mesmo caminho. O silencio é imediato. O carro passa e nem percebe a multidão silenciosa, com os caminhões desligados fora da estrada principal.
A tensão aumentava, muitos começam a rezar baixinho, outros choram, outros tentam dar coragem, mas ninguém falou: Vamos voltar.
Com o grito VAMOS EM FRENTE os motores dos caminhões voltaram a roncar em forma de comboio, seu ronco é o único som que se escuta. Muitos debaixo da lona não conseguem enxergar a quantidade de luzes enfileiradas, formando uma linda imagem em contraste com aquela estrada e o luar.
Ao chegar no latifúndio, o zunido dos cinco fios de arame sendo cortados, era como se fosse o ponteado do início de uma música que toma coro com o grito desprendido na garganta de todos, ao som das foices e facões, martelos nas construção dos barracos de lona preta, formando o Acampamento da Fazenda Annoni.
*Fotos de Paulo Pires e fotos históricas de arquivo cedidas pelo MST: fotógrafos Karine Emerich e José Leal. Edição de Rodrigo Becker.
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