Faz sentido comparar danos do coronavírus aos da 2ª Guerra?

De diversas fontes oficiais, escutam-se alusões aos impactos econômicos do conflito de 1939-45 como forma de preparar para os futuros danos da pandemia de covid-19. Mas a comparação é inexata, por diversos motivos.

Pouco antes de fim da Segunda Guerra, bombardeiros dos Aliados reduziram Dresden a destroços

Ultimamente tem-se escutado com grande frequência a expressão “pela primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial”. Políticos, comentaristas e analistas recorrem regularmente ao conflito transcorrido entre 1939 e 1945 como ponto de comparação para os tempos dramáticos que estamos vivendo.

Antes de ser, ele próprio, contaminado pela covid-19, o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, disse que seu governo tomaria medidas “sem precedentes desde a Segunda Guerra”. A chanceler federal da Alemanha, Angela Merkel, expressou-se de modo semelhante.

O secretário-geral da ONU, António Guterres, descreveu “um impacto econômico que trará um recessão provavelmente sem paralelos no passado recente”, acrescentando que seria a “crise mais desafiadora que já encaramos desde a Segunda Guerra Mundial”.

Não se trata de pura retórica. A expressão constou de várias estatísticas econômicas. Recentemente, a produção industrial dos Estados Unidos acusou o maior declínio desde o último grande conflito mundial; enquanto os dados econômicos de Alemanha e França para o primeiro trimestre de 2020 foram tão ruins que diversos especialistas previram uma recessão  ou antes, depressão sem igual desde o fim do conflito mais mortal da história, 75 anos atrás.

As projeções do Deutsche Bank para os dois primeiros trimestres do ano corrente anteciparam uma retração do Produto Interno Bruto que “excederia substancialmente qualquer dado antes registrado, pelo menos desde a Segunda Guerra”.

Contudo, a comparação não é tão linear assim: é impossível prever, neste momento, a dimensão dos danos econômicos até a crise do coronavírus ter sido debelada: ela está em andamento, e nenhum governo pode dizer quando terminará.

Depois do otimismo, inverno e fatalismo

O dano causado até o momento é, sem dúvida, vasto; porém, hoje, não parece, nem de longe, comparável ao estado em que a Europa se encontrava depois de 1945.

Em seu livro Postwar: A history of Europe since 1945 (Pós-guerra: Uma história da Europa desde 1945), o historiador Tony Judt registra que o desafio mais sério após a guerra era a falta de moradia. Grande número de casas fora destruído  40% na Alemanha, 30% no Reino Unido, 20% na França  e os sem-teto eram um enorme problema em todo o continente.

A infraestrutura de transportes, como trilhos e veículos ferroviários, pontes, estradas e canais, fora igualmente destruída. Só uma ponte sobre o rio Reno restou intacta. O impacto no abastecimento de bens de primeira necessidade, como carvão e comida, foi gigantesco.

No entanto, nem tudo eram más notícias: sete anos de confrontos bélicos incessantes trouxeram avanços aos setores de engenharia, em especial nas nações protagonistas. O ajuste aos tempos de paz foi direto, mais ainda porque numerosas fábricas e outras instalações haviam permanecido surpreendentemente incólumes, comparado à destruição das habitações.

De 1945 a 1947, o dano material na Europa foi reparado com rapidez admirável, principalmente na Alemanha. Se na época da morte de Adolf Hitler apenas 10% das ferrovias alemãs eram operacionais, no ano seguinte, em junho de 1946, 93% estavam funcionando novamente, e mais de 800 pontes haviam sido reconstruídas.

Em 1947, porém, ficou claro que o otimismo inicial de uma rápida recuperação econômica europeia dera lugar a um realismo mais sombrio: a carência, sobretudo de alimentos, era um enorme problema. O medo de uma onda de fome era palpável.

O tempo veio piorar a situação: o inverno de 1946-47 foi inclemente, e o subsequente frio glacial paralisou toda a economia da Europa. A diferença em relação a 2020 é que em 1947 a economia já estava profundamente debilitada quanto a neve e o gelo deram seu golpe de misericórdia.

Havia outras dificuldades: diversos países europeus acumulavam montanhas de dívidas após a guerra, dependendo fortemente de importações americanas. Por sua vez, contudo, a Europa não tinha muito para vender ao mundo na época, portanto era extremamente difícil obter os dólares para compra das mercadorias dos EUA. A Alemanha sequer tinha uma moeda válida na época.

Plano Marshall e lições para o presente

O pessimismo desembocou cada vez mais em fatalismo. Em abril de 1947, o ministro francês da Economia e Finanças, André Philip, declarava: “Estamos sob ameaça de catástrofe econômica e financeira total.” O influente jornalista americano Hamilton Fish resumiu assim as vicissitudes da Europa:

“Há pouco demais de tudo. Poucos trens, bondes, ônibus e automóveis para transportar os cidadãos pontualmente para o trabalho, quanto mais levá-los para as férias. Pouca farinha para fazer pão sem adulterantes, e mesmo assim não há pão suficiente para fornecer energia para o trabalho pesado […] Poucas casas para morar e insuficiente vidro para lhes suprir janelas. Faltam couro para sapatos, lã para suéteres, gás para cozinhar, algodão para fraldas, açúcar para geleia, gordura para fritar, leite para os bebês, sabão para lavar.”

Em 1948, os EUA intervieram com o famoso Plano Marshall, injetando o equivalente hoje a 128 bilhões de dólares, com o fim de reerguer a abalada economia europeia. Uma de suas principais metas era restaurar o papel histórico da economia alemã como locomotiva da Europa, sobretudo em termos de manufatura e produção industrial.

A década de 1950  e, numa escala menor, a de 1960 são relembradas como tempos dourados para a Europa Ocidental, EUA, Ásia Oriental e a União Soviética. Em países como Alemanha, França, Japão, Áustria, Coreia do Sul, Itália e Grécia, é comum referir-se a esse período como “milagre econômico”.

Cabe lembrar que levou mais de cinco anos para a prosperidade do pós-guerra se fazer sentir. Quando ela chegou, porém, caracterizou-se como uma das eras de maior expansão econômica da história mundial.

A principal lição deste sumário relato do impacto econômico em seguida à Segunda Guerra Mundial, entretanto, é que a atual crise, por mais séria que seja, não é comparável ao que a Europa e o resto do mundo tiveram que enfrentar diante das ruínas  tanto literais quanto metafóricas  do verão europeu de 1945.

Tendo isso em vista, o que ocorreu naquela época deveria dar ao mundo atual mais do que um pouco de esperança.

A opinião do/a autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

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