Fanon e a violência revolucionária

Em 20 de julho de 1925, nascia o revolucionário anticolonial, psiquiatra e intelectual Frantz Fanon. Sua militância na Frente de Libertação Nacional e seu trabalho sobre a psicologia do colonizado são inspirações incontornáveis para retomar a radicalidade da estratégia socialista.

Há 95 anos nascia Frantz Fanon em Fort-de-France, a cidade capital da Martinica, ilha caribenha colonizada pela França.

Por Marcos Queiroz.

Para o colonizado, a vida só pode surgir do cadáver em decomposição do colono. (…) Entre a violência colonial e a violência pacífica na qual está mergulhado o mundo contemporâneo, há uma espécie de correspondência cúmplice, uma homogeneidade
Frantz Fanon

Neste mesmo 20 de julho, no ano de 1925, na então colônia francesa da Martinica, nascia Frantz Fanon, militante terceiro-mundista e um dos maiores intelectuais do século XX. Cidadão do mundo, Fanon viveu na mais alta intensidade, articulando, como poucos, o compromisso intelectual e a militância política, sendo um exemplo singular da junção do radicalismo teórico com a práxis descolonizadora. Desde a infância e juventude no Caribe, conviveu de perto com a dupla dimensão do colonialismo, a material e a subjetiva, e foi atravessado por eventos de escala global, como a Segunda Guerra Mundial, que lhe aguçaram a consciência dos vínculos entre violência colonial, racismo e exploração econômica.

Em 1942, ao alistar-se no exército francês e ser enviado para o Marrocos, Fanon inicia sua peregrinação no mundo. Após participar da campanha vitoriosa de Aimé Cesaire para prefeito de Fort-de-France, muda-se para Lyon em 1947, onde inicia seus estudos em psicanálise forense. Como resultado desse período, publica no ano de 1952 o seu primeiro grande clássico, Pele Negra, Máscaras Brancas, obra indispensável para a compreensão dos efeitos subjetivos do colonialismo. Aí Fanon descreve como o empreendimento colonial cria uma epidermização do mundo, na qual a “raça” passa a definir o lugar, posição e grau de humanidade dos indivíduos. Assim, tendo como pressuposto a objetificação e redução de humanos a um signo, estereótipo ou borrão, o racismo, ao desumanizar, interrompe o processo de reconhecimento e realiza uma fratura no processo comunicacional. Ou seja, a “raça” é, também, uma colonização da linguagem, deturpando o seu potencial humano. Essa noção, logo veremos, é central para a posterior construção da estratégia revolucionária fanoniana.
Como fica expresso já nas primeiras linhas do livro, a base marxista permite a Fanon compreender como essa subjetividade patológica do colonialismo está fincada em condições materiais. Como ele afirmará em Os Condenados da Terra: “nas colônias, a infraestrutura econômica é também uma superestrutura. A causa é consequência.” Ao colocar nesses termos a economia política colonial, face oculta do desenvolvimento das “sociedades civilizadas”, Fanon explicita como o capital sempre dependeu e dependerá da acumulação primitiva e do avassalamento de povos e territórios, os quais não podem ser vistos como fenômenos periféricos, marginais ou meras imperfeições do capitalismo. Fazem parte da sua constituição sombria: por um lado, o capital produz a raça que produz a morte; por outro, a possibilidade permanente de morte significa a raça que calibra o lucro capitalista. Eis o moinho satânico gerador de patologias e extermínios.

Em 1953, Fanon muda-se para Blida, na Argélia, então colônia francesa, onde assume a direção do hospital psiquiátrico. No ano seguinte, estoura a Guerra de Independência da Argélia. As condições de segregação e violência se intensificam. É um momento fundamental de virada na vida de Fanon: o contato direto com a brutalidade do regime colonial lhe causa uma repulsa irreversível à França, ao passo que lhe gera um sentimento de identificação total com o povo árabe. Em 1956, demite-se do hospital e intensifica sua atividade secreta na Frente de Libertação Nacional (FLN), uma das principais organizações nacionalistas argelinas. Na linha de frente do conflito, nos próximos anos atuaria entre o Norte da África e a França em um intenso trabalho revolucionário, divulgando a causa da descolonização, prestando auxílio médico aos guerrilheiros argelinos, comparecendo em eventos internacionais (como o I e II Congresso de Artistas e Intelectuais Negros) em busca de apoio para a luta anticolonial. Tudo isso sem interromper suas investigações sobre a psique dos sujeitos colonizados.

A partir do conhecimento acumulado na experiência revolucionária, Fanon escreve seu último clássico, Condenados da Terra, publicado postumamente em 1961. Como a tradução de 1973 para o inglês aponta, trata-se de um livro de bolso sobre a revolução no terceiro mundo. E mais do que isso: com uma robusta teorização da realidade colonial e da luta de libertação, tornou-se uma leitura fundamental para os movimentos anti-imperialistas, insurgentes e pela igualdade social por todo o globo. Um dos temas centrais da obra é a questão da violência. O contexto concreto da escrita de Condenados da Terra faz com que Fanon retire a teorização da violência do campo da moral abstrata para formulá-la no âmbito da crítica ao colonialismo, da estratégia e da práxis de libertação.

O duplo da violência colonial

Aviolência é sempre vista a partir de um duplo. Primeiramente, há a própria violência colonial, que surge como um aparecimento inaugural. Com suas metralhadoras, fardas, granadas, napalms, casernas, arames farpados, postos de vigilância, estupros e prisões, ela constitui um mundo. Essa violência também cria o colonizado, que invariavelmente é um ser constituído a partir de fora, alvo de um desejo e da transferência das neuroses do próprio colonizador. Como Achille Mbembe aponta em A Farmácia de Fanon, o colonialismo é uma “prática de descivilização” perpetrada por meio de crimes e do terror, constituído por um lado diurno (a guerra) e por um lado noturno (o campo e o extermínio). Na sua lógica concentracionária, declara inútil parte da humanidade e formula um projeto de divisão dos indivíduos por meio da ocupação, expulsão, deportação e eliminação.

O colonialismo prolifera situações extremas, banaliza a indiferença, cotidianiza atos repugnantes e habitua o sadismo. Em nome da civilização, da ordem e dos valores liberais, essa violência torna estéril qualquer tipo de comunicação baseado no reconhecimento recíproco. Com isso, internaliza uma vontade de nada saber, de não envolvimento e de ausência de empatia. Uma violência atmosférica e universal, sentida na espinha, na tensão muscular e no sufocamento da respiração, que comprime e constrange o colonizado – e acaba por se transformar na única linguagem da colonização.

É aí que surge a outra face da violência como duplo. O colono ensina ao colonizado que o único discurso compreendido é o da violência. Então, o oprimido decide se expressar por meio dela, realizando uma inversão: agora é o colonizado quem diz ao colono que só compreende a linguagem da força. Essa invertida vem de uma compreensão maior, a saber, que “a colonização e a descolonização são simplesmente uma relação de forças”. A violência, portanto, é um método de libertação diante de uma realidade de ausência da dialética do reconhecimento. Mais do que isso. Primeiro, a violência contracolonial é um escândalo interruptivo – suspende o mundo até então conhecido. A realidade do colonialismo introjeta no colonizado uma mentalidade reprimida, na qual a única perspectiva de mudança é se instalar no lugar do colono. O perseguido que sonha constantemente se tornar perseguidor. O colonizado adota uma conduta de evitação, de não querer ver que a sua liberdade depende da destruição do colono, o qual, muitas vezes, ele ama e deseja ser; mas vive também com uma cólera interna, que constantemente é despejada entre iguais ou é canalizada para diferentes tipos de fatalismo (moral, institucional, espiritual). Neste sentido, sendo um escândalo, a violência contracolonial significa um movimento de desinteresse e recusa absoluta pelas mentiras e distrações criadas pelo colonialismo – e estimula o oprimido a não contar mais fábulas para si mesmo: “o colonizado descobre o real e o transforma no movimento da sua práxis, no exercício da violência, no seu projeto de libertação”.

Neste sentido, a violência contracolonial, baseada em um desejo e uma força contra o colonizador, serve de crítica ao voluntarismo cego, aos pacificistas, aos legalistas e aos partidos da ordem, aqueles que se apresentam como interlocutores legítimos da população e do descontentamento. Estes mesmos que atuam como vendilhões da dor e lucram com o sofrimento alheio nos tapetes verdes e instituições do mundo liberal. Ao mesmo tempo, ela faz aparecer em linguagem a necessidade de derrubada radical do sistema, sem remediações. A descolonização surge como um processo histórico de desordem absoluta e de criação de novas pessoas, avançando por todos os obstáculos que encontra no caminho. É, portanto, um escândalo contra a “hibernoterapia” dos intelectuais e partidos que apenas criticam o sistema colonial, mas não acreditam que ele possa ser derrubado. Escândalo que desperta dessa terapia do sono, redirecionando a cólera do colonizado de salões, burocratas e líderes pálidos para a sua própria libertação. A violência contracolonial possui um efeito desalienador e desmistificador profundo; desperta e grita – “os nossos mortos também contam” e isso não se soluciona dentro das regras do jogo.

Solidariedade trabalhada com sangue e cólera

Neste ponto, aparece o segundo elemento da violência insurgente: a criação e o uso do antagonismo político como práxis libertadora. Ela mantém e reverte o maniqueísmo da dominação. Se no colonialismo há binaridade, por outro lado, nele não há verdade. Com a violência contracolonial, esse maniqueísmo não se diluí, o colono continua sendo o inimigo do colonizado, o sujeito a ser abatido. Mas ao inverter o “normal” patológico da colônia, essa violência restaura a verdade e delimita um antagonista político. O bem (ou a verdade) é aquilo que aflige o colono. As massas colonizadas são tomadas por uma “loucura de verdade” ao perceberem que foram despojadas de tudo e que só essa loucura pode terminar o seu descontentamento latente e subtraí-los à opressão colonial. Assim, se todos os colonizados são iguais para os colonos, os colonizados respondem: todos os colonos são iguais. Se o colonizado era visto como mal absoluto, o colono agora é tido como mal absoluto. O maniqueísmo invariavelmente continua a se reproduzir na luta de libertação.

Sendo uma positividade formadora, ancorada na relação de antagonismo, a violência contracolonial gera reconhecimento entre os colonizados. Articula uma história e destino comuns. Permite também a antevisão de um outro futuro. Constrói a argamassa da solidariedade “trabalhada com sangue e cólera”. É um momento afirmativo quase solar, como diria Mbembe. Depois do processo de desumanização criado pelo mundo colonial, ela é um momento fundador/constituinte e um gesto inaugural do sujeito político, que recusa a submissão e instaura a vontade de destruir e devastar. Fazer o universo violentamente virar nada. Assim, ela não só restaura a humanidade perdida do oprimido, que por ela torna-se um novo sujeito, mas reconstrói os elos de reconhecimento recíproco entre os colonizados, que passam a se ver como humanos entre todos os outros. Neste sentido, o colono se liberta na, e pela, violência, que opera como motor dialético. Essa violência dialética é práxis absoluta que age como mediação real, elemento agregador e ruptura com o estabelecido. E ao romper a interdição discursiva, a violência é pressuposto organizacional da luta de descolonização: permite que os colonizados superem suas diferenças, se reconheçam, transformem o ódio em economia política e canalizem o instinto em um superego político. Nos seus efeitos constituintes, transformativos e inventivos, transforma o povo em sujeito histórico na sua luta por libertação. E ao a criar e delimitar o antagonismo, permite a construção, composição, articulação de alianças dentro da heterogeneidade dos oprimidos.

Um caminho à origem do futuro

Chega-se, assim, ao último aspecto da violência contracolonial: ela é cura. Citando Mbembe novamente, a luta faz o oprimido relaxar os músculos e voltar a respirar. A possibilidade de um outro mundo faz a imaginação entrar em festa. A violência e as estéticas insurgentes são um intenso trabalho sobre a linguagem possível, que não se resume à institucionalidade colonial e burguesa. Neste trabalho, o mundo perde o seu caráter maldito. São estilhaçadas as velhas sedimentações culturais e realiza-se o caminho à origem do futuro. Ao negar o monopólio da doença e da morte, recria a possibilidade do elo, do reconhecimento, do reestabelecimento do oprimido no seu ser e nas suas relações com o mundo. A violência contracolonial é terapia, que gera cumplicidade e intenções criadoras com potenciais curativos. E ao desnudar o que foi recalcado, reúne as condições para o inevitável confronto com aquilo que traumatizou o colonizado.

Neste sentido, a violência contracolonial atua contra a materialidade do sistema colonial e a mente inibida do colonizado em três níveis: como escândalo interruptivo, como criadora do antagonismo político e das redes de solidariedade entre os oprimidos e, por fim, como cura. Mbembe, finalmente, alerta que a violência sempre apresenta uma dimensão incalculável e imprevisível, podendo ser uma ponte de salvação ou uma abertura perigosa. No entanto, é patente na teoria de Fanon a confiança na violência revolucionário como meio de criação do novo, instrumento de ressurreição regeneradora e descolonizante, capaz de fazer tábula rasa da ordem repressiva. É aí que está uma das contribuições mais valiosas de Fanon para o mundo contemporâneo, ainda que as condições descritas por ele não sejam inteiramente aplicáveis a diversas realidades do nosso tempo. Se por um lado esparrama-se um sentimento generalizado de rancor, descontentamento e sofrimento por condições de vida cada vez mais precarizadas, por outro propaga-se a inevitabilidade das alternativas políticas em um institucionalismo estéril a mudanças políticas energicamente democráticas. Neste contexto, a questão da violência é reduzida a uma discussão de superioridade moral ou monopolizada pelos populismos conservadores de toda ordem, ambas ancoradas no rechaço a transformações radicais.

Uma imaginação política para a tradição dos oprimidos

Fanon, portanto, nos ajuda a expandir nossa imaginação política e a dar outro estatuto filosófico e político à violência, mais condizente com a tradição dos oprimidos. Dessa forma, nos ensina a retomar a radicalidade da estratégia socialista em tempos de morbidez tática. Como ele mesmo aponta em Condenados da Terra, a violência revolucionária não é mero espontaneísmo. Precisa ser concretizada no combate ao individualismo, no engajamento em processos coletivos. É parte, portanto, do movimento de ver o problema de um como o problema de todos, sem direito à indiferença, à ignorância e à dissimulação. Descolonizar-se é coletivizar-se enquanto se desorganiza um mundo e organiza um novo. Misturar-se para além de si e mergulhar-se na organização popular, permitindo canalizar a energia e a vontade de aniquilar o inimigo dentro de um lugar no sistema de significado. Para o intelectual e o militante insurgente, isso é uma necessidade, pois, como diria outro teórico das gentes: “posso sair daqui pra me organizar, posso sair daqui pra desorganizar, que eu me organizando posso desorganizar, que eu desorganizando posso me organizar”. Da lama ao caos como condição de outro futuro.


Obs: além dos textos Condenados da Terra, Fanon, e a Farmácia de Fanon, de Mbembe, a leitura fanoniana do autor é bastante informada pelas contribuições do teórico Deivison Mendes Faustino, que está lançando um novo livro sobre Fanon hoje: A Disputa em Torno de Frantz Fanon: a teoria e a política dos fanonismos contemporâneos.

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