Fanáticos e cangaceiros na terra do sol. Por Edna Garcia Maciel.

 

Prisioneiros de Canudos, Bahia.
Prisioneiros de Canudos, Bahia. Foto: Flávio Barros, 1897/Acervo do Museu da República. Imagem recuperada digitalmente pelo Instituto Moreira Salles. Disponível em: htpp://brasilianafotografica.bn.br//?p=3002.

Por Edna Garcia Maciel, para Desacato.info.

Pedra Bonita[i], de José Lins do Rego, é um livro extraordinário. Trata-se de uma história fundamentada em fatos reais da vida nordestina, nos primeiros anos do século vinte. O autor conta a saga de uma família que é envolvida pelo cangaço, fanatismo e violência. O personagem principal é Antônio Bento, um menino que é dado a um padre por retirantes. Padre Amâncio era o vigário do Açu e aceitou a responsabilidade de criar Antônio Bento. A primeira parte do livro mostra a vida da pobre e pacata Vila, que nunca crescera. Era miúda como sua gente. A única coisa grande ali, era sua majestosa Igreja.

Há mais de dez anos que Antônio Bento chegara ao Açu. Ele viera da Pedra Bonita muito doente: tinha apenas cinco anos. O menino aprendeu a ler, escrever e arrumava as coisas sagradas da igreja. Ele se orgulhava de seu ofício, gostava de tocar o sino da igreja, de ouvir o som sumindo, levando o recado de Deus aos fiéis. Bento tinha muito trabalho porque eram rezadas duas missas todos os dias, e terço, à tardinha. Depois disso, “Deus ficaria trancado no sacrário com a chave de ouro, bem de longe, bem escondido de todos os sofrimentos, de todas as desgraças, bem distante do povo pobre do Açu”[ii]. Mas não apenas nesse tempo. O Deus da igreja católica continua trancado quietinho no seu sacrário enquanto a pobreza sofre miseravelmente. Da igreja, foram extirpados pregadores da Teologia da Libertação, – daqueles que se importavam com problemas sociais que assolam trabalhadores oprimidos pela brutal exploração capitalista.

O padre Amâncio era jovem quando chegou à Vila, mas ganhou respeito por sua bondade e dedicação religiosas. No entanto, aos cinquenta anos, parecia um velho: magro, alto, cabelos brancos e face cavada. Naquela Vila, nada vingava. Diziam que o Açu fora amaldiçoado porque correra sangue de inocentes em suas terras.  Bento era educado, porém, teve de brigar com o atrevido filho do juiz. Foi ameaçado e humilhado pelo pai do menino. Bento sentiu-se um traste. Nem a servidão de criado de padre lhe dera a certeza de sua inferioridade. O adolescente Bento começou a descobrir a selvageria das relações humanas configuradas nos seus asseclas – autoridades – quando se trata de perpetuar o poder da classe dominante. Não podia entender porque o povo do Açu não o suportava. As pessoas apenas falavam dissimuladamente que a Pedra Bonita tinha uma influência infernal sobre a Vila.

Bento foi vivendo com o desprezo da gente importante do Açu. Só o padre e Maximina – criada do padre – gostavam dele. Lembra que, na escola, a professora fora seu suplício. As mães do Açu não deixavam seus pequenos brincarem com Bento. Ele nunca teve um amigo. Há doze anos que implicavam com ele, sem motivos. No dia em que Bento deu uma resposta ao debochado Joca Barbeiro, todos os homens por perto, concordaram que aquele menino era uma cobra precisada de um corretivo. Antônio Bento nunca teve coragem de perguntar ao padre o segredo de sua história. Apenas ouvia seus conselhos e amansava sua raiva.

Um dia, apareceu no Açu, um homem que tocava viola e cantava. Ele ficou dormindo no mercado. Sabia histórias, sobretudo de cangaceiros como Jesuíno Brilhante, Antônio Silvino e Cabeleira. Seu nome era Dioclécio. Antônio Bento nuca conhecera homem igual. “Menino, ele dizia: Terra da gente viver é lá para as bandas do sul. Andei de navio, montei trem de vapor. Vi o mundo que não era essa desgraça do sertão”[iii]. A vida de Dioclécio foi uma revelação para Bento. Depois dos serviços, corria para ouvir histórias do amigo. O cantor contou-lhe que o cangaceiro Luís Padre fizera barbaridades numa fazenda onde ele estava. Disse que atiraram no velho Coronel, bateram na velha e estupraram as moças. Fizeram o cantador tocar viola a noite toda para dançar com as mocinhas quase nuas. O povo do Açu, depois de duas semanas, começou a implicar com o violeiro porque ele ficava quase o dia todo em sua rede. Não conseguiam mais tolerar o ócio do cantor, tal como hoje. Nosso tempo, tal como disse um estudioso[iv], predomina um dogma, uma estranha paixão do trabalhador pelo que o destrói: o sobretrabalho  – desta condição histórica que  aumenta a riqueza social e as misérias individuais, porquanto regido pela lei inexorável da produção capitalista. Então, o delegado tratou de expulsar o folgado. Depois disso, Bento ficou com vontade de conhecer o mundo. O preconceito e a ira perseguiam Antônio Bento. E, ele, sem saber a causa. Certa noite, um bando de cangaceiros entrou no Açu. Eles soltaram os presos enquanto o povo tremia de medo escondido dentro de casa. Quem salvou a Vila dos cangaceiros foi o padre Amâncio. Depois disso, o juiz foi embora com sua família. Porém, escreveu um artigo para um jornal da Paraíba dizendo que a Vila estava entregue a um padre coitero de cangaceiros, e que tinha, por companhia, um rapaz de instintos perversos: um tal de Bento, da Pedra Bonita. Algum tempo depois, apareceu no Açu, a tropa do tenente Maurício. Antes, tinham passado pela fazenda Jurema. Açoitaram o Coronel sem qualquer prova de sua suposta ligação com cangaceiros. A Fazenda Jurema havia experimentado a força bruta do governo. De fato, a polícia volante empregava o mesmo método dos cangaceiros. Era igual a eles, até em suas vestes. Usavam chapéu de couro, tinham um rifle na mão direita, cartucheiras atravessadas no peito e punhal na cintura. Bento ficou sabendo que o tenente falava dele como se fosse um criminoso da Pedra Bonita. Por ordem do Bispo, padre Amâncio teve de se ausentar por três meses do Açu. Aconselhou Bento a visitar sua família durante sua ausência.

A casa do velho Bento Vieira ficava no pé da Serra, perto de nascentes e de matas verdes. A fazenda Araticum parecia um oásis no meio do sertão ressequido. O velho Bentão – como era conhecido – levava uma vida insignificante. Sua família vivia igualzinho às de seus antepassados, de um século atrás. Somente a seca de 1904 tinha obrigado os Vieiras a caminhar por terras que não eram suas. Bentão era alto, magro, de barba rala, de olhar duro, e calado, furiosamente calado. Os vizinhos não gostavam dele e nem seus parentes. Naquele oco escondido do mundo, vivia Bentão, desde que seu pai morrera. Foi o único filho do Capitão Aparício Vieira – um matador que vivia mais no Cariri, do que em casa. Bentão Vieira foi criado por uma preta velha. Aos quinze anos, ele recebeu a notícia de que seu pai fora morto numa feira, em Dores. Por fim, casou-se com Sinhá Josefina e tiveram quatro filhos. Antônio Bento era o caçula, um filho inesperado. Quando veio a chuva, o casal de retirantes voltou para casa, com apenas dois filhos: Aparício e Domício, pois o mais velho, fora embora para o Norte. O pai quis levar o caçula para casa. Sinhá Josefina não concordou e enfrentou o marido. Ela desejava que Bento fosse padre, que tivesse uma vida diferente da sua família. Por isso, Antônio Bento quase não se lembrava do Araticum e nem dos irmãos. Sentia-se um estranho entre os seus. Domício era educado, triste cantava e tocava viola como se fosse um aboio. Aparício era forte, alegre, cheio de vontade e gostava de armas – vivia praticando sua pontaria nas árvores. Num dia de passeio, Domício levou Bento para conhecer a Serra. Contou-lhe sobre a lenda da cabocla da furna que, com seu canto, enfeitiçava vaqueiros que se jogavam nas profundezas do fundo buraco onde vivia. Foi então, que Antônio Bento perguntou se Domício conhecia a história da Pedra Bonita. Mas, o irmão não sabia de nada, pois seus velhos nunca falavam sobre o assunto.

Contrariando a mãe, os dois irmãos foram falar com o velho Zé Pedro, na Pedra Bonita. O Velho contou tudo. Disse-lhes que apareceu perto da Pedra um homem com três pedras na mão dizendo que, uma, era o Pai, a outra, o Espírito Santo, e a terceira, o Filho de Deus que não tardaria a chegar. Tempos depois, apareceu na Pedra Bonita um homem chamado Antônio Ferreira. Falava-se que o homem curava entrevados, cegos de nascença e feridentos. Mas, o santo queria o sangue dos inocentes, e também as donzelas, para realizar o grande milagre. Portanto, as meninas teriam que dar sua virgindade para o Filho. As mães prepararam as meninas com banho de ervas e água de cheiro para que elas pudessem receber um pedaço de Deus, de Antônio Ferreira. Segundo Zé Pedro, havia mais de cinco mil pessoas vivendo embaixo dos umbuzeiros. Um dia, o Filho gritou para o povo que era o dia da criação do novo mundo, que todos seriam iguais: pobres e ricos, negros e brancos e, felizes. Ordenou que lhe entregassem as crianças para o sacrifício. As mães, agarradas aos seus filhos, resistiam, mas os pais, soluçando, entregaram as crianças ao Santo. O Filho cortou cabeça por cabeça e o sengue dos inocentes banhou de sangue a Pedra Bonita e encharcou a caatinga, mas o milagre não aconteceu. Então, o Santo degolou várias mulheres acusadas de terem aborrecido Deus. Foi aí que apareceu um traidor: um Judas, que correu para as bandas do Açu, e contou o que acontecera na Pedra Bonita. As tropa apareceu fez uma carnificina. Foram mortas mais de quinhentas pessoas e, o Santo ficou, ficou varado de tiros. Zé Pedro contou aos rapazes que o homem que avisou a polícia era um Vieira: o avô de Antônio Bento – um Judas – um chefe de cangaceiros. Bento ficou apavorado. Zé Pedro disse que um dia apareceria o Filho de Deus novamente. A história da Pedra Bonita tinha atemorizado os dois. Domício acreditava na desgraça de sua família por causa do Judas. Bento lhe dizia que aquilo era superstição e ignorância.

Dias depois, Aparício se envolveu numa briga e acabou matando um soldado na feira de Dores. Preferiu fugir, ao invés de se entregar à polícia. Aparício sabia da desgraça que viria sobre sua família. Uma noite, depois de sua fuga, apareceu a tropa. O chefe queria saber onde estava o bandido, mas ninguém sabia. Bateram no Velho com cipó-de-boi, em Domício, na mãe e em Bento. O Araticum ficou escangalhado, quebraram tudo. De madrugada, levaram Domício para a cadeia de Dores. No dia seguinte, o Velho foi à Vila e ficou sabendo que Aparício era cangaceiro. Bentão já fora filho de cangaceiro, agora era pai de cangaceiro. Sabia que não iriam mais parar de sofrer. Bento descobriu porque o Açu culpava a Pedra Bonita pelas suas desgraças. Entendeu a razão do tremendo estigma que sua gente carregava: o sangue da traição. Pertencia a uma família que traíra o Filho de Deus e fora o responsável pela mortandade na Pedra Bonita.

Passado um tempo, a família de Bento ficou sabendo de um tiroteio no Araçá. O Sargento Venâncio estava indo atacar o Coronel Zé Gomes, quando foi emboscado pelo bando de Aparício e os cangaceiros dizimaram a tropa. Bento e Domício resolveram se esconder na Serra, pois sabiam que viriam à casa deles. Os dois irmãos ficaram foragidos três dias na Serra, esperando que os soldados não atacassem seus pais. Mas, quando regressaram, estava tudo destruído. Os velhos tinham sido levados presos para a cadeia no Açu. Antônio Bento foi visitá-los na cadeia e viu que eles estavam em petição de miséria. Sua mãe disse que a tropa parecia um bando de cangaceiros tomando vingança. Padre Amâncio foi falar com o juiz e contou-lhe a barbaridade que a tropa fizera com os velhos. Criticou o modo como eles combatiam o cangaço: fazendo ataques a gente inocente. Disse que desse jeito, o cangaço só podia aumentar. Os  cangaceiros, organizados em bandos, constituíam milícias de coronéis do Nordeste – geralmente grandes proprietários de terra ou ricos comerciantes nomeados pelo próprio governo – que os utilizavam na defesa de suas terras e nas lutas pelo poder político local. Havia bandos nômades que viviam de saques às fazendas e Vilas, de doações em troca de proteção e os que eram comumente contratados como matadores profissionais. Dizem que o cangaceiro Jesuíno Brilhante – de família aristocrática -, assaltava os ricos e distribuía a pilhagem aos pobres. Talvez, ele tenha sido um Robin Hood, à moda sertaneja. A historiografia é farta em qualificar o cangaço como sinônimo de banditismo. Entretanto, houve cangaceiros que se envolveram em revoltas populares, que lutaram junto com pobres contra as tropas do governo destinadas e exterminá-los. Quando Canudos foi vencida, havia cerca de quatrocentos cangaceiros entre os prisioneiros. Enquanto isso, a fama de Aparício crescia. Todos no Açu sabiam que Bento era irmão de cangaceiro. “O povo do Açu começou a olhar para ele sem o desprezo de outrora. Era irmão de Aparício. Tinha rifle na caatinga respondendo por ele[v].  Até os amarelos – os soldados – viam Bento com olho de medo.

A tropa do tenente Maurício ficou estacionada no Açu. A Vila mudou muito. Era soldado por todo lado. A rua da Palha – da prostituição – vivia movimentada, era   o lugar preferido da tropa. Padre Amâncio sabia que o Bispo era um homem fraco e, o que era pior, da política. Tomara partido das autoridades. Por isso, ia tolerando a depravação escancarada que se instalara na Vila. Bento entendia a inquietude do padre – se fosse em outro tempo, o vigário teria acabado com a prevaricação. O tenente era o centro da vida do Açu. “Era o prefeito, mais que juiz, resolvia tudo. Ficava na porta de casa, de lenço amarrado no pescoço, espichando na sua espreguiçadeira, dando a sua audiência e resolvendo”[vi]. Bento não era bem visto pelo tenente que tinha vontade de meter-lhe o chicote. Em contrapartida, para o povo da feira, o prestígio do rapaz crescia dia-a-dia, juntamente com a fama de Aparício. Depois que o bando de Aparício dizimou uma tropa do governo, ele foi considerado o terror da caatinga – o maior dos cangaceiros. Mas, Bento não podia acreditar que o irmão fosse aquilo que os jornais noticiavam. Sem querer, Bento pensava na maldição da Pedra Bonita. Mas, o padre Amâncio sempre lhe dizia que o povo estava embriagado de superstição, de fanatismo e crendices. Por outro lado, Bento se consolava com a importância que criara no Açu. Um dia, veio a notícia de que a tropa ia embora. Virou um rebuliço no Açu, pois o povo sabia que a retirada da tropa seria o diabo. O Açu estaria à mercê dos cangaceiros que, ora agiam na Bahia, ora em Pernambuco. Só o padre é que ficou contente, não podia esconder sua alegria porque o Açu se livrara da força do governo.

Certo dia, apareceu um sujeito no Araticum e contou a Domício que havia chegado um santo na Pedra Bonita. Era um homem barbudo, cajado na mão e viera montado num cavalo branco. Zé Pedro espalhou a notícia que o homem era um enviado de Deus, – o Filho – o mesmo que há cem anos dera o sangue pelo povo. Domício ficou intrigado. Falavam que o cavalo do Filho deitava remédio para qualquer doença. Era só pegar excrementos do bicho, passar nas feridas e tomar chá que tudo se resolvia. Começou a chegar gente de todo lugar: cegos, aleijados, feridentos e esfarrapados que vinham para Pedra Bonita em busca de milagres. Domício resolveu ir até lá e, à tarde, o Santo apareceu vestido de camisolão azul num lajedo. Ele chamava os espíritos e dizia que daria ao povo uma vida melhor do que dos ricos da terra. O povo embaixo urrava. O homem se ajoelhou e rezou o padre nosso. Aquilo entrava direitinho no corpo de Domício. O Santo fez um sinal para o povo: ele ia realizar o milagre daquela tarde. Então, o homem gritou o nome de uma mulher dizendo que Deus a chamava. Ouviu-se um grito e todos viram uma mulher cambaleando como uma bêbada: era a entrevada que estava andando. O povo berrava. Em seguida, o Santo foi para sua casa de palha seguido por vinte mulheres desgrenhadas cercando-o como uma guarda de honra. Domício voltou aturdido para casa. Vira um milagre, ele acreditava.

Toda a região comentava sobre o aparecimento de um novo santo na Pedra. Padre Amâncio dizia a Bento que o homem era um embusteiro, um falso messias, que Deus não usaria um homem daquela qualidade como seu instrumento. No entanto, no campo político e ideológico, falsos messias são preciosos quando se trata de impor o obscurantismo, a condenação da ciência, da crítica social e a perseguição política, exercida pelo Estado, em nome de Deus. Como se vê, política e religião podem formar uma síntese perversa contra o povo. Por isso, o padre disse que os milagres eram de falsos doentes, de nervosos que se curavam por sugestão. O padre compreendeu que havia chegado o desafio mais sério de sua vida. Estava velho, doente e viera arrebentar novamente a superstição da Pedra Bonita. Vinha chegando para ele a grande batalha que Deus lhe reservara há vinte anos. O povo estava entregue a um aventureiro. A crença se rompera como há cem anos. O padre não podia deixar de pensar que a Pedra Bonita seria novamente arrasada. Os soldados marchariam novamente contra os pobres respaldados pela força do Estado, pelas autoridades e abastados, em nome do fanatismo religioso. A perseguição e criminalização de movimentos sociais tem servido para evitar, a qualquer custo, as lutas entre as classes. Se não fosse assim, padre Amâncio não estaria preocupado com o iminente confronto social: ele e Antônio Bento teriam de ir à Pedra Bonita.

Bento via a mágoa do seu padrinho e sua fraqueza. O padre era bom, mas não oferecia o impossível. Como era sábio e honesto, delegou tal tarefa aos impostores modernos – aos pastores de várias seitas e igrejas – que não se cansam de prometer coisas impossíveis. Hoje, os beatos nem precisam escalar pedra para serem ouvidos e, muito menos, conviver com o povo pobre e malcheiroso. Têm à sua disposição, mídias poderosas que mostram à distância, cura de vários males que assolam as pessoas, tal como no passado. Mas, é preciso atentar para diferenças entre antigos beatos e os atuais. Pastores modernos, além de não usarem camisolão, são ricos empresários da fé e poderosos no campo político e, nunca criam caso com o Estado na defesa dos pobres – dos que o sustentam com suas doações compulsórias.

Por fim, padre e Bento marcharam para Pedra Bonita. Foram em direção ao Araticum. A casa estava toda fechada. De repente, Bento compreendeu: sua gente estava na Pedra Bonita. A cada passo que o cavalo dava, Bento sentia o perigo. A notícia que o padre fora para lá espalhou-se pelo Açu. Major Cleto e Coronel Clarimundo achavam que poderia haver um outro Canudos – exemplar incontestável e indesejável de uma forma de vida em que os trabalhadores produziam sua existência coletivamente, lavrando a terra. Portanto, era preciso que as autoridades cortassem o mal exemplo pela raiz. Por isso, enviaram um ofício ao tenente Maurício.

Os homens do Açu achavam que a polícia tinha de exterminar a raça de cobras, de lobos e de assassinos.  Achavam que o padre era ingênuo e imprudente, pois criara uma pessoa da Pedra. E, agora, ia para o meio dos fanáticos pensando em mudar a selvageria daquela gente. Os dois chegaram à Pedra Bonita e o povo cercou os animais. Era gente quase nua, magra, um povo que passava fome. O ajuntamento fedia e tinha muitos meninos nus estendidos pelo chão, chorando. O que havia de desgraça no sertão estava reunido na Pedra Bonita à espera de um pouquinho de felicidade. O padre explicou que estava ali para falar com o chefe deles. Encontraram Domício de barba grande e muito estranho. Viu o pai estirado na rede. A velha explicou que viera àquele lugar por causa de Domício que andava capiongo, meio aluado. Bento ouviu tudo sem dizer uma palavra. Todos estavam aguardando o grito que abalaria a formação do mundo. Mulheres desgrenhadas tinham olhares de feras acuadas. O Santo ouviu o padre mas, respondeu-lhe que ele era um enviado de Deus. Uma mulher berrou que o padre queria levar o Santo. O arraial inteiro se agitou. O padre viu que era o momento maior de sua vida: sentiu-se perdido. E, sem que pudesse explicar, veio-lhe uma vontade de morrer despedaçado, de morrer como os mártires.

O fracasso de padre Amâncio teve grande repercussão no Açu. O padre ficou ainda mais doente. A Vila sentia os efeitos da vizinhança do santo. Diminuíram as feiras e aumentou o furto de gado. Bento ficou mais odiado enquanto o padre Amâncio ia definhando. Acusavam Bento de ser espião de fanáticos. Só o padre e Maximina gostavam dele. Bento pensa que devia morrer, pois fora um dos seus, que viera correndo para levar a tropa que liquidou o povo da Pedra Bonita – que seu sangue tinha culpa daquela tragédia. Então, aconteceu uma desgraça. O Tenente Maurício e seus trinta homens foram trucidados pelo povo da Pedra, sob o comando do beato Domício: considerado mais sanguinário do que o irmão cangaceiro. Bento se sentiu sitiado pelo povo do Açu: era irmão de beato e de cangaceiro que desgraçavam o sertão. Mais do que nunca, Bento sentia-se cercado de ódios.

O povo do Açu vivia à espreita do assalto vindo da Pedra Bonita. Diziam que os fanáticos destruiriam tudo ao redor. Só não prendiam Bento para não desgostar o padre. Enfim, chegou a notícia que havia uma expedição com duzentos homens para atacar Pedra Bonita. O padre pediu ao Major Nunes que evitasse a mortandade. Porém, o soldado respondeu-lhe que na Pedra só tinha gente ruim. O povo do Açu se vingaria como o tinha feito, há um século. Padre Amâncio, nas últimas, queria se confessar. De madrugada, a tropa marcharia para o massacre da Pedra Bonita. Bento saiu naquela mesma madrugada para buscar o padre da Vila de Dores e que receberia a confissão de Amâncio. De repente, veio-lhe a ideia: correr para a Pedra Bonita, avisar o povo sobre o ataque da tropa. Bento ia nessa confusão de ideias conflitantes quando chegou a uma encruzilhada: um caminho, ia para a Vila de Dores, e o outro, para a Pedra Bonita. Era um mundo furioso que vinha para a Pedra Bonita: um mundo de assassinos e de perversos. Ele estava ouvindo os passos das alpercatas estalando na caatinga: era a marcha dos matadores. Bento teve que tomar a maior decisão de sua juventude: avisar o Povo da Pedra Bonita para evitar o massacre, exatamente o oposto do que fizera seu ancestral, há um século.

[i] REGO, José Lins. Pedra Bonita. Livraria José Olympio, Editora Civilização Brasileira e Editora Três. 1973. Coleção: Literatura Brasileira Contemporânea. V. 1.

[ii] REGO, 1973, p. 25.

[iii] REGO, 1973, p. 52.

[iv] LAFARGUE, Paul. O direito à preguiça. 2ª ed. Editora UNESP, Editora UCITEC. São Paulo, 2000.

[v] REGO, 1973, p.180.

[vi] REGO, 1973, p. 183.

Edna Garcia Maciel é natural de Igarapava, São Paulo. Foi professora e pesquisadora da UFSC. Doutora em Educação. Atualmente, participa do Núcleo de pesquisa Transformações no Mundo do Trabalho, da UFSC. Livros literários são parte do seu viver.

 

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