Por Lucia Helena Issa.
Logo que voltei a viver no Brasil, depois de seis anos na Itália, fui convidada por um amigo a conhecer, na Serra da Cantareira, em São Paulo, um castelo medieval fundado por um grupo católico no coração da floresta, um castelo que só horas depois eu descobriria ter sido fundado pelos ultraconservadores Arautos do Evangelho, uma associação católica nascida do conflito entre os dirigentes do grupo extremista TFP, ou Tradição, Família e Propriedade.
O castelo, naquela tarde de tempestades outonais, me remeteu imediatamente às Cruzadas, às invasões, ataques, roubos e assassinatos de milhares de muçulmanos palestinos, iniciados por nós, cristãos, em Jerusalém, na Palestina. Os uniformes militares das crianças presentes, os gritos e a atmosfera medieval foram tão assustadores para mim quanto as histórias e depoimentos que fui descobrindo e ouvindo, como jornalista, nos anos seguintes, relatadas pelos pais dos jovens e crianças que ali estudavam.
Mães de origem humilde ou de classe média se encantaram com a possibilidade de seus filhos estudarem gratuitamente, num castelo, com uniformes medievais, princípios católicos e disciplina militar.
O que parecia um sonho para elas, transformou-se em um dos maiores pesadelos da história da educação católica no Brasil, com os dirigentes da “escola” hoje acusados de violência, abusos psicológicos, alienação parental, instigação de intolerância religiosa e abusos sexuais. O Ministério Público de São Paulo já acolheu mais de cinquenta denúncias, quatro delas envolvendo abusos sexuais e morais. Vídeos já veiculados na grande mídia comprovam uma série de abusos morais, desrespeito pela família de alguns alunos, uma disciplina militar extremamente violenta e até um vídeo em que o fundador do grupo católico extremista, o Monsenhor João Clá Dias, ex membro da TFP, insulta o Papa Francisco com palavras bem pesadas, e simula um diálogo patético com o Diabo, como se Satanás em pessoa estivesse ali e afirmasse que Francisco obedece às suas ordens, enquanto o extremista bolsonarista João Clá Dias seria o enviado de Deus para aquela comunidade.
Os casos de jovens ex-alunos são gravíssimos e vão de castigos físicos impostos por Monsenhor João Clá aos abusos perpetrados por outros membros e à morte de uma menina, que segundo seus pais teria se suicidado dentro da instituição.
À medida em que mais depoimentos surgem contra o grupo extremista católico, os Arautos do Evangelho aumentam o tom nos seus ataques ao papa Francisco, aos pais que conseguiram na Justiça o direito de resgatar os filhos dos castelos, onde todos viviam em regime de internato e sem direito de visitar os pais frequentemente, e toda a ala mais humana e mais progressista da igreja Católica em toda a América Latina, onde o grupo vem fundando suas escolas desde 1997.
Diante de tantos depoimentos sobre os abusos, vídeos e provas de que os alunos não podiam sequer ter contato telefônico com seus pais, Francisco determinou o fechamento de todas as escolas fundadas pelo grupo extremista em várias cidades do mundo e nomeou D. Raimundo Damasceno como interventor dos Arautos do Evangelho, enquanto as investigações das autoridades e do Vaticano continuam.
Enganam-se os brasileiros que acreditam que apenas entre os cristãos evangélicos há líderes religiosos que alimentam a intolerância, o ódio, a islamofobia e o racismo em geral.
O ódio, o filho mais velho da ignorância, vem sendo alimentado por extremistas cristãos de várias denominações, inclusive na minha Igreja Católica, e tem nos catapultado para os círculos medievais do Inferno descritos por Dante.
Os ataques do monsenhor João Clá Dias, em seu falso diálogo com o Diabo, apenas confirmam que um dos maiores alvos dos Torquemadas atuais tem sido um dos mais iluminados de todos os homens que já ocuparam o pontificado em Roma e o trono de Pedro. Francisco, o homem que lavou os pés de um grupo de moradores de rua e os recebeu no Vaticano, o homem que trocou a luxuosa “sedia gestatória” por uma cadeira de imensa simplicidade ao assumir seu pontificado, o homem que surpreendeu o mundo ao usar um crucifixo de franciscana simplicidade, o homem que pede que a Igreja seja a porta-voz da tolerância, do acolhimento aos refugiados e do diálogo entre as religiões, o homem que pede aos católicos menos julgamentos e mais empatia pela dor do outro, o homem que tem lutado pelos direitos dos refugiados de guerra, dos negros, e de todos os excluídos, o homem que eu tive a honra de conhecer na coletiva de imprensa durante a Jornada Mundial da Juventude em 2013 aqui no Rio de Janeiro, tem sido alvo de ataques protagonizados pelos mais abomináveis religiosos da minha Igreja Católica, homens da extrema-direita mais mercenária, subordinada aos interesses do Apartheid de Israel e aos princípios mais distantes da mensagem de Cristo que se possa imaginar. Morei em Roma durante seis anos, escrevi matérias sobre o Vaticano para a Folha de São Paulo e também escrevi um livro-reportagem, o “Quando amanhece na Sicília” , em que relato a histórica relação entre padres e bispos de extrema-direita em Roma, os mafiosos da Cosa Nostra, e a misteriosa morte do Papa João Paulo I, assassinado dentro do Vaticano em 1978 e que exerceu o pontificado por apenas 33 dias.
Testemunhei tristemente nos anos 2000 como agem em Roma ou em São Paulo os católicos que promovem o ódio religioso, o assassinato de muçulmanos na Europa e o negacionismo que mata. Os autores dos ataques ao Papa Francisco, pessoas como o Monsenhor João Clá Dias, como o italiano Carlo Maria Vigano, o norte-americano Burke e o brasileiro Olavo de Carvalho representam o que há de mais desumano, repugnante e hipócrita dentro do catolicismo atual.
Homens como o fundador dos “Arautos do Evangelho”, João Clá Dias, doutrinam adolescentes a odiar os mais pobres, os progressistas e os negros, ensinam a odiar o que há de mais humano no legado de Cristo, o amor e a empatia pelos mais vulneráveis, pelos diferentes, pelos de outra religião, pelos imigrantes, e pelos que vivem à margem da sociedade.
Os extremistas cristãos alegam que Francisco tem sido “tolerante demais com os homossexuais do mundo”, ou que tem sido “conciliador demais na questão dos refugiados muçulmanos”.
São apenas hipócritas que jamais se perguntaram de que lado Jesus estaria hoje.
Cardeais, padres, leigos e monsenhores católicos ultraconservadores têm encontrado amplo apoio em falsos “cristãos” como Olavo de Carvalho, o sujeito que chegou a excomungar Francisco, sem nenhuma autoridade para isso, provocando apenas subordinações bovinas por parte de seus seguidores ou desprezo por parte de quem decidiu seguir os passos de Jesus.
Como católica praticante, deixo aqui meu imenso repúdio aos cristãos hipócritas e malignos como o fundador do grupo “Arautos do Evangelho” e minha imensa solidariedade e empatia ao Papa Francisco.
A opinião do/a autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.