Por Clara Assunção.
Irone Santiago garante que preservar a saúde mental é algo “bem complicado” para moradores do Complexo da Maré como ela, que precisam sobreviver no Rio de Janeiro em meio a moradias precárias, muitas vezes sem saneamento básico e outros direitos sociais. E ainda em locais onde o Estado só chega com o braço armado, o que não significa acesso à segurança pública. O fato derradeiro que a fez confirmar sua afirmação foi a madrugada de 12 de fevereiro de 2015, quando foi acordada por uma ligação informando que seu filho, Vitor Santiago Borges, estava baleado e internado no Hospital Estadual Getúlio Vargas, na Penha, zona norte do Rio de Janeiro.
De sua residência, na Vila do Pinheiro, no Complexo da Maré, também na zona norte carioca, até a unidade de saúde, a mãe tentava acreditar que o estado de seu filho não era tão grave. “Um tiro, para quem mora em comunidade, às vezes a gente banaliza”, comenta. No hospital, Irone descobriu, porém, que a situação era bem pior.
Vitor havia sido atingido por dois tiros de fuzil disparados por uma patrulha do Exército no Complexo da Maré, que àquela altura atuava na chamada Força de Pacificação, iniciada um ano antes e encerrada quatro meses depois. Pelo menos seis balas perfuraram a lataria do Palio branco, onde ele estava acompanhado por mais quatro amigos que voltavam para a casa depois de assistirem a um jogo do Flamengo em um bar na noite anterior, véspera do carnaval daquele ano.
Os tiros deixaram Vitor em coma e o submeteram a diversas cirurgias. Em uma delas, precisou amputar a perna esquerda para que não perdesse a vida. Apenas 98 dias depois ele deixou o hospital paraplégico. Um ano depois do crime, o Ministério Público Militar ainda não havia sequer aberto um inquérito, conforme denunciou uma reportagem da Ponte Jornalismo. Apenas em 2020, o cabo do Exército Diego Neitzke, que fuzilou o veículo, foi levado a julgamento no Tribunal Militar. Acusado de lesão corporal gravíssima, Neitzke acabou, contudo, inocentado por seus pares.
Na busca por justiça, Irone também foi parar duas vezes na mesa de cirurgia para operar dois aneurismas cerebrais que associa “a toda a violação” sofrida. “Isso abalou muito minha saúde e acredito que isso abale toda essa comunidade. (…) A saúde mental tem tudo a ver com a violência que a gente vive a todo momento aqui dentro. Como ter saúde mental se você mora em uma lugar em que não se tem os direitos respeitados?”, questiona.
Um estudo inédito, divulgado nesta segunda-feira (23) responde que, de fato, entre as 16 favelas que formam o Complexo da Maré, lar de cerca de 140 mil moradores, “pessoas que experimentaram situação de violência são vulneráveis a apresentar sofrimento mental e pior qualidade de vida”. À margem da Baía de Guanabara, até um terço da população adulta da região, aproximadamente 31% dos entrevistados, destacou ter a saúde mental afetada pelos conflitos armados à pesquisa Construindo Pontes. Um quinto delas também disse sentir os impactos da violência armada na saúde física.
A pesquisa
Hoje ativista pelos direitos humanos, integrante do grupo Mães da Maré e mobilizadora social da ONG Redes da Maré, que conheceu após o crime contra seu filho e a ajudou a se reerguer, Irone diz que por meio de seu trabalho “percebe mulheres com esses problemas todos” que ela também enfrenta.
“É impossível ter saúde mental desse jeito, até porque o próprio Estado não colabora para que você tenha saúde e muito menos saúde mental”, afere.
A pesquisa é resultado da parceria entre a organização inglesa People’s Palace Projects e a ONG Redes da Maré. A iniciativa também contou com o apoio do centro de pesquisa da Universidade Queen Mary, de Londres, a Escola de Serviço Social e Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e o Núcleo de Estudos em Economia da Cultura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Ao todo, foram consultados 1.411 moradores da Maré com mais de 18 anos entre 2018 até março de 2020. A maioria deles negros (65,8%) e com renda familiar de até R$ 2,5 mil (75,5%). Para que o estudo fosse representativo, o território foi dividido em três áreas diferenciadas pelos grupos armados que dominam cada região, de organizações criminosas do varejo do tráfico de drogas a milicianos.
Violência armada cotidiana
Durante as entrevistas em domicílio, ocorridas em 2019, a alta proporção de pessoas que apontaram ter vivido situação de violências nos 12 meses anteriores à entrevista chamou atenção dos pesquisadores. A estimativa é que até 44 mil moradores e moradoras foram expostos a um tiroteio. Entre esse total, 73% passaram por mais de um confronto armado.
Para essas pessoas que vivenciaram essa situação de violência, o percentual dos que acreditam que a saúde mental foi prejudicada subiu para 44%. O estudo também indica uma proporção maior de pessoas nas chamadas Áreas 1 e 2, controladas por duas diferentes facções, que disseram ter sofrido ou testemunhado atos violentos. Superior ao apurado na Área 3, onde atuam as milícias. O que, de acordo com os pesquisadores, mostra “a complexidade do fenômeno da violência na Maré”. Além de revelar “outras formas de coerção” dos milicianos sobre os moradores que não foram captadas pela pesquisa.
O levantamento faz referência, por exemplo, à demanda por pagamentos e o controle de atividades e comportamentos por parte das milícias. Um tipo de repressão mais comuns nesses espaços, onde “a violência não é concretizada na ostentação de armas e conflitos com as forças policiais”, explicam. Ainda assim, de modo geral, 17% dos moradores, o equivalente a 17.019 pessoas, viram alguém ser baleado e assassinado. Entre esse total, 55% testemunharam mais de uma vez episódios do tipo. Questionados sobre conhecidos próximos que foram mortos ou baleados, até 25,5% dos moradores responderam ter conhecimento. Mais da metade deles, 51,7%, relataram mais de uma vítima nas suas relações.
O medo é vizinho
A pesquisa traz o relato de um morador de 23 anos, cujo nome foi protegido, que descreve a sequência de perdas. “A gente teve um amigo nosso que morreu em tiroteio, seu Paulo, morreu ano retrasado; minha cabeleireira tomou um tiro de fuzil, foi ver na janela o que aconteceu e morreu. E teve o vizinho que foi comprar pão de manhã com fone de ouvido. Ele não ouviu que começou o tiroteio, morreu com pão na mão na rua”.
Nem mesmo dentro de casa os mareenses se sentem protegidos: de cada 100 moradores acima de 18 anos, 13 tiveram suas casas invadidas no período. Como desdobramento, para além das vítimas feridas ou mortas, a violência armada também é responsável por “restringir a circulação e ideias dos moradores da Maré, produzir traumas, afetar a saúde e reduzir a confiança nas instituições”, alertam os pesquisadores.
O medo é companhia constante entre a maioria da população (63%) que teme ser alvejada por uma arma de fogo. Um número ainda maior (71%) sente medo constante de que alguém próximo seja atingido. A violência armada acaba sendo ainda a principal questão negativa de morar na Maré para 75,5% das pessoas. Para eles, o impacto da rotina de violências é sentido em seus corpos. Até 30% relataram sofrer de hipertensão arterial e doenças osteoarticulares, como problemas de coluna (23%). E entre as consequências mentais e emocionais, episódios depressivos (26%) e ansiedade (25,5%) foram alguns dos transtornos mais frequentes.
Projeto de insegurança pública
Já entre a população que esteve em meio a tiroteios, 12% mencionaram ter pensamentos suicidas e 30% sobre morte. Essa exposição à violência também levou ao desenvolvimento de dificuldades para dormir (44%); perda de apetite (33%); vontade de vomitar e mal-estar no estômago (28%) e calafrios ou indigestão (21,5%).
Ao longo do segundo ano da pesquisa, o próprio grupo responsável pelas entrevistas sofreu com os problemas da violência armada e precisou cancelar algumas atividades. Aquele ano de 2019 acabou marcando um dos períodos mais letais da história da Maré pela política de “segurança pública” do então governador Wilson Witzel (PSC), que apostou em franco-atiradores da polícia a bordo de helicópteros. De acordo com a 4ª edição do Boletim Direito à Segurança Pública na Maré, 49 pessoas morreram no conjunto de favelas, vítimas de arma de fogo. A maioria delas (34) durante operações oficiais. O dobro do registrado em 2018, quando 24 assassinatos foram registrados.
No mesmo ano, a RBA tentava registrar um projeto de oficina de arte e tecnologia oferecido a idosos da Maré, mas teve de adiar as entrevistas por conta de incursões policiais na região, que conflagraram em tiroteiros. Impossibilitados de falar, quando a reportagem teve acesso aos moradores, o tema violência, que sequer estava na pauta, se tornou inevitável de não ser citado pela urgência dos idosos em denunciar a situação que os impediam inclusive de ter acesso às atividades educacionais.
Outros efeitos da violência armada
A pesquisa Construindo Pontes também identifica essa imposição de barreiras como “um dos efeitos mais graves da violência armada” nos territórios de favela. Em 2018, por conta de operações policiais, as escolas ficaram fechadas por 10 dias e as unidades de saúde por 11. Sob Witzel, as aulas foram suspensas por um período ainda maior de 24 dias. Até 15 mil atendimentos de saúde também deixaram de ser realizados por conta de 25 dias em que as unidades de saúde não puderam funcionar. Mesmo no ano passado, em meio à pandemia, as unidades de saúde ficaram fechadas por oito dias. Um número apenas menor por conta da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de limitar operações policiais em favelas e periferias do Rio.
Diretora da Redes da Maré, Eliana Sousa Silva destaca que a pesquisa “traz a necessidade das políticas públicas considerarem essa demanda por saúde mental”. De acordo com Eliana, todo o processo de adoecimento documentado é “em função da inexistência de outros direitos”, como o de acesso à segurança pública.
“Obviamente quando você não tem o Estado reconhecendo o direito daquela população, muitas vezes, ao contrário, a criminaliza, dificilmente essa população vai ter condição de ter uma saúde mental boa. Então a gente precisa olhar para a saúde mental e cobrar, assim como cobramos outros direitos e lutamos pelo direito a ter segurança pública. Também temos de reconhecer que a inexistência desse direito cria outras demandas e necessidades. Portanto temos que ter políticas públicas voltadas para a questão da saúde mental”, observa.
Guia da Saúde Mental
Com a divulgação da pesquisa, as organizações sociais realizam de hoje até sábado (28) a 1ª Semana de Saúde Mental – Rema Maré. Entre as atividades culturais, debates e intervenções, será distribuído um Guia da Saúde Mental da Maré que reúne orientações básicas sobre o tema para os mareenses.
Moradora da Vila do Pinheiro, Vanda Canuto, que atua no acolhimento de pessoas em situação de rua pela lógica do cuidado e redução de danos, reforça que “falar a saúde mental do pessoal da favela é de extrema importância. Porque a gente entende que a saúde mental é sempre deixada em segundo plano. Se você sente uma dor em qualquer parte do corpo você procura um médico, uma clínica da família. Mas quando é algo que não está legal na mente, as pessoas vão deixando o tempo passar. E acaba que só enxergam quando está no limite, quando chega em um momento de surto”, justifica.
Apesar da iniciativa social, a moradora também ressalta que “o poder público precisa estar mais presente em nosso território não tratando de ‘guerra às drogas’”, como contesta. “Mas entendendo que os moradores da Maré são pessoas que têm direitos de estar na vida e circulando com mais segurança”.
O estudo também conclui que, para além da oferta de acolhimento, atendimento especializado e psicológico, “o mais importante seja a mudança da política de Segurança Pública adotada pelo governo estadual para os territórios de favela”, atualmente sob o comando de Cláudio Castro (PL). “Ao invés de representar proteção, as forças policiais estão associadas ao medo para a maioria dos moradores da Maré”, completa a pesquisa.