Explicando o tal “Marxismo Cultural” que a direita tanto ama

Por Scott Oliver.

Esta matéria foi originalmente publicada na VICE US .

No dia 22 de julho de 2011, no centro de Oslo, na Noruega, o extremista de direita Anders Behring Breivik — que uma vez deu um vibrador de presente para a mãe — detonou uma bomba em frente ao gabinete do primeiro-ministro norueguês, matando oito pessoas. Depois ele dirigiu 40 quilômetros até a ilha Utøya, onde a juventude do Partido Trabalhista, o partido da situação, estava realizando um comício, e começou a atirar contra a multidão, matando mais 69 pessoas, em sua maioria adolescentes. Na manhã daquele dia, Breivik tinha distribuído eletronicamente um tratado de 1.520 páginas, 2083: Uma Declaração Europeia de Independência, denunciando a “ascensão do marxismo cultural/multiculturalismo no Ocidente”. Mais tarde, ele disse que o massacre era um meio de divulgar seu manifesto.

Desde então, o emprego de “marxismo cultural” vem ganhando impulso entre a entidade ampla e diversa (embora eles odeiem diversidade) que é a extrema-direita, que serve como termo responsável por males anti norte-americanos e antiocidentais como o ateísmo, o secularismo, o politicamente correto, direitos dos gays, liberação sexual, feminismo, ação afirmativa, liberalismo, socialismo, anarquismo e, acima de tudo, multiculturalismo. O objetivo final do marxismo cultural, a direita quer acreditar, é lentamente diluir e subverter a cultura branca cristã ocidental, eventualmente abrindo nações soberanas a um governo mundial corporativo. Se esse governo é formado por judeus, lagartos ou comunistas, não fica sempre claro.

A teoria é que o “marxismo cultural” era o plano mestre de um grupo de acadêmicos judeus imigrantes da Alemanha — hoje amplamente conhecidos como a Escola Frankfurt de Teoria Crítica — que fugiram da Alemanha Nazista em 1936, se estabelecendo em Nova York. O que, com certeza, é verdade: numa tentativa de entender por que as condições objetivas do proletariado europeu não conseguiram desencadear uma revolta ampla, eles concluíram que a religião — o grande “ópio do povo” — e a cultura de massa serviam para abafar o fervor revolucionário e espalhar uma “falsa consciência”. Então, acrescentando um toque freudiano ao marxismo, gente como Theodor Adorno, Max Horkheimer, Herbert Marcuse e Walter Benjamin treinaram seus olhos para sacar os sutis entrelaçamentos de repressão sexual e psíquica, acreditando que a consciência revolucionária poderia ser engendrada através de liberação psíquica e formatos culturais e atitudes mais esclarecidos.

Apesar dessas serem mesmo as opiniões de um punhado de pensadores de esquerda escrevendo no meio do século 20, não faz muito sentido que eles tenham sido os arquitetos ideológicos de toda a tomada da cultura ocidental. Ainda assim, aqueles que acreditam que isso já aconteceu, acabaram tendo que explicar como George W. Bush e seus gaviões neoconservadores de algum jeito serviam a agenda esquerdista.

A conspiração do “marxismo cultural” tem uma genealogia complicada na direita dos EUA, começando com sua cunhagem por Lyndon Larouche no começo dos anos 90 (apesar de Hitler ter alertado sobre o “bolchevismo cultural” durante os anos 20). Isso passou por vários jornais esotéricos e think tanks de extrema-direita e foi pego por conservadores paleolíticos como Pat Buchanan (autor de The Death of the West), William S. Lind e Paul Weyrich, e na última década se espalhou febrilmente por cantos mais escuros, masculinistas e problemáticos da internet. Isso já apareceu do Daily Mail (cujo editor acusou a BBC de marxismo cultural) até o site neonazi Daily Stormer, dos fãs do Milo aos meministas, até se tornar a marca registrada dos discursos inflamados no YouTube. [No Brasil, talvez o maior importador e divulgador deste papo é o astrólogo Olavo de Carvalho, que reside nos EUA] Onipresente e quase infinitamente flexível, a ideia é o bode expiatório perfeito, mas trai não só uma leitura desinformada da obra da Escola de Frankfurt, mas também um entendimento extremamente bocó do processo histórico. (Spoiler: São as exigências do capital internacional, não um punhado de sociólogos puxando cordinhas, que vêm colocando a história em movimento nas últimas décadas.)

“Para Breivik, Breitbart e outros, o multiculturalismo é um objetivo estratégico na rota para um superestado global.”

Com certeza o maior impulso para a conspiração veio do uso liberal do termo nos comícios do Tea Party, onde ele foi captada por Andrew Breitbart, logo fazendo ondas culturais em seu site de notícias, focado inicialmente nos males do governo, Hollywood e jornalismo mainstream: a trinca sombria da tomada da sociedade norte-americana pelo marxismo cultural.

Na autobiografia Righteous Indignation, Breitbart descreve a descoberta do marxismo cultural como seu “despertar” — a “pílula vermelha” que todos os teóricos da conspiração tomam para pacificar a complexidade gigantesca do universo com uma busca paranoica de padrões, reduzindo isso à ordem imaginária de um grande plano maligno (a ironia da “pílula vermelha”, claro, é que a ideia foi tirada de Matrix, cujos produtores, os Irmãos Wachowski, agora são as Irmãs Wachowski, já que as políticas trans são outra base do marxismo cultural). Ver seus efeitos, disse Breitbart logo antes de sua morte em 2012, foi como “colocar o remédio no sorvete… Minha grande epifania, meu momento a-há onde eu disse ‘Entendi – vejo exatamente o que aconteceu com este país'”.

O zelo hipócrita animando a kulturkampf subsequente de Breitbart aparece em quase todas suas entrevistas, ilustrando a propensão da internet em permitir que os preconceitos, ignorâncias e ressentimentos de uma pessoa sequestrem a narrativa cultural — ressoando numa câmara de eco, livre de investigações intelectuais e equilíbrio.

Para Breivik, Breitbart e outros, o multiculturalismo é um objetivo estratégico na rota para um superestado global: eroda as fundações da nação e da cultura de seu povo e, abracadabra, você tem um governo corporativo monolítico, monocultural (mas ainda assim multicultural) do mundo. Aparentemente, não ocorreu para esse pessoal que o sistema de nações, com seus paraísos fiscais e diferenças de custo de mão de obra, é intrínseco para a ordem global tecnocrata.

Um dos principais sistemas de entrega do marxismo cultural e da subversão dessas normas ocidentais saudáveis — como as mulheres serem apenas donas de casa e pessoas não-brancas serem proibidas de votar — é a cultura popular. Aqui o “editor geral” do site de teoria da conspiração InfoWars, Paul Joseph Watson — depois de Milo, o ignorante mais eloquente dos sites provocadores da nova direita — explica essa doutrinação e degeneração em massa: “Por que a cultura popular é tão artificial, plástica, vazia, sem significado, grotesca e incrivelmente retardada? Porque do século 20 em diante, niilistas pós-modernistas, relativistas morais e teóricos críticos, apoiando o marxismo cultural, começaram a tomar o controle da sociedade… O objetivo? Minar completamente a fundação da civilização ocidental e nos deixar abertos para a subversão e capitulação”.

Mas em outro sermão de Watson, ouvimos, sob uma montagem de logos da mídia mainstream, o seguinte endosso do capitalismo: “Um mercado competitivo cria qualidade, porque os negócios fracassam se não agradam o público”. Entre as muitas ironias que escapam a Watson — além de criticar incessantemente o viés mainstream da mídia, esclarecendo seu ponto sobre uma montagem de logos MSM — é que a indústria cultural é precisamente um resultado do… [voz dramática de Paul Joseph Watson]… CAPITALISMO. E essa observação foi feita principalmente pela… [voz dramática de Paul Joseph Watson]… ESCOLA DE FRANKFURT.

E por que a sexualidade da Miley Cyrus assusta tanto esse cara? Isso também seria um esquema dos mais notórios marxistas, Disney e Sony? Não, são as forças de mercado — o capitalismo esfregando a virilha na sua cara. (Por exemplo, não está claro como lamentar a “hipersexualização” da cultura pop, que força os homens vítimas a se entrincheirar na “neomasculinidade“, entra no mesmo círculo que entrevistar atrizes pornôs que repudiam a cultura do estupro, cuja onipresença online presumivelmente tem pouco a ver com a “hipersexualização” que ele tanto odeia.) As pessoas querem essas coisas, por mais horríveis que sejam. E esse é exatamente o ponto do capitalismo: ele tem exatamente zero crenças intrínsecas. Nenhuma. Ele não opera por significados. É algo matemático. Ganhe dinheiro! E ele pode monetizar qualquer coisa, do desejo dos fiéis de acessar o reino dos céus até gente chata da direita alternativa no YouTube. Se os ultraconservadores puderem lucrar com a virilha da Miley, eles vão.

“Se as faculdades estão formando tantos marxistas, por que ainda não temos nenhuma propriedade coletiva dos meios de produção?”

Apesar das afirmações de Breitbart de que “experimentamos [o marxismo cultural] diariamente, e com isso quero dizer em todos os minutos: o politicamente correto e seu multiculturalismo”, o fracasso definitivo dessa insurgência marxista pode ser visto, bom, na total falta de qualquer governo marxista no Ocidente desde que Adorno e companhia chegaram aos EUA, ou o fato de que 67 dos indivíduos mais ricos do mundo têm a mesma riqueza que os 3,5 bilhões mais pobres, algo que Lenin não ia achar muito legal. Ou veja isso por outro ângulo: se as faculdades estão formando tantos marxistas (fora a agora extinta Universidade Trump, claro), por que ainda não temos nenhuma propriedade coletiva dos meios de produção?

Porque é tudo bobagem: o produto superaquecido das patologias que informam as crenças de cada novo lunático que molda as ideologias tóxicas do alt-right.

A idiotice da conspiração do marxismo cultural é demonstrada pela maneira como a nova direita neonacionalista e anti-globalista atribui as dinâmicas à esquerda, identificando e combinando o marxismo cultural com a globalização do capitalismo tardio. É uma compreensão muito equivocada da visão de mundo marxista. Da mesma forma, dizer que o principal órgão pelo qual o marxismo cultural se propaga é a cultura pop, que a Escola de Frankfurt denunciou tão explicitamente, devia ser a mais salgada das ironias. E uma ironia colossalmente imbecil.

Então, como o especialista na Escola de Frankfurt Martin Jay aponta: “Claramente atravessamos o espelho e entramos num universo paralelo, onde as regras normais de evidência e plausibilidade foram suspensas”. E essa é a beleza perversa das teorias da conspiração: quanto mais as pessoas denunciam sua loucura, mais isso fortalece as convicções de quem acredita que elas são reais (“Precisamos acreditar, porque ninguém mais acredita, e vocês, ovelhas, sofreram lavagem cerebral, OK?”) até o ponto em que essas pessoas acabam tendo pena de você: “Se você visse os sinais… Eles estão em todo lugar!”.

Sendo assim, o marxismo cultural — esse bicho-papão da direita responsável por estudos queers, globalização, arte moderna ruim, mulheres querendo ser algo além de parideiras, estudos africanos, os anos 60, pós-estruturalismo (basicamente tudo que não é nacionalista, “branco” e cristão) — acaba lembrando uma camisinha vagabunda: esticada até se tornar inútil.

Siga o Scott Oliver no Twitter .

Tradução: Marina Schnoor.

Fonte: Vice.

 

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.