Por Maria Martha Bruno, Agnes Sofia Guimarães, Flávia Bozza Martins e Marilia Ferrari*
Em mais de três anos de gestão, Damares teve apenas 12 compromissos para tratar de assuntos relacionados à igualdade racial, sendo dois relacionados à comunidades quilombolas. Já a população LGBT+ recebeu ainda menos atenção: foram quatro reuniões, uma delas com o Movimento de ex-Gays do Brasil, um dia após a fundação do grupo, em agosto de 2019.
Despachos internos e reuniões de governo, cujo tema não é mostrado na agenda, ocuparam mais de um terço (35%) dos compromissos da ex-ministra. Já o tradicional périplo de parlamentares ao ministério (que ocorre com todas as pastas) ocupou quase 25% da agenda oficial da ex-ministra.
O assunto das reuniões também não é mostrado, mas o gênero sim: 74% dos deputados e senadores que se reuniram com Damares eram homens e 26%, mulheres. Vale ressaltar que, no Congresso Nacional, mulheres ocupam 15% dos assentos na Câmara dos Deputados e a mesma proporção no Senado, distante de países como Argentina, onde elas são 44% e eles, 43%.
Mulheres foram maioria em apenas 234 compromissos, relacionados a idosos, defesa da vida/família, igualdade racial, e… mulheres.
Damares: “Maioria dos gestores são homens”. Não é bem assim
Em entrevista à reportagem, Damares Alves afirmou que a maioria dos gestores que atendeu são homens: “Em compromissos da Secretaria [Nacional dos Direitos] da Criança [e do Adolescente], por exemplo, nos programas de proteção, nas unidades socioeducativas, temos muitos conselheiros tutelares homens, muitos agentes de unidades socioeducativas homens, muitos educadores homens, defensores homens. Quem está em lugar de poder e decisão na sua maioria no Brasil são homens”.
Nos conselhos tutelares, segundo números do próprio Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, mulheres são 71%. Na Defensoria Pública, elas são 51%. Entre educadores, 81% das direções de escolas públicas são ocupadas por mulheres; elas são 96% entre professores no ensino infantil, 78% no ensino fundamental e 58% no ensino médio, segundo o Censo Escolar 2020, do Ministério da Educação.
“E que bom que o ministério da mulher está atendendo homens. É para lembrar que ele não é só da mulher. É da criança, do idoso, dos povos tradicionais. Que bom que a gente não faz essa distinção de sexo. Já pensou se eu dissesse que só vou atender mulher? Não ia dar certo”, completou.
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Damares Alves investe em cestas básicas e cartilhas no combate à covid
Damares Alves saiu do cargo no final de março. Quem comanda a pasta atualmente é Cristiane Britto, antes secretária-executiva do ministério. Ligada às igrejas do Evangelho Quadrangular e Batista da Lagoinha, a ex-ministra se filiou ao Republicanos (partido ligado à Igreja Universal do Reino de Deus) e foi anunciada como pré-candidata ao Senado pelo Distrito Federal.
O Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos informou à reportagem que possui políticas públicas transversais: “Sendo assim, quando tratamos de uma pauta sobre crianças, por exemplo, o tema também pode estar relacionado à igualdade racial. Reforçamos, ainda, que cabe ao MMFDH implementar, promover e assegurar os direitos de todos, incluindo a formulação de políticas e promoção de ações voltadas aos direitos da criança e do adolescente, do idoso, das pessoas com deficiência, dos negros, da juventude e das mulheres de forma universal, sem segmentação”.
Ministério para um tipo de família
“Os dados fazem parte da lógica de construção de políticas públicas a partir de um viés conservador e patriarcal. Inclusive as mulheres que fizeram parte deste processo provavelmente estavam com um alinhamento muito fino com a lógica do governo”, diz Masra Abreu, assessora do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea), organização da sociedade civil que analisa políticas públicas sob uma perspectiva feminista e antirracista.
Entre as mulheres recebidas pela ex-ministra, estão a médica Nise Yamaguchi, conhecida por defender o uso de remédios não eficazes no combate à covid-19. Ela se encontrou com a ex-ministra em 4 de agosto de 2020. No dia seguinte, foi a vez da então secretária de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde, Mayra Pinheiro. Defensora a tal ponto de tratamentos não comprovados contra o coronavírus, ela foi apelidada de Capitã Cloroquina. Logo no primeiro mês de governo, em janeiro de 2019, candidatas a Miss Distrito Federal se reuniram com a ex-ministra.
Para Masra Abreu, “os números comprovam o que foi feito em termos de políticas públicas”. Nessa linha, ela cita o desmanche do Conselho Nacional de Combate à Discriminação LGBT+, em abril de 2019, O QUE REFORÇA a escassa representatividade desta população em espaços como o Congresso Nacional. Apenas três parlamentares são assumidamente LGBT+: o senador Fabiano Contarato (PT/ES) e os deputados federais Vivi Reis (PSOL/PA) e Davi Miranda (PSOL/RJ).
Os compromissos explicitamente relacionados à população LGBT+ representam 0,8% dos eventos da agenda da ministra. “Os dados são estarrecedores, porque um ministério que se diz ‘da família’, no singular, realmente conformou sua proposta de não pensar outras formas de viver e de ser o que somos, com direitos”, completa Masra Abreu.
Direitos humanos
A metodologia da análise da agenda oficial levou em conta os temas tratados pelas oito secretarias do ministério e ainda compromissos recorrentes, que mereceram a atenção de Damares, como sobre voluntariado (eventos com a primeira-dama, Michele Bolsonaro, e do programa Brasil Acolhedor) e o programa Abrace o Marajó (que inclui outras pastas).
Compromissos diretamente relacionados a mulheres, direitos humanos, infância e adolescência são maioria na agenda da ex-ministra (quase 60% do total), quando excluídos despachos internos, reuniões de governo e com parlamentares.
A organização de direitos humanos Human Rights Watch (HRW) foi recebida por Damares Alves em janeiro de 2019, no primeiro mês do governo de Jair Bolsonaro. O encontro, segundo a organização, teve como objetivo iniciar o diálogo com o governo e apresentar preocupações sobre direitos humanos no país. “A ministra foi cordial e se comprometeu com uma agenda ampla de direitos humanos, sem discriminação”, lembra Renata Escudero, coordenadora da HRW.
No entanto, mais de três anos depois, o balanço da Human Rights Watch é crítico em relação a todos os segmentos de atuação da pasta. “O governo Bolsonaro defendeu políticas que contrariam os direitos das mulheres, dos povos indígenas e das pessoas com deficiência. E não enfrentou problemas crônicos de direitos humanos no país, como o racismo estrutural, as condições precárias no sistema prisional e os abusos policiais. O Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, quando não promoveu, pouco ou nada fez para conter essa agenda anti-direitos humanos”, ela diz.
Renata cita como exemplos a omissão da pasta no “enfrentamento do caos penitenciário e da violência policial” e questiona: “Qual é a visão do ministério sobre o efeito da maior circulação de armas na segurança pública e na violência doméstica? Qual o posicionamento em relação ao marco temporal e outras iniciativas que impactam diretamente os direitos de povos indígenas?”
Ela afirma que, mesmo para segmentos que mereceram mais atenção da ex-ministra, como as mulheres, as ações ficaram aquém do necessário. “Em relação a políticas para o enfrentamento da violência contra a mulher, por exemplo, o que vimos, na prática, foram campanhas publicitárias e cartilhas informativas”.
Na pandemia de covid, o Ministério investiu inclusive em cartilha com dicas para casais durante a quarentena, mostrando somente pessoas brancas (há apenas uma mão negra em uma das fotos do documento) e orientando que o “casal tenha uma rotina juntos (sic), em meio às obrigações na casa, no trabalho e com os filhos”. Em um momento em que mulheres ficaram sobrecarregadas com as crianças fora da escola, não há menções à divisão do trabalho doméstico e de cuidado entre homens e mulheres, por exemplo.
Em relação a pessoas com deficiência, parcela da população que também mereceu bastante atenção na agenda ex-ministra, Damares Alves assinou o decreto que busca instituir a Política Nacional de Educação Especial. O projeto propunha escolas e salas de aula separadas das demais crianças. Em agosto do ano passado, houve protesto de familiares contra a política, considerada um retrocesso na luta por mais inclusão no sistema de ensino. Meses depois, decreto foi derrubado pelo Supremo Tribunal Federal, depois que o PSB entrou com ação apontando o caráter discriminatório da proposta. Tratar pessoas com deficiência como “especiais” também é uma expressão capacitista, que segrega verbalmente esta parcela da população.
Prioridades
Damares dedicou pelo menos 76 eventos, mais de 10% de sua agenda, à temática religiosa (cultos incluídos), de defesa da vida (eventos relacionados à agenda contra o aborto) e da família. O total supera em muito a agenda para assuntos como igualdade racial e povos tradicionais, por exemplo: foram 19 compromissos (2,6% da agenda) nestes eixos. A então ministra recebeu a Conaq (Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos) uma vez, em 2019.
“Na campanha o presidente disse: para os quilombolas que pesam sete arrobas não haveria titulação de territórios, nem políticas públicas. A agenda da ministra foi fiel às palavras do presidente. O governo Bolsonaro tirou o orçamento dos orgãos que implementavam a política quilombla, principalmente o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária)”, critica Sandra Maria da Silva Andrade, Coordenadora Executiva da Conaq.
Ela faz referência a uma declaração de Jair Bolsonaro, durante um evento de pré-campanha no Rio de Janeiro, em 2017: “Eu fui num quilombo. O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada. Eu acho que nem para procriador ele serve mais. (…) Se eu chegar lá [na Presidência], não vai ter um centímetro demarcado para reserva indígena ou para quilombola”. Em 2018, Bolsonaro foi condenado pela Justiça Federal no Rio de Janeiro a pagar R$ 50 mil, por danos morais.
Sandra conta que, na audiência com Damares, pediu que o ministério resgatasse a política de regularização fundiária, em articulação com outras pastas. “Solicitamos também a continuidade do Plano Brasil Quilombola, que conquistamos a duras penas nos governos passados. Mesmo assim, as únicas ações de titulação de territórios se deram na Justiça, e não com medidas de governo”, completa.
Segundo relatório “Diretos à terra quilombola em risco”, do projeto de jornalismo de dados e transparência Achados e Pedidos, apenas três territórios quilombolas foram titulados pelo Incra no governo Bolsonaro, até abril de 2021. Este é o menor número para um mandato presidencial desde o início da série histórica, em 2005.
Durante a pandemia, as comunidades quilombolas tiveram que desenvolver suas próprias estratégias de proteção e apoio do ministério de Damares Alves se deu sobretudo pelo envio de cestas básicas, como mostrou a Gênero e Número em 2020. Quando a vacinação contra a covid-19 começou no Brasil, em janeiro de 2020, quilombolas foram excluídos dos grupos prioritários. Dois meses depois, o Supremo acatou ação apresentada pela Conaq que pedia um plano específico de enfrentamento à pandemia nessas comunidades, que então foram incluídas no grupo.
*Maria Martha Bruno é editora de conteúdo, Agnes Sofia Guimarães é repórter, Flávia Bozza Martins é analista de dados e Marilia Ferrari é diretora de arte da Gênero e Número