Ex-estudante da UFSC atuou na linha de frente do resgate dos brasileiros em Gaza

Da esquerda para a direita: Tamer Emam (tradutor), coronel Mario de Carvalho Neto (adido de Defesa), Romane Samer (motorista), Fernando Bastos (primeiro Secretário), e Mohammed Hafez (tradutor). Foto: Arquivo Pessoal.

Quando chegou à embaixada do Brasil no Egito, em 2021, o diplomata Fernando José Caldeira Bastos Neto não imaginava os desafios que enfrentaria nos anos seguintes. No domingo, 12 de novembro, após dias de negociações, muita espera e alarmes falsos, o primeiro-secretário da embaixada no Cairo presenciou os brasileiros deixando a Faixa de Gaza em meio ao conflito com Israel. O diplomata, que cursou Direito na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), esteve à frente da missão que repatriou 32 brasileiros. “É uma missão cumprida, mas a crise continua e provavelmente vai durar”, contou nesta terça-feira, 14 de novembro, seu primeiro dia de descanso em muito tempo.

Por cerca de 20 dias, uma comitiva de cinco pessoas, lideradas por Fernando, seguiu do Cairo até Ismália, no Canal de Suez, para verificar se os nomes dos brasileiros estavam na lista de estrangeiros autorizados a deixar Gaza. “Ficávamos esperando toda a noite, porque as listas só eram divulgadas em torno das 2h da manhã”, relembra. Na quinta-feira, 9 de novembro, após intensas negociações entre os países, o Brasil finalmente constava na lista. Então a comitiva percorreu mais 200 km até Alarixe, uma cidade inóspita ao norte da Península do Sinai, região muito sensível politicamente e altamente controlada – foram cerca de sete horas de percurso, incluindo paradas em mais de 13 checkpoints. 

Muro na fronteira entre Egito e Gaza, onde os brasileiros foram resgatados. Foto: Fernando Bastos.

O hotel já estava reservado, pois não sabiam quando a fronteira abriria e quanto tempo precisariam ficar por lá. “A fronteira é toda murada, uma cena distópica de ficção científica. No primeiro dia, ficamos esperando o dia inteiro, sem nada para comer e beber. E depois de toda essa espera, não abriram a fronteira. Voltamos então para o hotel em Alarixe, onde seguimos esperando e ouvindo as notícias. A impressão que dava era de que não ia abrir por um bom tempo.”

Neste intervalo, Fernando manteve contato com os diplomatas de Ramala e com os brasileiros que seriam resgatados. “Durante essa espera, conversávamos com os brasileiros, recebíamos áudios e vídeos deles. Alguns eram bem difíceis de ouvir, pois dava para ouvir o barulho de aviões passando, de bombas caindo lá perto”, lembrou. Após mais um dia inteiro de espera, em uma cidade isolada e sem nenhuma infraestrutura, a fronteira enfim abriu: “E abriu de maneira meio surpreendente. Abriu muito cedo, antes do horário usual das ambulâncias passarem. Mas logo conseguimos ver os brasileiros lá dentro e deu tudo certo.”

Após a abertura, ainda havia muitas questões para resolver. Jamila Ewaida, uma senhora de 65 anos que acompanhava suas duas netas, não constava na lista. Mas a ideia era não deixar ninguém para trás: “Para mim, essas duas meninas são símbolo dessa comunidade de brasileiros. Elas não poderiam ficar sem a avó.” Foi preciso providenciar também a documentação daqueles que chegaram sem documentos para apresentar. Quando tudo foi resolvido e todos entraram no Egito, a sensação era de alívio, mas também de cautela: “A ficha demora a cair, e nunca se sabe o que pode acontecer até chegar ao Brasil, mesmo entendendo que já estavam todos a salvo.”

Brasileiros resgatados em Gaza. Foto: Fernando Bastos.

Após o sucesso dessa primeira missão, Fernando prevê que ainda terá muito trabalho pela frente: “Nós não sabemos o que vai acontecer, mas o perigo está presente. Não exatamente aqui no Egito, já que o Egito tem boas relações com os Estados Unidos e foi o primeiro país árabe a normalizar relações com Israel. Aqui não existe tensão, não vejo perigo de a guerra extrapolar para cá. Mas já estamos na expectativa pela nova lista de brasileiros. Quem prepara essa lista é a embaixada em Ramala, na Palestina. Nós damos encaminhamento aqui, assim como em Tel Aviv. É um trabalho conjunto destas três embaixadas.” Mas não se sabe, até o momento, o número de brasileiros que ainda podem ser repatriados. “A questão de Gaza é que muita gente não quer sair de lá. Muitos brasileiros que estão saindo, inclusive, querem posteriormente voltar para Gaza. Mas a questão é tão mais grave neste momento, que eles se veem obrigados a sair. Muitos tiveram suas casas completamente destruídas.”

Importância da UFSC

Fernando José Caldeira Bastos Neto, 36 anos, cursou Direito na UFSC de 2006 a 2011. Para ele, sua experiência durante a graduação foi fundamental para sua formação profissional. “Considero a UFSC uma das melhores universidades do Brasil. E sinto falta do campus, da experiência de conviver com gente de todos os cursos. Eu vivi a UFSC de verdade e guardo com muito carinho meus anos de universidade. Eu era dessas pessoas que dormia em Centro Acadêmico, que fazia política o dia inteiro. Eu usei tudo o que a UFSC tinha para me oferecer, fiz matérias em outros centros de ensino, como o CFH [Centro de Filosofia e Ciências Humanas] e o CSE [Centro Socieconômico]. Não fiquei só no departamento de Direito. A UFSC tem muita interdisciplinaridade.”

Essa interdisciplinaridade, segundo Fernando, também era favorecida pela facilidade de transitar pelos diversos espaços da universidade e de se beneficiar das múltiplas possibilidades que um ambiente acadêmico proporciona: “Para mim, uma das melhores coisas da UFSC era poder ir pra qualquer lugar andando, chegar de um ponto a outro em 5, 10 minutos. Em outras universidades que já visitei, como a USP, por exemplo, é tudo muito longe, não dá pra ir a pé, temos que pegar um ônibus dentro do campus. Já na UFSC, para ir do CCJ [Centro de Ciências Jurídicas] ao CTC [Centro Tecnológico], por exemplo, é só atravessar o córrego. Eu realmente sinto falta do clima da universidade. A UFSC tem um clima muito bom.”

Três professores foram marcantes para sua formação: “A primeira e certamente mais importante foi a professora Jeanine Nicolazzi Philippi. Ela é uma das professoras que mais admiro, foi a mais marcante na minha primeira fase, quando ainda era calouro do curso. Respeito muito a Jeanine e guardo ela no meu coração.” Os outros dois professores eram do departamento de Economia: “O Idaleto Malvezzi Aued, hoje aposentado, foi meu professor de teoria marxista. Aprendi muito com ele. E teve também o Nildo Domingos Ouriques, com quem participei de um grupo de discussão política e aprendi muito. Atualmente pensamos de forma diferente, mas ainda respeito muito ele.” Os três docentes marcaram momentos importantes da sua vida: “Hoje não necessariamente compartilho das mesmas ideias. Eu segui meu próprio rumo e tenho minhas próprias ideias. Mas considero que eles foram mestres que fizeram parte da minha formação.”

Movimento Estudantil

Fernando atuou no Centro Acadêmico XI de Fevereiro (CAXIF), órgão representante dos estudantes do curso de Direito da UFSC, de 2007 a 2008. Em seguida, de 2008 a 2010, foi membro do Diretório Central dos Estudantes Luís Travassos (DCE). Portanto, a atuação no movimento estudantil acompanhou toda sua formação acadêmica.

O CAXIF é um Centro Acadêmico tradicional na UFSC. Foi fundado em 1932, apenas seis meses após a abertura do curso de Direito. Segundo Fernando, a experiência política no CAXIF também foi fundamental para sua formação e atuação como diplomata hoje. “O movimento estudantil, muitas vezes, acaba falando muito para si mesmo. Mas o curso de Direito tem uma especificidade, pois há muita disputa política entre diferentes grupos, à esquerda e à direita. Então somos obrigados a testar, de verdade, nossos argumentos. Não podemos ficar restritos à nossa bolha, pois estamos a todo momento sendo testados por alguém que está nos desafiando. Esse, para mim, foi o maior aprendizado no movimento estudantil do curso de Direito. Não estávamos jogando ‘em casa’. Era como se estivéssemos, o tempo todo, jogando ‘fora de casa’. Sempre tinha alguém para nos questionar. Para mim, isso era muito bom, pois é assim que melhoramos nossos argumentos.”

Experiência no Egito

Uma das principais motivações de Fernando na escolha do Egito como seu primeiro posto de trabalho foi sua admiração pelo diplomata Antonio de Aguiar Patriota, designado como embaixador brasileiro no país desde 2019. “Conversei com ele quando soube que tinha uma vaga aqui. Apesar de o Egito não ser um país extremamente estratégico para o Brasil, é um país que está basicamente no centro do mundo. É um país africano, árabe, onde habitam um quarto de todos os árabes do mundo. A população árabe no mundo é de 400 milhões de pessoas e no Egito estão 100 milhões. Existem mais embaixadas estrangeiras aqui do que no Brasil. O Egito é fundamental para o Canal de Suez, para a Europa e para os Estados Unidos. Uma das maiores embaixadas americanas no mundo está no Egito. Para onde vai o Egito, vai o mundo árabe.”

Fernando observa que, na diplomacia, o Brasil precisa dialogar com todos. E para falar com todos, é imprescindível falar com o Egito: “É um país que tem muita importância no cenário internacional, pois consegue aglutinar muita gente. E como o Patriota estava aqui, imaginei que seria uma boa oportunidade de trabalho. Mas jamais imaginei que iria passar por essa crise humanitária. Não só essa crise, mas várias outras coisas que aconteceram nesses dois anos desde que cheguei aqui.”

Antes da guerra entre Israel e Hamas, Fernando já havia enfrentado outros momentos desafiadores: assim que chegou, foi incumbido de tirar da prisão uma criança de apenas 3 anos, cuja mãe havia sido presa quando estava grávida, por tráfico de drogas. Também teve que negociar a rescisão de contrato de dois jogadores de futebol – de 16 e 18 anos – que haviam sido abandonados pelo técnico de um time da segunda divisão do Egito. E o maior desafio, sem dúvida, foi quando precisou organizar uma visita presidencial ao país, programada sem nenhuma antecedência.

Em novembro de 2022, Lula, recém-eleito presidente, viajou até o Egito para participar da COP27, a Conferência da Organização das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas. Para Fernando, essa foi uma tarefa difícil, mas ao mesmo tempo muito satisfatória: “Acho que nunca tinha feito algo tão legal. Tivemos que organizar uma visita presidencial do nada. Geralmente, nas visitas presidenciais, são enviadas cerca de 40 pessoas um mês antes, para preparar todo o percurso, organizar a agenda, marcar reuniões. Mas naquela ocasião era apenas eu e o embaixador Patriota organizando tudo sozinhos, definindo a agenda, decidindo com quem ele iria se reunir. Tive a oportunidade de fazer parte da equipe presidencial durante três dias. Foi uma experiência maravilhosa.”

Antes de chegar no país como diplomata, Fernando nunca tinha estado lá antes. “Eu não tinha ideia de como seria. Como foi minha primeira vez aqui, passei pelo choque cultural no início, mas logo aprendi a gostar muito do Egito. Hoje me sinto em casa. O egípcio é muito parecido com o brasileiro em algumas coisas. Eles são muito hospitaleiros, muito generosos. Têm uma língua completamente diferente, mas se você demonstra um pouquinho de vontade de falar na língua deles, eles já se abrem, te ajudam. Eu estudo árabe, me comunico com eles, converso o básico.”

A embaixada brasileira no Egito é composta por apenas quatro pessoas em missão permanente – dois secretários, um conselheiro e um embaixador – e outras duas diplomatas em missão transitória. “Somos uma equipe pequena, mas estamos fazendo o nosso melhor para não deixar a peteca cair. Quando a crise estourou, o embaixador me designou para cuidar disso, pois estou há mais tempo na embaixada e conheço melhor o país.”

Fernando vive no Egito acompanhado de sua esposa, Laila, e sua filha, Iara, de 5 anos. Ele pretende permanecer por lá até 2024, quando provavelmente assumirá um novo posto em outro país. Mas por enquanto, seus esforços seguem voltados para administrar a atual crise humanitária na região: “O momento demanda muito diálogo e sensibilidade política.”

Daniela Caniçali/Jornalista da Agecom/UFSC

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.