Alberto Acosta, ex-aliado do Presidente, diz que ele quer modernizar o capitalismo e persegue os movimentos sociais.
Leia artigo de Vítor Taveira.
Por Vitor Taveira. Economista e professor universitário, Alberto Acosta é um intelectual que não se exime da participação política e disputa de ideias na sociedade equatoriana. Esteve entre os fundadores do movimento PAÍS, no qual colaborou na construção do programa de governo de Rafael Correa para a presidência do país. Foi ministro de Minas e Energias e presidente da Assembleia Constituinte que culminou na elaboração da Constituição de Montecristi de 2008. Para Acosta, Correa se utiliza dos louros do processo de transformação iniciado pelos movimentos sociais equatorianos para governar.
De antigo aliado e amigo de Correa, Acosta passou a ser um dos mais consistentes críticos do atual presidente dentro da esquerda equatoriana. Ele aponta uma contradição entre o discurso e as práticas do governo e compara o presidente equatoriano a um “motorista de ônibus irresponsável, que dá a seta para a esquerda e faz a curva para a direita”.
Opera Mundi: Qual a importância do Movimento PAÍS para o panorama político do Equador?
Alberto Acosta: Em 2006, quando surgiu o partido, se vivia um momento muito especial no Equador, quando se vivia um processo de lutas que começaram muito tempo atrás, com resistência da população ao neoliberalismo, aos tratados de livre comércio, à Alca. Havia no Equador um ambiente propício para começar mudanças estruturais, mudanças realmente revolucionárias. É muito importante ter em consideração que ali se consolida então todo um processo histórico no qual se foram acumulando não só todas as lutas de resistência, mas as propostas de transformações propostas desde diversos setores da sociedade.
Então havia muita história no momento em que se lançou a candidatura à presidência da República de Rafael Correa e para impulsioná-la se lançou o movimento PAÍS, atualmente conhecido como Aliança PAÍS. Esse é o ponto de partida, não é nada que surgiu da noite para a manhã, senão que estávamos em sintonia com todo este processo histórico.
OM: O que mudou desde a vitória eleitoral do movimento PAÍS até hoje?
AA: As mudanças são muitas. Iniciou-se um processo muito interessante que despertou muitas expectativas no povo equatoriano. Esse processo teve êxitos notáveis e indiscutíveis, que têm seu ponto culminante com a realização da Assembleia Constituinte de Montecristi, que se conclui no ano de 2008 e cujo resultado, a nova Constituição, é aprovada pelo povo equatoriano nas urnas no dia 28 de setembro.
Eu acho que este é o momento culminante deste processo político. De lá para cá o processo vêm perdendo em intensidade, qualidade e rumo. Quando olho para trás e vejo tudo que realizamos e vejo o que havia antes de começar este processo da agora mal chamada Revolução Cidadã, noto que houve mudanças notáveis.
Mas quando vejo o que está acontecendo e faço uma projeção para o futuro, me preocupo bastante. Porque grande parte do ideário revolucionário ficou para trás e o único que o governo maneja é um marketing revolucionário, do “Buen Vivir”, da transformação, que já não tem nenhum conteúdo. Já não há um processo revolucionário em curso, e sim um processo de modernização do capitalismo.
Tudo que era novidade desapareceu e agora há simplesmente um esquema com o qual se vai consolidando uma estrutura de governo cada vez mais autoritária, cada vez mais personalista. O caudilhismo do século 21.
OM: Por que a relação tensa com alguns movimentos sociais?
AA: O que se constitui é um movimento caudilhesco. Onde quer que vá, o presidente assume o papel de portador da vontade política coletiva. Considera que a única pessoa que conhece os problemas e tem as respostas é o presidente, então já não há espaço para o debate. Sem espaços para debate não há democracia e sem democracia não há revolução.
Os movimentos sociais – indígena, sindical, ecologista, de mulheres, de camponeses – foram os que levaram adiante estas longas e complexas lutas, contra o Estado colonial, oligárquico, neoliberal. Isso foi o que permitiu o triunfo do presidente. Mas ele se assume autor de todo este processo, que a histórica começa com ele, e isso é um grave erro, porque as nuvens já estavam carregadas para que se produzisse essa tormenta.
Os movimentos, ou se subordinam ao governante, ou são um estorvo, e por isso os persegue e criminaliza. Isso é terrível. Cerca de 200 pessoas estão processadas e algumas já estão na prisão, inclusive contra artigo da Constituição que preserva o direito à resistência.
OM: A candidatura de oposição de esquerda, encabeçada por você, teve um resultado eleitoral modesto. Isso significa que a esquerda equatoriana é pequena ou que está majoritariamente com Correa?
AA: Foi um resultado lamentável, foi uma derrota eleitoral total. E foi uma derrota política e ideológica, porque não conseguimos retomar o conteúdo do debate político. Não conseguimos impor ou impulsionar tarefas importantes desse debate político e esse é o grande problema das esquerdas. A unidade das esquerdas não prosperou eleitoralmente e também não prospera em termos de uma posição e uma proposta ideológica coerente. Ainda temos muitas distorções, muitas incongruências, muitos receios e não conseguimos dar este passo agora. Mas chegar à conclusão de que estes poucos votos que tivemos representam uma esquerda pequena, minoritária, seria um erro.
Eu acredito que há muita gente que ainda está confusa e continua votando pelo presidente atual por seu governo. Por ele ser um motorista de ônibus que dá sinais à esquerda e vira para a direita. Ainda há um discurso de esquerda, posições anti-imperialistas interessantes para fora, benefícios para os setores populares historicamente marginalizados. Mas não há nenhuma transformação estrutural.
Correa está negociando neste momento um Tratado de Livre Comércio com a União Europeia. Nos vão vender com outro nome, isso está claro. Vão dizer que é um acordo de amor e amizade ou de qualquer outra coisa, mas sabemos que é um TLC, porque não sai do marco do acordo assinado por Colômbia e Peru, que são acordos tipo TLC. Então todo o discurso anti-imperialista, todo o discurso de soberania se desmorona com esse tipo de ações.
OM: Quais são as principais conquistas e inovações da Constituição internas e externas?
AA: Fomos o primeiro país que constitucionaliza os direitos da natureza. Não somos os únicos que discutimos o tema. Esta discussão vem sendo realizada ao redor do planeta em diversas partes. Foram algumas dessas ideias que foram sendo construídas coletivamente, porque nada na Constituição foi produto da inspiração de um só personagem, mas sim um trabalho comunitário, coletivo, que tinha muita história das lutas sociais anteriores.
Portanto, há um tema importante que é o Buen Vivir ou Sumak Kawsay, que não é uma alternativa de desenvolvimento, mas uma alternativa ao desenvolvimento, pois o questiona em sua missão unilinear. Questiona também o progresso em sua visão produtivista.
Estabeleceu-se a lógica do Estado Plurinacional, para superar o Estado colonial, oligárquico e neoliberal que existe em muitos de nossos países, eu diria em todos os nossos países. Além disso, um ponto que eu também incorporaria é a criação dos direitos coletivos, no intuito de dar luz à possibilidade de uma nova forma de cidadania. Não só existe uma cidadania liberal, do indivíduo com seus direitos e obrigações, mas também a comunitária, com obrigações e direitos coletivos. E a cidadania ecológica, poderíamos acrescentar, aquela que deve representar na prática os direitos da natureza.
Há muitas outras coisas na constituição que poderia apontar como novidades, por exemplo, a disposição que proíbe que a banca tenha investimentos em outro tipo de atividade econômica. A mensagem é muito clara: o banqueiro tem que ser banqueiro e nada mais do que banqueiro. Não necessariamente deve ser tudo estatizado, mas tem que estar dentro de outro regime, não estamos falando de um serviço público, mas sim de um regime de ordem pública quando falamos da banca.
OM: Quais seriam os caminhos para alcançar o Buen Vivir?
AA: O Buen Vivir já existe. Acreditamos que é preciso construir o Buen Vivir sim, a nível nacional, a nível planetário talvez também. Mas ele já existe e não podemos nos esquecer disso. Não é que o Buen Vivir está nos livros. O Buen Vivir já tem valores, experiências e práticas concretas de comunidades que têm vivido e resistido a uma sociedade colonial, a mais de 500 anos de colonialismo.
O Buen Vivir abre a porta para um grande diálogo entre o Norte e o Sul globais, tendo em consideração que agora essas ideias vêm dos marginalizados, dos que agora têm muito para contribuir e demonstram que souberam viver, inclusive sob dominação, com outra lógica, com outra civilização.
OM: O governo fala do Buen Vivir como uma mudança de longo prazo, fala da mudança da matriz produtiva. Como você vê este projeto governamental?
AA: O projeto de Buen Vivir é de longo prazo, trata-se de uma proposta civilizatória. Mas a proposta do governo é desenvolvimentista. A proposta do Buen Vivir-Sumak Kawsay é uma proposta que deve superar o desenvolvimento. Qual a alternativa do governo para transformar a matriz produtiva? Seguir o caminho da industrialização que outros países já utilizaram. Há uma inspiração muito mais próxima do que seria a Coreia do Sul ou Singapura do que poderia ser uma proposta própria de Buen Vivir-Sumak Kawsay. É uma coisa completamente diferente.
O que diz o governo para superar o extrativismo? O governo diz que o extrativismo é um problema, mas que se deve ampliar o extrativismo. É uma tremenda incoerência. O que diríamos a um médico que nos dissesse que para superar um grave vício em drogas é preciso aumentar a quantidade de drogas nos quatro primeiros anos e que logo vamos sair do problema das drogas? É uma barbaridade!
É uma enorme incoerência que representa um acirramento dos conflitos não só sociais, mas também ambientais. Pois há a intenção de ampliar a fronteira petroleira, explorar petróleo no centro-sul da Amazônia equatoriana, apesar de que no plano de governo de 2006 se estabeleceu a moratória petroleira. Se abrem as portas à mega mineração, se ampliam os cultivos para agrocombustíveis, se quer introduzir os transgênicos, ou seja, com mais extrativismo não vamos sair do extrativismo, vamos seguir no mesmo caminho do subdesenvolvimento e da dependência.
OM: Mas é possível impulsionar um processo de mudança deixando de lado esses recursos?
AA: O Equador continua dependendo do petróleo de uma maneira importante – cerca de 60% de suas exportações são petroleiras. Exportamos petróleo desde agosto de 1972. O petróleo representa cerca de 30% dos ingressos fiscais, entre 16% e 18% do PIB. Não se pode deixar de explorar e exportar petróleo da noite para a manhã. O que sim dizemos é que não se pode ampliar a fronteira petroleira, porque não vamos resolver os problemas, vamos aumentá-los. Precisamos construir a partir dessa realidade de um país extrativista uma alternativa ou um processo de transições para sair de forma planejada do extrativismo.
OM: Essa contradição também se dá nos outros governos progressistas da América Latina?
AA: Essa é uma das grandes tragédias. Aqui em nossos países não se está construindo o Socialismo do Século 21. Aceitemos. Constrói-se o extrativismo do século 21, que tem alguns elementos melhores que os governos neoliberais. Há uma maior participação do Estado, não são as empresas transnacionais que estão determinando o que vai acontecer. Há uma maior participação do Estado na renda petroleira e mineira, o que permitiu melhorar os investimentos sociais. Mas na prática, seguimos dentro da mesma estrutura, da mesma lógica de acumulação. Economias primárias exportadoras, dependentes do mercado mundial, que está controlado pelos interesses transnacionais.
Foto: Reprodução/OperaMundi
Fonte: OperaMundi