Por Elissandro dos Santos Santana, Porto Seguro, para Desacato.info.
No mundo dominado pela lógica neoliberal capitalista, poucos líderes são capazes de expressar, com coerência, discursos e práxis de luta em torno da defesa da Mãe Terra como faz Juan Evo Morales Ayma.
Ao longo de sua gestão presidencial, em todos os encontros de líderes globais para discussão acerca das questões climáticas, ambientais, econômicas, geopolíticas e sociais, de forma bastante lúcida e responsável, ele tem sido um defensor ferrenho dos direitos e dignidades do Planeta.
Mas e quem é, de fato, Juan Evo Morales Ayma? Ele é um diplomata pela vida e um mensageiro do viver bem ou bem viver em comunhão com a Terra. É o presidente do Estado Plurinacional da Bolívia, país esquecido e, quando lembrado, rechaçado por muitos latino-americano-brasileiros que têm na mídia tradicional do Brasil a fonte única de informação e de juízo sobre nossos irmãos da América Latina.
A pergunta acerca do presidente boliviano não seria necessária se o Brasil já tivesse compreendido a importância da identidade latino-americana e que é na integração de nações que reside solução para parte dos problemas que assola o nosso continente, mas enquanto essa consciência não chega, faz-se importante, apresentá-lo, quantas vezes forem necessárias, tendo em vista que a arquitetura mental sustentável de Evo em relação à nossa Casa Comum é uma oportunidade para refletir no que concerne à importância e à necessidade de outras relações com a Terra. O presidente boliviano nos mostra que é possível um governo ecológico e, consequentemente, sustentável, no trato com o povo e com o capital natural que nos permite seguir a viagem da vida pelos caminhos terrenos.
O incrível é que à medida que muitos brasileiros ignoram as nações irmãs latino-americanas, cultuam os valores do norte, em especial, aqueles vinculados ao neoliberalismo estadunidense e eurocêntrico ocidental. A culpa não é do povo em si, pelo menos, não totalmente, mas dos conglomerados políticos e midiáticos que fomentaram, ao longo de nossa história, essa mentalidade de dependência do Norte como modelo a ser copiado e alcançado e, consequentemente, o desprezo às epistemologias do Sul, ou seja, do continente Latino-americano.
Esse projeto da mídia de fomentar a rechaça ao que é nosso, ao que está no Sul, não se esfacelou na atualidade, ao contrário, toma mais corpo e fôlego a cada dia, por meio de discursos fascistas elitistas vira-latas externos e xenófobos internos, a partir de construtos eficientes de projeção do ódio ao que nos pertence, como se nossas formas de ser e estar no mundo fossem não civilizadas, portanto, menores ou, até mesmo, abomináveis.
O maldoso projeto da grande mídia sempre foi bestializar as massas, tirando-lhes a capacidade da análise histórico-político-social-ambiental, com vistas a introduzir os mecanismos para o eterno círculo da confusão e da desinformação. Mas, ao que tudo indica, nem toda a sociedade se deixou domesticar pelos sonhos e anseios da mídia conservadora a serviços dos donos do poder parceiros das políticas neoliberais de retiradas de direitos dos trabalhadores e de todas as minorias oprimidas, pois as movimentações no Brasil pelo “Fora, Temer” mostram que nem tudo está perdido e que a grande mídia já não conseguirá imprimir seus valores exploratórios nas consciências-sensíveis país afora.
A mesma mídia que sempre imprimiu em nossas mentes que o futuro e a civilização estavam em Miami, Nova Iorque ou na Europa, é a mesma que conseguiu arquitetar e apoiar o golpe mais mesquinho contra os brasileiros com a destituição do governo legítimo de Dilma. É a mesma mídia que, inconformada com a possível libertação do pensar do povo, mais uma vez, tal como fez nas Ditaduras ocorridas no Brasil, uniu-se às forças políticas mais reacionárias para retirar dos cidadãos menos favorecidos, a maioria brasileira, as poucas conquistas sociais alcançadas nos últimos treze anos.
Mas, enfim, diante do fato de que a discussão em torno do modus operandi da grande mídia tradicional brasileira é objeto de estudo interminável, seguirei tratando acerca da sustentabilidade mental de Evo em relação ao Planeta, apresentando o grande, e, talvez, o mais importante documento, para o mundo, uma verdadeira constituição e tratado para a sustentabilidade da Bolívia, o “Vivir Bien”, que poderia muito bem ser planetário, dado que comporta verdades simples e profundas sobre a urgência de outra relação humana com a vida na Terra.
Pois bem, o “Vivir Bien”, como já mencionado, documento boliviano, exemplo para o mundo, é um tratado para a vida e para as futuras gerações. Indultem-me a tomada de partido, mas esse documento somente poderia ter nascido no seio de um povo como o boliviano, filho da cultura andina, na verdade, extensão viva andina do respeito a todas as formas de vida na Grande Pachamama.
O referido documento está assentado nos seguintes pilares: para viver bem ou para o bem viver, há que saber alimentar-se – suma manq’aña, saber beber – suma umaña, saber dançar – suma thuqhuña, saber dormir – suma ikiña, saber trabalhar – suma irnaqaña, saber meditar – suma lupiña, saber amar e ser amado – suma munaña y munayasiña, saber escutar – suma ist’aña, saber sonhar – suma samkasiña, saber expressar – suma aruskipasiña e saber caminhar – suma sarnaqaña.
A discussão em torno do “Vivir Bien” de Evo e, consequentemente do povo boliviano, além dos pilares mencionados, foi elaborada a partir de elementos como: o viver bem não é o mesmo que viver melhor (dentro da perspectiva de acumulação do homo economicus), que não será possível a sustentabilidade se os direitos de minorias como os povos indígenas (na Bolívia, maioria) não forem respeitados e garantidos, que a paz é condição para seguir adiante e sonhando com alegrias no futuro, que é preciso resgatar as histórias e as experiências dos povos originários, que é preciso lutar pela vitória dos povos indígenas, que a filosofia e as práticas em torno do “Vivir Bien” salvarão a Terra e a própria humanidade, que o futuro da Terra passa, obrigatoriamente, pela defesa dos direitos da Mãe Terra, pela responsabilidade para com a harmonia com a natureza e o meio ambiente, por um referendum mundial pelos direitos dos povos, por mudanças de rumo que freiem ou minimizem as mudanças climáticas causadas pelo modelo capitalista de exploração de tudo e de todos, pois só assim será garantido o direito de existência à própria Terra que tanto maltratamos.
Para a compreensão do “Vivir Bien” não como um viver melhor, é necessário perceber como funciona a arquitetura mental do boliviano. Para este povo sob a gestão democrática e participativa de Evo, o “Vivir Bien” não é o mesmo que o viver melhor ou o viver melhor que o outro pelas seguintes razões: para o viver melhor, frente ao próximo, faz-se necessário explorar e, a partir daí, se instala a concorrência, se concentra a riqueza em poucas mãos e, então, se produz uma profunda exploração. O viver melhor dentro dessa lógica capital exige de quem isso deseja a exploração do outro, às vezes, de forma imperceptível e inconsciente. Nesse sentido, à medida que poucos poderão viver bem a maioria viverá mal. Por tudo isso, há uma grande diferença entre o “Vivir Bien” e o viver melhor, já que o viver bem é viver em igualdade de condições e o viver melhor é egoísmo, desinteresse pelos demais, individualismo.
Segundo Evo e o povo boliviano, com exceção da elite, claro, o “Vivir Bien” está em desacordo com o luxo, com a opulência e com a geração de resíduos; está em desacordo com o consumismo. Não se pode entender como em alguns países do Norte, nas grandes metrópoles, por exemplo, existam pessoas que compram uma roupa, a usam uma vez e, logo em seguida, jogam-na no lixo. Por fim, se não há preocupação pela vida dos demais, somente fica o interesse pela vida de cada ser e isto é egoísmo. A falta de preocupação pelos demais gera, então oligarquias, nobreza, aristocracia, elites que sempre procurarão viver melhor à custa dos outros.
É isso o que nos ensina Evo Morales com a sua experiência político-ambiental de gestão participativa, que é possível fugir à lógica capitalista da acumulação, para viver bem.
A guisa de considerações finais, pode-se externar que o “Vivir Bien” é um documento que deveria ser lido por todos os cidadãos brasileiros e do mundo inteiro, pois nele são feitas discussões essenciais que possibilitam reflexões em campos amplos de análise, como os dez mandamentos para salvar o Planeta, a humanidade e a vida, por exemplo.
Segundo o “Vivir Bien”, esses dez mandamentos são os seguintes: terminar, acabar com, erradicar o sistema capitalista, renunciar à guerra, um mundo sem imperialismo, nem colonialismo, a água é de todos os seres vivos, desenvolvimento de energias limpas e amigas da natureza, respeito à Mãe Terra, serviços básicos como direito humano, consumir o necessário, priorizar o que produzimos e consumimos localmente, promover a diversidade de culturas e economias e o próprio viver bem.
No Brasil, essas discussões são necessárias e urgentes, dado que estamos sob a febre do pensar do capitalismo, destruindo e dizimando nossas riquezas naturais e cometendo antropofagias simbólicas e concretas do uso do outro para o viver melhor, o ter mais, o sobressair-se, o destacar-se, no entanto, nossas cegueiras insensíveis não nos permitem enxergar os caminhos de insustentabilidades que estamos trilhando há mais de quinhentos anos.
Enfim, o “Vivir Bien” para quem está sob a égide mental do capitalismo como sinônimo de desenvolvimento é coisa de comunista, e é mesmo, pois comunista, para além dos conceitos deturpados sobre o termo, é partilha, é preocupação com o outro, é justiça social e é disso que o país está precisando, de um olhar de respeito sobre tudo e todos nesse imenso país bestializado pela grande mídia tradicional conservadora a serviço dos Senhores da Casa Grande, sedentos por serem eternos senhores da opressão e do viver melhor, ao bel-prazer da exploração das vidas.
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Foto: Nuevos Aires Portal