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Pesquisadores frequentemente se referem às antigas civilizações das Américas, ou aos povos indígenas em geral, como “pré-colombianas”. A era pré-colombiana significa, essencialmente, tudo o que veio antes da chegada de Cristóvão Colombo, portanto, uma experiência humana nas Américas livre da influência europeia. O termo é usado para evocar uma abordagem científica e prática do tempo em vários campos de estudo: história, biologia, botânica, geografia, antropologia, política e a lista continua. Mas por que enquadrar o tempo dessa maneira? Qualquer experiência humana antes de 1492 corresponde a um período de pelo menos 15 mil anos, em 2 continentes. Do tempo total coberto pelo “pré” e “pós” colombiano na existência humana, o “pós-colombiano” equivale a no máximo 3% do total. Como tal, esse sistema parece ainda mais arbitrário do que “antes” e “depois” de Cristo. Nenhum desses homens está objetivamente no centro de qualquer medida de tempo.
Tecnicamente, o termo “pré-colombiano” não está incorreto. Também não é incorreto descrever a Ditadura como “Pré-Mídia Social”, mas por que fazer isso se não estamos falando sobre Mídia Social? A única razão para definir algo como “não europeu” é centrar a Europa na conversa, e isso não contribui no alcance de precisão nas análises de eras. Também não contribui no alcance de precisão nas análises de experiências indígenas, porque é vago demais para ser útil. Pelo menos útil para qualquer produção intelectual que vise a objetividade e o respeito aos seus sujeitos.
Se o tema da investigação são os Incas, por exemplo, categorizá-los genericamente como “existentes antes da chegada dos europeus” não demonstra respeito. Por essa medida, os maias e astecas também eram pré-colombianos, mas de regiões e épocas bastante diferentes. Incontáveis ??civilizações, povos, etnias e línguas existiam nas Américas antes da chegada dos europeus, e a ampla categoria “pré-colombiana” é uma das características menos notáveis ??de cada uma delas.
Apenas os europeus rotulariam a existência de um povo indígena como “antes de os conquistarmos”. No campo acadêmico da História Humana, que deu origem a esse termo, foram tidos em consideração apenas relatos históricos europeus. Mesmo quando isso começou a ser questionado, em meados do século XIX, por ‘exploradores’ como John Lloyd Stephens, esses povos nativos, e as suas construções ou artefatos, ainda eram descritos como “descobertas”. Essa é talvez a única razão objetiva para usar o termo “pré-colombiano”, para apontar que algo aconteceu ou foi feito antes da descoberta europeia.
John Lloyd Stephens é frequentemente creditado como o descobridor de ruínas maias, mas ele dependeu de “boca a boca” para chegar até elas, o que significa que alguém lhe disse onde elas estavam. Stephens e a sua equipe não foram descobridores, foram documentaristas que analisaram os documentos históricos reunidos e chegaram à conclusão nada surpreendente de que foram realmente os maias que construíram os monumentos. Ao pensar no legado da civilização maia e no que essas ruínas simbolizam, descrevê-las como “pré-colombianas” é tão informativo quanto dizer “isso não foi construído por nós”.
Já foi argumentado que o termo “pré-colombiano” é um esforço de combate ao eurocentrismo, uma vez que diminui a ênfase do papel dele no período. Contudo, mesmo como negação, Colombo, um homem, é colocado no centro. Como pode ser que um homem, ao pisar numa ilha, instantaneamente, e sozinho, ponha fim a uma era de dezenas de milhares de anos? Monumentos magníficos, pirâmides, arquitetura, florestas criadas, tecnologias agrícolas e medicinais, possivelmente 100 milhões de pessoas espalhadas por cerca de 40 milhões de quilômetros quadrados de terra, estão todos colocados à sombra de um só homem. Isso é irreal demais para ser científico.
“Embora os dados devam ser puros e diretos, a ciência é feita por pessoas, que nunca são nenhum dos dois.” (Adam Rutherford, em Uma Nova História dos Povos Originários nas Américas)
Na botânica, várias espécies de plantas são atribuídas como descritas pela primeira vez pelos europeus. Isso porque o processo de “descrição de espécies”, tal como o conhecemos hoje, é uma invenção europeia – não tem nada a ver com o fato de uma pessoa ter encontrado a espécie pela primeira vez.
O Platypodium elegans, por exemplo, nativo do Brasil, está associado a um botânico alemão do século XIX chamado Vogel. Porém, o povo indígena Xavante, considerado uma das “populações fundadoras das Américas”, já se referia a essa planta como ‘wede itsaipro’, ou “árvore com espuma”.
A descrição da espécie trata da primeira pessoa que encontra o espécime, que também atua no âmbito da publicação de artigos científicos. Isso significa que várias pessoas, comunidades ou culturas podem muito bem ter tido contato íntimo com as espécies vegetais descritas, durante anos, séculos ou milênios, mas não com publicações científicas em instituições acadêmicas europeias.
O conceito de ‘primeira descrição’ de novas plantas trata da construção de um banco de dados que segue um padrão estabelecido em 1735, na Holanda, por um botânico sueco chamado Carl Linnaeus. Ou seja, não se trata de descoberta, mas de consenso para seguir um padrão específico, criado em um local específico por uma pessoa específica. Essa norma pode a qualquer momento ser questionada e o consenso revogado.
Na época em que Linnaeus publicou Systema Naturae, ele acreditava que o mundo não abrigaria mais de 10 mil espécies de plantas. Embora o seu método seja interessante e útil, não estava exatamente equipado para sustentar a escala moderna de computação de dados, por isso teve de ser adaptado. Essa adaptação pode, e deve, ser levada mais longe para honrar não só a precisão nas descrições das espécies de plantas, mas também as civilizações que detêm um vasto conhecimento sobre essas plantas, há milénios. Esses povos originários desempenharam um papel no desenvolvimento genético de muitas plantas através de antigas tecnologias agrícolas e da domesticação de culturas, e informações valiosas sobre as propriedades medicinais, dietéticas e culturais dessas plantas não serão mais negligenciadas.
Xavante, entre outros, é um nome que deveria ser conhecido e falado sobre tanto quanto, e mais do que Colombo, Stephens ou Vogel. Para isso, deve-se fazer um esforço conjunto para substituir “pré-colombiano” por algo mais específico, como datas, localizações e nomes das civilizações e dos povos originários. A documentação produzida pelas expedições europeias pode muitas vezes ser útil, mas quando aceita sem crítica ou análise, perde-se muito mais conhecimento do que se ganha.
Mirna Wabi-Sabi é escritora, editora e fundadora da Plataforma9.
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