Bombardeiros norte-americanos decolam do porta-aviões George H.W. Bush para missões de guerra no Iraque. Missão “humanitária”?
Nos confins do Curdistão, uma cidade onde vivem “milhares de americanos”. Que os levou até lá? Qual o verdadeiro motivo da nova campanha militar de Obama?
Por Steve Coll.*
Defender Erbil: essa foi a principal causa que levou o presidente Obama de volta à guerra no Iraque semana passada, dois anos e meio depois de cumprir promessa de campanha e retirar de lá os últimos soldados.
Depois de Mazar-i-Sharif, Nasiriyah, Kandahar, Mosul, Benghazi, e incontáveis outras pontos de intervenção militar dos EUA – cidades cujos nomes derrotariam todos os candidatos de programas de “adivinhe onde fica” antes de 2001 – chegamos agora a Erbil. Pode-se bem perdoar o isolacionista: “Chegamos… onde?!”
Erbil tem longa história, mas, em termos de política econômica, entende-se melhor a cidade hoje como uma espécie de “Deadwood” curda, como no seriado de David Milch para a HBO, sobre uma cidade da corrida do ouro, cujo anti-herói, Al Swearengen, convence um governo local a inventar por ali um verniz de governo e normalidade, porque interessa aos negócios dele.
Erbil é cidade da corrida do petróleo, onde os poderes locais manobram similarmente seus ambíguos poderes para garantir ganhos financeiros – deles mesmos e de qualquer pioneiro selvagem esperto o bastante para conseguir investir dinheiro sem ser imediatamente roubado.
Erbil é a capital do Governo Regional Curdo & Petróleo, no norte do Iraque. Ali os EUA construíram alianças políticas e armaram milícias peshmerga curdas muito antes de o governo Bush invadir o Iraque em 2003. Desde 2003, tem sido o local mais estável de um país instável. Mas semana passada, guerrilheiros muito bem armados, leais ao Estado Islâmico no Iraque e Levante, ISIL, ameaçaram os arredores de Erbil, o que forçou a espetaculosa ação de Obama. (O presidente também ordenou operações aéreas para entregar ajuda humanitária a dezenas de milhares de yazidis e outras minorias não muçulmanas cercadas no remoto Monte Sinjar. Um Curdistão seguro garantiria santuário para esses sobreviventes.)
“A região curda é funcional do modo como gostaríamos de ver” – Obama explicou em fascinante entrevista que deu a Thomas Friedman, publicada na 6a-feira. “É tolerante com outras seitas e outras religiões, como gostaríamos de ver em outros pontos. Por isso achamos importante assegurar que esse espaço esteja protegido.” Dito assim, até parece verdade, e até certo ponto é convincente.
O Curdistão é, sim, um dos já raros aliados confiáveis dos EUA no Oriente Médio, nesses tempos. A economia conheceu um boom em anos recentes, atraindo investidores de todo o mundo, o que fez erguer-se ali um fulgurante novo aeroporto internacional com as mais modernas e também fulgurantes facilidades e serviços. Claro, comparado à, digamos, Jordânia ou Emirados Árabes Unidos, o Curdistão tem um déficit terrível, na condição de aliado dos EUA: o Curdistão não é estado. Nem tem nada a ver com fabricar a unidade nacional do Iraque, que continua a ser o principal projeto do governo Obama no Iraque. Vistas as coisas por esse ângulo, a explicação que Obama ofereceu para seu casus belli pareceu um pouco incompleta.
Conselheiros de Obama explicaram aos jornalistas que Erbil abriga um consulado dos EUA e que “milhares” de norte-americanos vivem lá. A cidade tem de ser defendida, dizem eles, contra o risco de o ISIL passar por lá, destruir tudo e ameaçar vidas de norte-americanos. Tudo muito bem, mas… O que fazem lá, em Erbil, os tais milhares de norte-americanos? Em busca de ar puro é que não estão.
ExxonMobil e Chevron estão entre as muitas empresas de petróleo e gás com contratos grandes e pequenos para perfurar no Curdistão, contratos cujos números compensam as empresas pelo risco político sempre alto. (Chevron disse, semana passada, que estava retirando alguns expatriados do Curdistão; ExxonMobil não quis comentar.) Com essas gigantes do petróleo chegaram, como sempre os de sempre: empresas de serviço nos campos de petróleo, contadores, empresas de construção, de transporte e, no fundo do poço da cadeia econômica, diversos empreendedores cavando espaço.
Percorrer com os olhos a lista telefônica da Câmara de Comércio de Erbil é uma experiência poética, só dos nomes dos empreendimentos: Cozinha dos Sonhos, Sonho Vivo, Ouro Puro, Gala Eventos, Emoções Eventos e o endereço onde eu pensaria em fazer minha última refeição, se colhido no torvelinho de um massacre do ISIL, “Famous Cheeses Teak.”
Nada tem a ver com petróleo. Depois que você tiver escrito essa frase 500 vezes na lousa, até aprender, assista ao documentário “Why We Did It” [Porque nós fizemos aquilo] de Rachel Maddow, para conhecer visão altamente sofisticada, embora agudamente jornalística, e entender de uma vez por todas que a economia mundial do petróleo sempre lá esteve, desde o início, como parceira silenciosa do fiasco dos EUA no Iraque.
Claro que é dever do presidente Obama defender vidas e interesses dos EUA, em Erbil e onde for, com petróleo ou sem. Mas o caso é que, em vez de ordenar a imediata evacuação dos cidadãos, ele ordenou campanha de ataques aéreos que durarão meses, para defender o status quo do Curdistão, em campo – presumivelmente, seria essencial para um Iraque unificado capaz de isolar o ISIL. Mas o status quo no Curdistão inclui produção de petróleo por empresas internacionais, como seria honesto declarar. OK. A defesa do Curdistão que Obama ordenou deve funcionar, se a peshmerga curda puder ser novamente recolhida, reunida e fortalecida em campo, depois de uma alarmante retirada, semana passada.
Mas há buracos na lógica de Obama sobre Erbil. O presidente disse claramente, semana passada, que ainda acredita que um governo duradouro de unidade nacional – que inclua líderes sérios da maioria xiita do Iraque, curdos e sunitas que se opõem ao ISIL – possa ser formado em Bagdá, ainda que exija mais semanas, além dos três meses de dificuldades que já se passaram desde a mais recente eleição parlamentar no país.
O projeto de um governo unificado em Bagdá, forte o bastante para derrotar o ISIL com um exército nacionalista e na sequência extrair dele os seguidores dos sunitas parece cada vez mais ideia delirante; era difícil, na entrevista a Friedman, entender de que lado Obama realmente está.
Por que tem sido tão difícil construir qualquer tipo de unidade política em Bagdá e há tanto tempo? Há muitas importantes razões – a desastrosa decisão dos EUA de desmobilizar o Exército Iraquiano, em 2003, e de apoiar a furiosa des-Baathificação, que afastou os sunitas, distanciamento que ainda não foi corrigido; ódio sectário crescente entre xiitas e sunitas; o envolvimento de sunitas com a filosofia da Al-Qaeda e com o dinheiro e ‘soft power’ do Golfo Persa; a interferência do Irã; as dificuldades das fronteiras pós-coloniais do Iraque; o mau governo em Bagdá, particularmente sob o primeiro-ministro Nouri al-Maliki. Mas outra razão, e de primeira ordem, é que os EUA cobiçam o petróleo dos curdos.
Durante o governo Bush, aventuras como a da empresa Hunt Oil, que tem sede em Dallas, pavimentaram o caminho para a ExxonMobil, que acertou um negócio em Erbil em 2011. Bush e seus conselheiros não conseguiram forçar empresas norte-americanas de petróleo, como a Hunt, a sair do Curdistão nem a sancionar investidores não norte-americanos. Deixaram os gatos selvagens agir como bem entendessem, sempre insistindo que os políticos de Erbil negociassem uma partilha de lucros do petróleo e a unidade política, com Bagdá. O governo de Erbil nunca entendeu exatamente a necessidade de um compromisso final com políticos xiitas de Bagdá – e com os curdos ficando cada vez mais ricos, nos seus próprios termos, eles passaram a atrair empresas de petróleo mais confiáveis e mais ricas; assim, cada vez mais se foi criando a impressão de que aquele governo governava um estado de-facto. O governo Obama nada fez para reverter essa tendência.
Assim também, em Erbil, nas semanas vindouras, pilotos norte-americanos defenderão por ar a capital cuja crescente independência e crescente riqueza já afrouxaram os laços com o Iraque, ao mesmo tempo em que, em Bagdá, diplomatas dos EUA ainda insistem quixotescamente no esforço para alinhavar juntos todos os pedaços do mesmo país, para enfrentar o ISIL.
Obama a defender Erbil defende, de fato, um estado-petróleo curdo não declarado. Sobre as fontes de sedução geopolítica desse estado – como fornecedor não russo, de longo prazo, de gás para a Europa, por exemplo –, melhor não falar, se houver crianças ou gente civilizada na sala, como Al Swearengen, do seriado Deadwood, entenderia. A vida – como disse Swearengen num episódio – é quase sempre feita de “um serviço sujo depois do outro”. É como a política dos EUA no Iraque.
*No New Yorker
Tradução: Vila Vudu
Fonte: Outras Palavras