Por Cristiane Sampaio, com fotos de Leonardo Milano.
A dona de casa Doralice dos Santos Oliveira já contava 53 anos – mais de 40 deles trabalhados na enxada, sob o sol ardente do campo – quando conheceu o mundo das letras. “A coisa que mais achei bom na vida foi ir pra escola”, conta. Moradora do município de Itaipava do Grajaú, interior do Maranhão, e filha de analfabetos, ela passou a vida utilizando a digital para assinar documentos, uma necessidade que só mudou em 2016.
Depois de um convite do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), ela passou a frequentar o projeto Sim, Eu Posso. Foram oito meses de aulas até que Dona Dora – como é conhecida na comunidade – passasse, enfim, a fazer parte das novas estatísticas do estado. Ela é uma das cerca de 7 mil pessoas que se formaram pelo projeto, uma iniciativa voltada para a alfabetização de jovens, adultos e idosos, apoiada pelo governo estadual.
Baseado num método cubano e adaptado ao Brasil pelo MST, o projeto é hoje a esperança de milhares de maranhenses que viveram por muitos anos sem o direito de saber ler e escrever. “Quem não sabe [ler] vive no mundo só pra dizer que está vivendo, mas não sabe de nada. É como se estivesse no escuro, entendeu? A gente vê as coisas, mas não sabe o que é”, conta Doralice.
O Maranhão é o terceiro estado brasileiro em número de analfabetos, alcançando 840 mil pessoas, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A taxa de analfabetismo entre pessoas de 15 anos ou mais no estado é de 16,7%.
Essa realidade se transforma à medida que novas pessoas ganham assento em uma das turmas do Sim, Eu Posso. No segundo semestre de 2017, teve início a segunda etapa do projeto, com mais de 20 mil alunos distribuídos em 15 municípios. Na primeira jornada, em 2016, cerca de 75% dos 9.482 inscritos encerraram o curso alfabetizados.
“A vontade é metade da viagem”
Aplicado nos municípios de menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do estado, o projeto teve a primeira experiência no Maranhão em 2008, em caráter experimental e voltado para assentamentos e acampamentos de reforma agrária. Hoje, a iniciativa reúne diferentes grupos – trabalhadores urbanos, sem-terra, indígenas, quilombolas, entre outros – e alcança gente como o entusiasmado Raimundo Neves Ferreira, um aposentado de 62 anos que se sente “como um garoto de 12”.
Todo dia, quando cai a noite, lá está ele sentado na sala de aula do professor Erasmo – o próprio filho, diga-se de passagem –, ao lado de outros seis membros da família. “A melhor parte do meu dia é esta, a hora em que eu venho pra aula”, conta, estampando um sorriso.
Com 48 anos de agricultura, Raimundo estudou apenas uma vez na vida, na adolescência, quando teve a oportunidade de aprender o abecê com uma professora particular. Mas, sentindo todo dia o peso da enxada, não conseguiu ir além, e só agora pisou numa sala de aula pela primeira vez. “Praticamente, eu não sei nada, mas tenho vontade de aprender”, vibra.
O que ele vai fazer depois que concluir os oito meses do curso de alfabetização? Escrever um livro sobre a história do município de Itaipava do Grajaú, onde nasceu e se criou. “Ainda está bem longe [disso acontecer], mas a vontade é a metade da viagem, aí eu vou lutar pelo resto”, diz, ensinando todos ao redor.
Companheirismo
A empolgação do aposentado é a mesma que move o coração de gente como Miguel da Conceição Nogueira, 84 anos, e Geni Rodrigues dos Santos, 77 anos, o casal de alunos mais idoso do projeto. Com 62 anos de casamento, os dois pisaram na sala de aula pela primeira vez juntos, para o encanto de todos que fazem parte desse convívio.
Todo dia eles saem de casa com a roupa bem passada e mochila nas costas para assistir às aulas do Sim, Eu Posso. “Nós somos os primeiros que chegam e os últimos que saem”, gaba-se Geni, que não pôde estudar quando jovem porque precisava ajudar a mãe a tirar o sustento de casa. “Tinha muita vontade, mas não tinha tempo, aí chegou o momento em que sou estudante também. Tudo tem o dia”, celebra a aposentada.
Com uma origem tão pobre quanto a dela, Miguel não contava com a possibilidade de ainda conseguir estudar, mas hoje, com apenas poucos meses de aula, já comemora o feito de escrever a própria assinatura, estampada no título de eleitor recém-tirado. “Eu fico muito satisfeito, alegre”, diz, exibindo o documento.
Ao serem convidados para o projeto, os dois, assim como muitos outros alunos, sentiram timidez e receio, mas seguiram em frente, na ânsia de tecerem outro horizonte de vida, a despeito de qualquer idade. Segundo a coordenadora pedagógica Maria Zenilde, que acompanha sete núcleos do projeto, o medo dos alunos não resiste ao encanto da sala de aula. “A resistência de vir pra escola é só até o momento em que eles vêm porque, no dia seguinte, não querem mais deixar de vir”, conta.
Que o diga Dona Dora, que, mal se formou na turma de 2016, já é uma das alunas do programa Educação de Jovens, Adultos e Idosos (Ejai) do estado. “Eu não paro, não. Quando não estou fazendo crochê, pego o livro. Quero é aprender”, diz.
Já o medo, aquele que quase a impede de iniciar os estudos, ficou no passado, na retaguarda da vida, para onde Dora não pretende voltar. “Só vou daqui pra frente agora, fazendo mais e mais cursos”, avisa, espiando o futuro.