Eu não sou feminista, MAS… Flávio Carvalho na Retrospectiva Semanal

Por Flávio Carvalho, para Desacato.info.

No consigo dormir. Tengo una mujer atravesada entre los párpados. Si pudiera, le diría que se vaya; pero tengo una mujer atravesada en la garganta” (Galeano).

Na gramática da língua portuguesa, o nome da conjunção é “adversativa”, quando indica oposição ou contraste dentro de uma mesma frase. Eu prefiro chamar logo de contradição. Encurta-me o caminho, para o que eu quero dialogar. “Mas…”.

O título desse texto é uma provocação (a pensar).

Quando um racista coloca um “mas…”, depois de dizer “eu não sou racista”, não espere boa coisa depois das reticências.

Lutar contra o fascismo, o antifascismo, a luta contra esse inimigo etéreo e cada vez mais concreto nas nossas vidas, oferece caminhos curtos e mais objetivos – mas nem por isso menos complexos: a luta contra o machismo, os feminismos; e a luta contra o racismo, o antirracismo. Caminhos que podem até confundir prioridades. Quando tudo é prioridade, nada é prioridade. E caminho se faz ao caminhar.

Leia mais: Sai da Frente! E o Decálogo da Outra Masculinidade.

Nesse meu jogo de palavras, diferentemente, quando eu uso uma frase pra quem gosta somente de título, eu omito – propositadamente – a melhor coisa: tudo aquilo que virá depois das reticências. O que vem depois do “mas…” pode ser ainda mais significativo.

Vivo escrevendo que o mais importante não é tanto o primeiro passo, o afirmar-se (sem reafirmar-se; cuidado!) como machista para depois descontruir aquilo que se admite que foi (mal) construído. A equação é mais simples do que pensamos: tudo aquilo que foi construído pode ser desconstruído; ou, melhor ainda, pode ser reconstruído.

Para o “vírus do machismo”, incubado durante anos dentro da gente, não há vacina.

Porém, aqui te aconselho medicina “natural”, mesmo que seja pra não naturalizar a coisa. Não são comprimidos nem produtos que podem ser comprados no supermercado. Estão aí, dentro de casa. Ainda não viu?

Conte quantos espelhos você tem em casa. Eleja o melhor espelho. Ou compre um bem bonito. Ou pinte e revalorize o que já tem. O importante é olhar-se nele, num escolhido, como se fosse pela primeira vez. Pode ser em sentido figurado ou não. Mas é importante essa abstração de reconhecer-se para depois estranhar-se. Não se trata de sabermos se somos machistas. Não precisa. Eu já te digo que sim, somos. Lamento, mas não adianta tentar fugir disso. E o melhor ou pior é que não sou eu quem diz. Se quiser, posso te indicar uns quantos livros.

O importante é que esse reconhecimento seja tão profundo (porque sim, sempre há esse risco) que não signifique que nada pode ser feito para mudar.

Por isso mesmo, insisto: mergulhar nos próprios machismos pode ser algo tão perigoso quanto o medo de mergulhar. Ler livros feministas pode armar-te apenas de palavras bonitas. Queira mais pra sua vida.

Pois, então, vamos lá.

Reveja todos os seus relacionamentos. Suas paqueras, namoros, paixões, amores de juventude ganharão novos significados. Foram ali, naqueles momentos, que algo importante intensificou o seu processo de estruturação machista. É sabido que a adolescência é complexidade pura. O meu eu machista, por exemplo, reencontrei por ali, em determinados episódios da minha vida.

Atenção. Esses reencontros com a tua própria história podem não serem maravilhosos. Pelo contrário. Tampouco sei como ajudar a que te sintas preparado. A única coisa que posso te recomendar, em uma palavra mágica: coerência. Busque o seu significado e (pelo menos) tente ao máximo ser coerente. Também parece complicado (e é!), mas o facilite, para si mesmo: lembra aquela velha história do “não desejar ao outro o que não quer para si mesmo”? Parece fácil, mas não é. Mas, nesse caso, não importa. É BOM começo. O que já pode ser muito.

Logo, dê um salto e tente rever todos os seus sentimentos em relação às violências de gênero. Não será difícil. Estão em cada esquina e página de jornal. Em diferentíssimos graus, isso sim. Eis o x da questão. Tentar identificar a correlação entre todos os detonantes de violência machista poderá te conduzir à constatação de que a palavra, “a pólvora”, é Poder.

Tudo aquilo que você acha que poderia ter feito e não fez e tudo aquilo que você acha que não poderia ter feito, mas fez, é um exercício tão interessante de realizar-se coletivamente, quanto antes ele tiver sido praticado na intimidade.

Por aqui, por enquanto, o deixo.

Mas não te deixo. Pode ficar tranquilo. Precisamos e falaremos mais sobre tudo isso…

Os objetivos fundamentais deste texto foram “somente” te fazer pensar, tentar que gostes do que lês e, principalmente, que termines com a sensação de que são assuntos bem familiares. No sentido aquele de que estão aí, dentro de casa. Ou, melhor ainda – embora eu reconheça que nem por isso estejam mais fáceis de alcançar – pois estão aí, dentro de ti.

Empatia, enfim.

(assertividade e alteridade; coerência e empatia).

Aquele abraço.

Barcelona, verão de 2020.

Flávio Carvalho. Foto: Reprodução do Facebook

@1flaviocarvalho é sociólogo e escritor.

#AOutraReflexão                #SomandoVozes

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