Por Francieli Borges, Porto Alegre, para Desacato.info.
No asfalto, de cima do décimo andar, eu via um protesto. Na confusão das cores, cartazes e bandeiras; no barulho das buzinas, apitos e palavras-de-ordem, alguns tons pincelavam uma mancha inequívoca de uniformes. O descontentamento generalizado uniu os protestantes da categoria da segurança pública, e para os transeuntes desavisados, ver pessoas da lei na marcha causava imediata simpatia. Acordos feitos, qual quinze dias, as pautas diversificadas não garantiriam apoio mútuo em todas os outros protestos semelhantes que não parariam de crescer, em todas as esferas. Mas isso eu ainda não sabia. Quando anotei esse rodapé do dia, o ano ainda era 2014, data em que encontrei no sebo o Linhas Tortas*, do Graciliano Ramos.
De ordinário eu precisava do livro em um trabalho, mas não pude deixar de perceber como o autor mencionava, em uma crônica de jornal, as manobras garantidas pelo amaciamento da oposição, que tornava os antigos entusiastas unidos os mais terríveis inimigos. Mas ele também não falava de 2014, e sim de 1938, após ter sido liberto da prisão na qual esteve sem acusação formal, provavelmente porque julgado subversivo pelo governo Vargas – que foi inicialmente provisório, de 1930 a 1934; de 1935 a 1937 legal, porque eleito; depois, de 1937 a 1945, ditatorial, o Estado Novo. Curioso que o autor tenha sido trancafiado no único período em que Vargas foi presidente legítimo naqueles anos, o que diz muito sobre a história da institucionalidade democrática brasileira.
Passou o tempo, esses fatos e linhas a esmo ficaram esquecidos – até hoje, treze de dezembro de 2016. Novamente tenho aquele livro nas mãos no momento em que soube da aprovação, no Senado, da Proposta de Emenda Constitucional 55, que prevê o limite dos gastos públicos por vinte anos conforme a inflação, e até lá, será 2037. É impossível prever como estará o Estado brasileiro, embora imagens bastante catastróficas já estejam anunciadas nos mais resignados, nos mais entristecidos e nos mais indiferentes.
Mesmo que eu não acredite que a história se repita ou que carregue a grande função de pressagiar o lado bom e o lado ruim da dicotomia sugerida, conforme os lugares bem à moda desse ano interminável, é impossível não perceber a repetida imagem desse velho baralho de cartões-postais que Graciliano apresenta aos leitores. Fico remoendo decepções, comparando essas semelhanças alimentadas por um amarelo pastoso intratável, luz antiga e carimbada que engordura os olhos e eu preferia não perceber. Isso porque o autor evoca o pertencimento que nós temos em relação às instituições. Os narradores, os espaços, as personagens gritam: mantenham-se em permanente desconforto diante das autoridades. Ao invés disso, nos atamos ao álbum atrasado.
A carta nova do baralho da atualidade é a quebra de certas tradições: vejamos, já nem existe a preocupação em engambelar as brasileiras e brasileiros com conto do vigário, esse clássico do país. Escancaram as falcatruas e apesar disso, não é raro acompanhar o cidadão se resolver a afrontar o ridículo, acreditar com otimismo e ingenuidade até comovedora que a melhora da economia brasileira, alimentada também pela crise política, virá com a austeridade – controle de gastos dele, naturalmente, não de quem o sugeriu e o brindou em taças de cristal. Nós nunca participamos dos brindes.
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Foi roubado um sujeito ótimo. Isto nos sensibiliza e envergonha. Será que a humanidade, depois de tantos séculos e séculos de lorotas, ainda produz muitos tipos desse gênero?
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*Linhas Tortas é um compilado de textos curtos e provocativos de Graciliano Ramos, inicialmente veiculados em jornais. O excerto acima está em “Contos de vigário”, dessa mesma obra, e data de maio de 1937.
Imagem: http://graciliano.com.br/site/obra/linhas-tortas-1962/