Por Alceu Luís Castilho.
Não, ele não falou só de esquerda. Era um cineasta completo. Mas a obra do italiano Ettore Scola (1931- 2016) pode também ser analisada pelo que refletiu sobre os rumos da esquerda. Não necessariamente os grandes rumos do Partido Comunista Italiano, ou da esquerda mundial. Ele retratava uma espécie de microesquerda. Personagens comuns, do cotidiano, em seus dilemas éticos – ou neuroses. Apresentados com um misto de afeto e amargura. Com um fio de esperança a desafiar a sensação de impotência.
Em “O Terraço” (1980), os protagonistas vagam em uma festa em meio a problemas pessoais e à busca de algum sentido para a luta. Estamos na Itália pós-Aldo Moro, executado em 1978 pelas Brigadas Vermelhas. Não à toa há um personagem depressivo, um antigo apresentador da RAI. O personagem de Vittorio Gassman (Mario) é um deputado do PCI. Numa cena clássica ele discute com a personagem de Stefania Sandrelli (Giovanna). Ela diz que é mais de esquerda do que ele. Ele reage com ironia: “Que hora é a revolução?”
Cabe assinalar que a própria estética de Scola era refratária a abordagens dogmáticas. No próprio “Terraço” ele radicaliza o início reiterativo de “Nós que nos Amávamos Tanto” (filho da nouvelle vague, do cinema novo), ao propor a observação das mesmas cenas – ou dos mesmos diálogos – a partir de perspectivas diferentes, conforme a leitura de cada um dos cinco personagens principais. Resultado: quando se vê da perspectiva do outro, aquela certeza é matizada. E se valoriza o todo. Scola era verdadeiramente dialético.
A beleza não estava nos personagens mais caricaturais, como se poderia pensar no caso de um cineasta que surgiu como um dos principais roteiristas da comédia à italiana. Esses tinham sua graça: o burguês de “Nós que nos Amávamos Tanto”, o Capitão Matamoro de “A Viagem do Capitão Tornado”. Mas o melhor estava naqueles que viviam intensamente as contradições: Antonio, de “Amávamos Tanto”, Signognac, de “Tornado”. Nas sutilezas da dupla Sophia Loren e Marcelo Mastroianni em “Um dia Muito Especial” e em cada olhar aflito de Vittorio Gassman – o alter ego de “O Jantar”.
Note-se que nada disso anulava a denúncia implacável do nazifascismo. Ela está em “Um Dia Muito Especial”, em “Concorrência Desleal”, “O Baile”. A crítica social aparece – e de forma a se tornar uma expressão em todo o Ocidente – em “Feios, Sujos e Malvados”. Uma ousadia: retratar moradores pobres como pérfidos e grotescos. Mas Scola não tinha maiores ilusões em relação ao comportamento humano – e isso convivia muito bem com a manutenção da utopia. Era comunista, como boa parte dos maiores diretores italianos. Mas não era cego.
A patrulha ideológica existia. Pietro Germi, outro cineasta comunista, autor de clássicos como “O Ferroviário”, nunca teve sua cinematografia aceita pelos críticos de esquerda mais sisudos. Queriam discursos, ou narrativas encaixotadas em certo esquema, um cinema político linha dura, sem espaço para individualismos. E ele insistia – como faria depois Scola, como fazia Vittorio de Sica – em compor os temas políticos (como uma greve de ferroviários) em meio a melodramas. Para intelectuais mais rígidos, era pequeno burguês demais.
UM DIVISOR DE ÁGUAS
“Nós que nos Amávamos Tanto”, isoladamente, pode ser considerado em si uma grande reflexão sobre as incertezas da esquerda. O filme é de 1974, mas segue extremamente atual. Em 1985, o jornalista Fernando Gabeira – que depois se tornaria deputado parceiro dos conservadores na Câmara dos Deputados – escreveu um livro chamado “Nós que Amávamos Tanto a Revolução”. A revolução era, sim, um dos temas do filme – mas em meio a crítica de mídia, reflexões sobre amor e amizade, à tentativa de desconstrução de práticas conservadoras. Como o machismo.
Não à toa o filme gira em torno de Luciana (Stefania Sandrelli). Antonio, Gianni e Nicola lutaram na resistência contra o nazismo e são, supostamente, amigos inseparáveis. Mas o que os une é o desejo por Luciana. Os destinos dos três amigos comunistas se tornam bem distintos. Scola estava preocupado exatamente com isso: com as dissensões. De certa forma havia um diálogo com o Elio Petri de “A Classe Operária vai ao Paraíso”. Ou com o “Ferroviário” de Germi. Com Lulu e Andrea Marcocci, personagens frágeis.
Antonio (Nino Manfredi) era estourado – mas sem perder a ternura jamais. E foi ele que manteve a coerência, entre os três amigos comunistas do filme. Gianni (Gassman) vendeu-se. Revelou-se um advogado oportunista. O acadêmico Nicola (Satta Flores), diante do radicalismo teórico (“eu não acredito em amizade”), fracassou. Antonio apontava para uma esquerda possível, já lá em 1974. Com erros, mas capacidade de autocrítica, persistência. E que sabia desviar o olhar do inimigo (a cena da ponte, com Nicola) quando o confronto não era conveniente. Ele era a práxis.
O Brasil viveu décadas depois as desilusões que a Itália vivia nos anos 70. E até hoje sua esquerda não viu a ficha cair. Uma esquerda que não sabe ouvir, sem autocrítica, sem espaço para sutilezas. Dividida, como no “Terraço”, mas sem que os belicosos tenham a formação intelectual dos protagonistas desse filme. Sim, Antonio – o personagem chave de Scola – não tinha essa formação. Era intuitivo. Mas prestava atenção no que se falava e era generoso. Sem se tornar refém dos plutocratas, ou mesmo um deles – esse era o Gianni.
ANOS 2000
O último filme de Ettore Scola foi sobre o amigo Federico Fellini: “Que Estranho Chamar-se Frederico” (2013). O anárquico Fellini, influência nítida em um de seus mais belos filmes, “O Baile” (1983). Mas vale prestar atenção no penúltimo filme, “Gente de Roma” (2003), que ele chegou a anunciar como sua despedida. Não era a Roma de Fellini nos anos 70, estetizada. Era uma Roma já sob os efeitos da globalização, repleta de imigrantes. Scola seguia apostando na inserção, na inclusão. Ele que, em 1977, já fizera uma obra-prima (“Um Dia Muito Especial”) contra a homofobia. Um olho na transformação política e outro na transformação do ser humano.
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Fonte: Outras Palavras.