Por Vinícius Segalla.
Em um ano normal, o edifício das Organizações das Nações Unidas (ONU), em Nova York, receberia mais de 2.500 diplomatas no primeiro dia da Assembleia Geral, cuja 75º edição teve início na última terça-feira (22) com a presença de 200 funcionários de governos e instituições, mas com os líderes mundiais presentes apenas por meio de vídeos e teleconferências, em virtude da pandemia do novo coronavírus.
Já assim esvaziado na própria forma, o encontro de líderes mundiais em tempos de covid-19 tinha como desafios principais, enumerados pelo secretário-geral, o português António Guterres, em seu discurso de abertura: enfrentar “a maior tensão geopolítica em anos”, uma “existente crise climática mundial”, uma “crescente crise de desconfiança global”, o “lado nefasto do mundo digital” e, finalmente, ainda se sobrepondo a tudo, a crise sanitária da covid-19.
Mas o que se ouviu no discurso de líderes das nações que mais podem influir nos temas elegidos – como os Estados Unidos, na tensão geopolítica, e o Brasil, na questão climática e ambiental – não foi uma mensagem em direção ao que as Nações Unidas propuseram, e sim o discurso de enfrentamento entre países, uso de ofensas, negacionismo e até inverdades sobre dados ambientais, gerando um aumento da crise de desconfiança global.
O discurso ofensivo e as bravatas dos EUA contra a China
Por meio de vídeo gravado em púlpito presidencial na Casa Branca, o presidente dos EUA afirmou, entre outras frases de mesmo teor sobre o mesmo tema:
Precisamos responsabilizar a nação que soltou esta praga no mundo, a China
O governo chinês e a Organização Mundial de Saúde –que é virtualmente controlada pela China– falsamente declararam que não havia evidência de transmissão entre humanos”, disse. Depois, eles falsamente disseram que pessoas sem sintomas não disseminariam a doença… a Organização das Nações Unidas precisa responsabilizar a China pelas suas ações.
Como presidente, rejeitei as abordagens fracassadas do passado – e estou orgulhosamente colocando a América em primeiro lugar, assim como vocês deveriam colocar seus países em primeiro lugar
Temos o exército mais poderoso em qualquer lugar do mundo”
Para o professor Giorgio Romano, do Observatório da Política Externa e da Inserção Internacional do Brasil (OPEB) da Universidade Federal do ABC (UFABC), em que pese ser inegável a rivalidade existente entre Estados Unidos e China, a virulência do discurso de Trump contra o país asiático não reflete uma visão sólida e de longo prazo de política externa dos EUA, mas sim atende a interesses eleitorais do presidente norte-americano, que enfrentará as urnas em novembro deste ano.
“Responsabilizar a China pelo coronavírus é algo muito presente na agenda eleitoral de Donald Trump. Se ele vencer as eleições, fará uma reavaliação de sua relação com a China. Querendo ou não, a China continua sendo um grande parceiro econômico e comercial dos norte-americanos. Os Estados Unidos precisam encontrar uma forma de conviver com a China no mundo. Essa agressividade tem uma função eleitoral, sobretudo”, explica o acadêmico.
O Brasil, por sua vez, se alinha ao discurso circunstancial de Donald Trump. Tanto em declarações anteriores do presidente e de seus ministros e apoiadores, quanto no discurso de Jair Bolsonaro na Assembleia Geral da ONU na última terça, o Brasil demonstrou que apoia os EUA. O presidente chegou a citar seu apoio a um plano de paz para o Oriente Médio desenhado pelo governo Trump, em um tema que nem se esperava um posicionamento brasileiro naquele momento.
Em relação à China, Romano afirma que “o Brasil não pode se dar ao luxo” de dar suporte aos ataques norte-americanos sobre o coronavírus, “exatamente porque depende muito em questões econômicas e de exportação de suas relações com a China”.
O discurso negacionista e as mentiras de Bolsonaro
Como é tradição na Assembleia Geral, o chefe de Estado brasileiro é o primeiro a discursar. Isso garante uma audiência cativa para o discurso, inclusive porque o país é seguido pelos Estados Unidos na ordem dos pronunciamentos. Dessa vez, as palavras de Jair Bolsonaro, transmitidas em vídeo gravado em Brasília, foram primeiro de reclamação contra a imprensa brasileira, que teria politizado a cobertura da pandemia: “Sob o lema ‘fique em casa, e a economia a gente vê depois’, quase trouxeram o caos ao país”, acusou.
Esperando ser ouvido por parte de seu eleitorado, fez “um apelo à comunidade internacional: pela liberdade religiosa e pelo combate à “cristofobia”.
Depois, quando foi falar do que a comunidade internacional esperava ouvir, sobre os incêndios que consomem a Amazônia e o Pantanal, mentiu. Nas horas seguintes ao discurso, os principais meios de comunicação do país destacaram os pontos em que Bolsonaro faltou com a verdade.
Do valor do auxílio emergencial calculado em dólares (seria de quase US$ 1.000, (equivalentes a mais de R$ 5,2 mil ), à acusação de que povos indígenas e caboclos haviam sido responsáveis pelas queimadas no Pantanal e na Amazônia – que tampouco seriam tão grandes quanto se noticia -, foram, pelo menos, sete mentiras comprovadas em seu discurso.
James Onnig, professor de Relações Internacionais da Faculdade de Campinas (Facamp) e de cursos preparatórios para carreira diplomática no Itamaraty, assim resume o discurso de Bolsonaro: “Há alguns anos, era fácil entender que o discurso formulado pela nossa diplomacia era marcado por questões de Estado, assuntos globais abordados sob o ponto de vista brasileiro. Dessa vez, o que a gente assistiu, infelizmente, foi uma colcha de retalhos mal feita, repleta de inverdades”.
O discurso da China
Adotando uma postura de certa forma diferente da tradição diplomática chinesa, disse que “a Organização das Nações Unidas, a organização intergovernamental mais universal, representativa e autorizada, deve desempenhar um papel central na governança mundial”.
Defendeu o multilateralismo: “A China seguirá o caminho do multilateralismo, protegerá a Carta da Organização das Nações Unidas e os princípios relacionados e apoiará um papel mais amplo do organismo mundial na manutenção da paz mundial e no avanço do desenvolvimento comum.”
É certo que a China amplia ano a ano a presença de seus capitais e suas empresas em mercados em desenvolvimento no mundo todo, muitos deles tradicionalmente inseridos em áreas de influência da Europa e dos EUA. A defesa do multilateralismo em detrimento do clima de guerra fria no mundo é congruente com esses interesses econômicos.
Em relação a Donald Trump e aos Estados Unidos, o líder chinês sequer citou o nome do mandatário ou da nação. Mas pediu respeito e educação no trato entre Estados e líderes mundiais.
“A China não tem a intenção de travar uma guerra fria ou quente com nenhum país. Continuaremos a reduzir as diferenças e resolver disputas com outros [países] por meio do diálogo e da negociação. É natural que os países tenham pontos de discordância, mas que devem procurar o diálogo.”
Segundo o professor Romano, o posicionamento chinês tem um objetivo claro: “A China vem, há certo tempo, tentando ocupar um vácuo que os Estados Unidos deixaram no mundo ao se retirar do papel de liderança no multilateralismo, de líder do planeta”, diz o especialista. “Com isso, desejam se aproveitar desse vácuo para colocarem eles mesmos no papel da busca de soluções coletivas. Suas falas (de Ji Xinping) são nesse sentido, de parceria com a ONU, promotora do desenvolvimento multilateral. Evidentemente, (o discurso) faz parte de suas estratégia e da defesa de seus interesses.”
Na quarta-feira, o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro atribuiu em seu discurso a crise venezuelana à administração de Donald Trump e pediu o fim das sanções a seu país. Em seu pronunciamento, louvou sua gestão da pandemia e afirmou que a emigração em massa de venezuelanos se dá por razões econômicas.
Para o professor James Onnig, muito embora não se ignore problemas internos venezuelanos, “o bloqueio econômico imposto pelos EUA levou ao sucateamento da indústria petrolífera de uma nação que possui as maiores reservas do mundo, ao ponto de o país ter de importar combustível do Irã.”