Por Fausto Salvadori Filho.
Pelo crime de tentar pichar um prédio, um grupo de policias militares mata dois jovens desarmados.
Após uma bala de borracha disparada por um PM arrancar 80% da sua visão, um fotógrafo entra na Justiça e vê três desembargadores concluírem que a culpa pelo tiro foi toda sua.
Na reintegração de posse de um edifício, policiais disparam gás lacrimogêneo contra crianças e grávidas e destroem a cadeira de rodas de uma mulher.
Os sem-teto tratados como bandidos, o fotógrafo culpado pelo tiro que atingiu seu olho e os pichadores condenados a uma pena de morte informal são protagonistas de algumas das histórias relatadas no site da Ponte em seu primeiro ano de existência. A Ponte: um coletivo de jornalismo em direitos humanos, criado em 2014, que produz e divulga reportagens, documentários, relatórios, pesquisa e educação sobre violência de Estado, justiça, segurança pública, racismo e gênero.
As histórias que chegam até a Ponte geram perguntas. Os policiais acusados de executar os pichadores já teriam sido processados por crimes semelhantes? Da mesma forma os inocentes mutilados pelas balas de borracha. Será que a PM não tem uma norma disciplinando o uso destas armas? E as reintegrações de posse? Não haveria regras para dizer como os policiais devem agir ao despejar pessoas de seus lares?
São perguntas que dizem respeito à atuação de servidores públicos pagos e armados pelo Estado. Portanto, cabe ao poder público respondê-las. A luta por essas respostas é uma briga que os jornalistas encaram todos os dias, geralmente buscando ouvir os representantes do Estado em entrevistas cara a cara ou por meio do filtro das suas assessorias de imprensa. Há quatro anos, passaram a contar com uma outra ferramenta de obtenção de respostas, que também está ao alcance de qualquer cidadão: a Lei de Acesso à Informação (12.527/2011).
Entre agosto de 2014 e junho de 2015, os repórteres da Ponte utilizaram a LAI para fazer 15 perguntas a órgãos públicos ligados ao aparelho repressivo estatal em São Paulo: 11 para a Polícia Militar, 3 para a Secretaria da Administração Penitenciária, responsável pelo sistema prisional, e uma para a Fundação Casa.
Sabendo dessa experiência, a Artigo 19 convidou os jornalistas da Ponte a escreverem sobre ela. Afinal, as respostas que os jornalistas do coletivo conseguiram ao longo desses dez meses – e, principalmente, as que nos foram negadas – funcionam como um teste prático para entender a quantas anda o direito de acesso à informação na segurança pública do maior estado brasileiro.
A partir desse material, fazemos uma análise da transparência passiva dos órgãos públicos envolvidos, aplicando metodologia semelhante àquela utilizada pela Artigo 19 em outros trabalhos. É um método que classifica as informações pelo tipo de resposta – que pode ser acesso integral, acesso parcial, não possui a informação ou acesso negado – e também pela qualidade da resposta, que pode ser satisfatória, incompleta ou apresentar uma fundamentação inadequada.
Em seguida, analisamos o comportamento assumido pelo governo diante das perguntas e fazemos algumas observações sobre a classificação de informações sigilosas. Aproveitamos para abrir o debate sobre o tema pouco explorado do papel das assessorias de imprensa dos órgãos públicos. No final, apresentamos cinco sugestões para tornar as políticas de segurança pública no estado de São Paulo um pouco mais transparentes.
Apresentação dos dados
Para atender às exigências da LAI, o governo paulista criou o Sistema Integrado de Informações ao Cidadão (SIC). Do ponto de vista formal, é um serviço que funciona bem. O site www.sic.sp.gov.brapresenta formulários simples e qualquer um pode perguntar o que quiser sem precisar explicar seus motivos, como manda a lei. Em caso de respostas negativas, os procedimentos para recorrer a outras instâncias também são fáceis de executar.
Quanto ao conteúdo do que é respondido, é melhor dar uma olhada nesta tabela, que mostracomo o governo paulista recebeu as solicitações formuladas pela Ponte.
Ao primeiro olhar, chama atenção como é difícil conseguir informações efetivas dos órgãos de segurança pública. Das 15 perguntas enviadas, apenas 3 resultaram em respostas satisfatórias – um índice de 80% de respostas negativas ou mal respondidas. Para piorar, em uma delas a Polícia Militar saiu-se com uma informação falsa. Duas solicitações não receberam qualquer resposta dentro do prazo.
A respeito de uma pergunta envolvendo as apurações da morte do vendedor Thiago Vieira da Silva , morto por policiais com dez tiros em 9/12/2014, a Ponte perguntou informações sobre o inquérito conduzido pela Corregedoria da PM. Os policiais, via SIC, limitaram-se a responder que os esclarecimentos deveriam “ser buscados junto ao Inquérito Policial Militar”. A PM também considerou “incompreensível” uma pergunta a respeito do número de policiais afastados da corporação desde 2011.
“Dados pessoais”
Uma das alegações mais utilizadas pelos órgãos públicos para barrar o acesso às informações foi dizer que se tratavam de “informações pessoais”. Sob esse rótulo, a Polícia Militar enquadrou três solicitações em que a Ponte buscava conhecer os perfis de PMs acusados de envolvimento em crimes: numa chacina que matou sete pessoas, entre elas o rapper DJ Lah, no Jardim Rosana, zona sul de São Paulo, em 2013; na possível execução de dois pichadores , o marmorista Alex Dalla Vechia e o montador Ailton dos Santos, em um prédio da Mooca, região central de São Paulo, em 2014; e na morte do vendedor Thiago Vieira da Silva, no mesmo ano. As solicitações indagavam em qual unidade da Polícia Militar estavam lotados os policiais suspeitos e quais outros processos já haviam respondido.
Nos três casos, a PM negou-se a fornecer as informações e apresentou a mesma justificativa: “As Informações pessoais, conforme disposto no art. 31 da lei nº 12.527/2011 – Lei de acesso à informação e do § 1º do art. 35 do Decreto Estadual nº 58.052 de 16 de Maio de 2012, são de acesso restrito à pessoa que elas se referirem e a agentes públicos legalmente autorizado”.
Os textos legais mencionados, contudo, não garantem que as autoridades podem usar a alegação de “dados pessoais” para barrar as informações que quiserem. Embora as duas normas – a Lei de Acesso à Informação e o decreto estadual 58.052/2012, que regulamentou a LAI em São Paulo – afirmem que dados pessoais são de acesso restrito “a agentes públicos legalmente autorizados e à pessoa a que elas se referirem”, também deixam claro que a restrição não vale para informações que forem necessárias “à defesa de direitos humanos; ou à proteção do interesse público e geral preponderante” (Decreto 58.052/2012, artigo 35, § 3º, incisos 4 e 5, e LAI, artigo 31, incisos IV e V, § 3º). E não é a única exceção. Lei e decreto afirmam que “a restrição de acesso à informação relativa à vida privada, honra e imagem de pessoa não poderá ser invocada com o intuito de prejudicar processo de apuração de irregularidades em que o titular das informações estiver envolvido, bem como em ações voltadas para a recuperação de fatos históricos de maior relevância” (Decreto 58.052/2012, artigo 35, § 4o e LAI, artigo 31, § 4o).
Repare. “Defesa dos direitos humanos”, “proteção do interesse público”, “ações voltadas para a recuperação de fatos históricos de maior relevância”… Não é disso que se trata quando um repórter pergunta ao poder público a respeito da lotação e dos processos respondidos por policiais acusados de matar habitantes das periferias sem chance de defesa?
A Fundação Casa (antiga Febem) saiu-se com uma alegação semelhante, só que ainda mais criativa. Invocou a obrigação legal de restringir a identificação de adolescentes, prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente e no Sistema Nacional de Medidas Socioeducativas, para deixar de responder questionamentos que buscavam dados como idade, instrução, tipo de ato infracional cometido e local de nascimento dos menores internados.
Embora a solicitação da Ponte não pedisse nomes, a Fundação Casa imaginou que os jornalistas poderiam identificar os adolescentes a partir de uma sofisticada operação de cruzamento de dados. “Esta Fundação CASA-SP nega o acesso aos dados solicitados, na forma como solicita, por estar relacionada ao adolescente (à pessoa natural identificada) ou permitir sua identificação (identificável) por possibilitar a associação ao adolescente com as informações solicitadas de forma georreferenciada (ex: centro de atendimento do adolescente X local de nascimento X reincidente pode identificar adolescente infrator)” foi a não-resposta.
Diante de um pedido na mesma linha, a respeito do perfil dos detentos das unidades prisionais paulistas, a Secretaria da Administração Penitenciária (SAP) também se negou a responder e apresentou uma resposta pouco crível. A SAP informou que não tinha dados organizados sobre idade, grau de instrução, estado civil, cor da pele/etnia, tipo de crime cometido, filhos ou não e local de nascimento dos presos. “Considerando que o Estado de São Paulo possui a maior população carcerária do país, o que representa quase 40% do total de presos do Brasil, e tendo em vista que diariamente são recolhidos mais de 300 presos, torna-se impossível estabelecer dados estatísticos”, conclui o representante do governo.
A Artigo 19 passou por problemas semelhantes quando tentou descobrir como a Polícia Militar regulamenta a captação e utilização de filmagens feitas pelos seus agentes em manifestações pública. A solicitação foi feita em outubro de 2013, via SIC, e uma das primeiras respostas da corporação, assinada pelo tenente-coronel Roberto Oliveira Campos, continha muito mais intimidação do que informação. Embora a Artigo 19 tivesse se identificado no pedido, o coronel a chamou de “solicitante anônimo” e a acusou de “violar o contexto da legislação de transparência e de informação livre no Brasil”, além de fazer menção aos financiadores da Artigo 19. Quanto à pergunta, o coronel se limitou a dar uma resposta vaga, dizendo que o uso de filmagens pela corporação estava amparada “na Constituição que implementou a democracia em nosso querido Brasil”.
Na época, o tom de caserna usado na resposta surpreendeu os ativistas. “As respostas dos policiais têm um padrão diferente de outros órgãos, mesmo os que não têm um comportamento exemplar em relação à LAI. Tentam impor medo ao cidadão”, afirma Camila Marques, advogada daArtigo 19. Para ela, “a PM reproduz com relação à liberação de informações o mesmo caráter intimidatório que manifesta na relação com a sociedade”.
De tão pouco fundamentadas, as não-respostas parecem revelar a ânsia de proteger as informações públicas a qualquer custo. Para o tenente-coronel aposentado da PM Adilson Paes de Souza, mestre em Direitos Humanos e autor do livro O Guardião da Cidade – Reflexões sobre Casos de Violência Praticados por Policiais Militares (Escrituras, 2013), a corporação confunde propositalmente as informações sobre agentes públicos com dados pessoais para se negar a prestar contas de seus atos.
“Um policial age em nome da coletividade que representa. O que ele faz no exercício da profissão não é pessoal, é de interesse público”, afirma Paes. Para ele, as autoridades proíbem o acesso da população a dados públicos porque acreditam saber melhor do que os cidadãos o que é bom para eles. Seu diagnóstico é duro: “As autoridades não têm dimensão do que seja viver numa democracia e fazem do sigilo a regra, quando deveria ser a exceção”.
Documentos classificados
Argumento um pouco melhor tiveram os policiais que barraram o acesso dos repórteres a dois documentos: as normas que determinam como a PM deve agir em reintegrações de posse e no uso de balas de borracha. A resposta fardada afirmou que os dois documentos são classificados como “secretos”, com sigilo garantido por 15 anos.
Até aí, nada de errado. A classificação de informações em determinados graus de sigilo é prevista tanto na LAI como no decreto estadual que a regulamentou. Mas não é um salvo-conduto para as autoridades proibirem a informação que quiserem. Na classificação, “deverá ser observado o interesse público da informação e utilizado o critério menos restritivo possível” (LAI, artigo 23, § 5o).
No caso das duas normas em questão, os oficiais da PM justificaram assim a restrição aos documentos: “Traz ainda, no artigo 30 da referida norma, que são considerados imprescindíveis à segurança da Sociedade ou do Estado, e, passíveis de classificação de sigilo os documentos e informações cuja divulgação ou acesso irrestrito possam: III – pôr em risco a segurança de instituições ou de altas autoridades nacionais ou estrangeiras e seus familiares; (…) VII – pôr em risco a vida, a segurança ou a saúde da população; (…) VIII – comprometer atividades de inteligência, bem como de investigação ou fiscalização em andamento, relacionadas com a prevenção ou repressão de infrações.”
Como a divulgação dos documentos que dizem como a PM deve agir em reintegrações de posse e no uso de balas de borracha poderia colocar em risco instituições, a vida da população ou comprometer atividades de inteligência? A resposta das autoridades não esclarece.
Por outro lado, o sigilo em torno dessa documentação pode, sim, prejudicar a população. Acontece que, por meios não oficiais (já que os canais oficiais não funcionaram), a Ponte obteve acesso aos dois documentos secretos – o Procedimento Operacional Padrão (POP) 5.12, que disciplina o uso de balas de borracha, e a Diretriz nº PM3-002/02/2012, que dita os procedimentos para reintegrações de posse – e os divulgou em seu site. A comparação entre o conteúdo das normas sigilosas e a atuação dos policiais em casos reais acompanhados pela Ponterevelou que os agentes públicos não vêm respeitando os procedimentos criados pela própria corporação.
Se respeitassem os procedimentos, os PMs não teriam atacado mulheres e gestantes num prédio fechado com bombas de gás lacrimogêneo, como a Ponte observou no centro de São Paulo em 16/9/2014, nem teria destruído com balas de borracha os olhos de pelo menos cinco inocentes – entre eles, o fotógrafo Alex Silveira, que um acórdão do Tribunal de Justiça considerou o único culpado pelo tiro do policial que atingiu seu olho esquerdo.
Todas essas violações ficaram impunes. Nenhum policial foi punido ou denunciado, seja pela Corregedoria da PM, pela Polícia Civil ou pelo Ministério Público. A impunidade encontra um aliado no sigilo decretado pelo governo em torno dos dois documentos, já que a população não pode cobrar dos policiais o respeito a normas que ninguém sabe dizer quais são. Por isso, a classificação sigilosa do POP 5.12 e da Diretriz nº PM3-002/02/2012 pode ser considerada uma violação do parágrafo único do artigo 21 da LAI, que proíbe restringir o acesso a informações que“versem sobre condutas que impliquem violação dos direitos humanos praticada por agentes públicos ou a mando de autoridades públicas”.
Ouvido pela Ponte, o ativista Guilherme Boulos, coordenador nacional do Movimento dos Sem-Teto (MTST), que há 12 anos acompanha ações de reintegração de posse, chamou de “lamentável” o sigilo do governo estadual em torno desse tipo de informação. “O procedimento do aparato de segurança pública deveria seguir normas públicas e transparentes, com controle social, em que as normas seriam discutidas com a população, em vez de ficarem inacessíveis”, afirma.
Também faltam transparência e clareza ao processo de classificação dos documentos. A PM informou que as duas normas sigilosas faziam parte de uma “tabela de sigilo” da corporação, prevista na portaria PM6-003/30/13, de 10 de dezembro de 2012, assinada pelo comandante geral da PM. O texto da portaria não está disponível nos sites do governo e só pode ser encontrado por quem pesquisar o site do Diário Oficial do Estado. Mesmo assim, a portaria e seus anexos não trazem uma lista completa dos documentos classificados como sigilosos – o POP 5.12 e da Diretriz nº PM3-002/02/2012, por exemplo, não aparecem ali, pelo menos não com esse nome. Assim, não é possível saber nem ao menos o número de documentos que a PM paulista esconde dos olhos do público.
O texto da tabela de sigilo aponta para o que parece ser uma obsessão da corporação em restringir o acesso a informações. Até mesmo o regimento interno do Corpo Musical da PM é classificado como reservado, com sigilo de 5 anos. Que segredos se escondem neste documento? Impossível saber, já que a PM não esclarece o motivo da classificação.
Quem vigia as assessorias?
Analisamos, agora, as respostas diferentes que a Polícia Militar deu para uma mesma pergunta: a lotação de dez policiais suspeitos de envolvimento na chacina do Jardim Rosana. A Ponte fez essa pergunta pela primeira vez em 24/2/2015, e os policiais se negaram a responder, alegando “dados pessoais”. O repórter voltou a fazer a mesma pergunta três meses depois, em 25/5, e dessa vez obteve a resposta.
Com uma ressalva. A Ponte descobriu que pelo menos uma das informações era falsa. Em 1º/6/2015, a diretoria de pessoal da PM informou, via SIC, que o soldado Gilberto Eric Rodrigues estaria no Presídio Militar Romão Gomes (PMRG). Contudo, um inquérito a que a Ponte teve acesso informa que Eric havia fugido do presídio dois meses antes, em 1º/4.
Além de mentira, há mais um aspecto que chama a atenção nas respostas enviadas sobre a chacina do Jardim Rosana. O primeiro retorno, em que as autoridades se negaram a dar qualquer informação, veio com um aviso curioso: a de que a resposta só foi feita “após análise da Assessoria de Comunicação da SSP/SP”.
O aviso faz pensar em algumas perguntas. Se o repórter usou o serviço do SIC como cidadão comum, sem se identificar como jornalista, por que a sua solicitação foi enviada para a assessoria de comunicação da Secretaria da Segurança Pública? Não teria havido aí um tratamento diferenciado para uma pergunta formulada por um jornalista, o que viola o princípio da impessoalidade que se espera de qualquer serviço público? E, como a resposta foi negada, isso indicaria que o papel da assessoria foi justamente o de vetar o acesso do repórter à informação? Perguntas sem resposta, naturalmente.
É fato que as assessorias de imprensa da Segurança Pública e da PM deram um tratamento diferenciado para a Ponte ao longo de seu primeiro ano de existência. Neste período, os repórteres do coletivo colecionaram centenas de solicitações enviadas para as duas assessorias que ficaram sem qualquer resposta – uma amostra delas pode ser vista no Anexo 2.
A ausência de respostas aponta para o descumprimento das tarefas por parte de um grupo de profissionais pagos com dinheiro público e parece indicar uma atitude discriminatória em relação a um veículo de jornalismo que se mostrou independente e crítico. Uma questão que chama atenção para um tema pouco lembrado nos debates sobre transparência governamental: o papel das assessorias de imprensa a serviço do Estado, os interesses a que servem e como podem ser fiscalizadas.
A assessoria de imprensa da Segurança Pública é realizada por uma empresa privada terceirizada, a CDN Comunicação Corporativa, por meio de um contrato no valor de R$ 11.869.801,50, para o período de 30/04/2013 a 29/10/2015, firmado entre a empresa e a Subsecretaria de Comunicação da Casa Civil do governo estadual . O contrato deixa claro que o sigilo é a alma do negócio. “A CONTRATADA obriga-se a tratar, como segredos comerciais e confidenciais, dados e informações disponibilizados ou conhecidos em decorrência da prestação de serviços, considerando-os matéria sigilosa”, afirma o primeiro parágrafo da 14ª cláusula. Isso mesmo: embora a matéria-prima do seu trabalho sejam os dados públicos, a empresa terceirizada se vê obrigada a tratá-los como segredos comerciais. Não parece ser a lógica mais adequada a um serviço público.
Já a assessoria de imprensa da Polícia Militar é feita pelo Centro de Comunicação Social da Polícia Militar de São Paulo, formado por servidores de carreira da própria instituição. O que esses policiais pensam a respeito do papel da comunicação ficou estampado, num momento de rara franqueza, em um texto chamado “A PM e o Zepelim”, enviado para o UOL. A respeito dos críticos da corporação, o Centro de Comunicação Social da PM afirma:
Talvez seja oportuno então alertarmos a sociedade quanto ao Brasil que alguns sonham construir, numa versão romântica, e bastante suspeita.(…)
Em que mundo esses “especialistas” fundamentam suas teorias? Muito provavelmente a resposta esteja em outro século e em outro continente, nascida da cabeça de alguém que pregou a difusão de um modelo hegemônico, que se deve construir espalhando intelectuais em partidos, universidades, meios de comunicação. Em seguida, minando estruturas básicas e sólidas de formação moral, como família, escola e religião. Por fim, ruindo estruturas estatais, as instituições democráticas. Assim é o discurso desses chamados “intelectuais orgânicos”, como costumam se denominar, em consonância com as ideias revolucionárias do italiano Antonio Gramsci, que ecoaram pelo mundo a partir da década de 1930.
É assim que os policiais encarregados da comunicação da PM enxergam aqueles que fazem críticas à corporação. Não são vozes discordantes, mas membros de uma conspiração organizada para destruir a polícia, a democracia, a família e a religião. Nesse quadro, a comunicação não é vista como um serviço a ser prestado para a população, mas como uma ferramenta para atacar os que pensam de modo diferente.
A visão da comunicação pública como uma guerra, e não como um serviço, está disseminada no Brasil, conforme a análise do professor da Escola de Comunicações e Artes da USP Eugênio Bucci no livro O Estado de Narciso (Companhia das Letras, 2015). “No imaginário dos gabinetes de todas as instâncias do Poder Executivo – todas mesmo, é bom saber –, governar é travar o combate das palavras e das imagens. O inimigo de costume é a imprensa, naturalmente. Se os jornais realçam os defeitos do poder público, a comunicação oficial vem para dar cobertura às pretensas virtudes do mesmo poder”, afirma o autor. Que, mais adiante, aponta: “Onde o Estado se arvora a agir como parte no debate de ideias, promovendo algumas doutrinas (ou pessoas) e fustigando outras, o princípio da impessoalidade naufraga e a liberdade corre perigo”.
Tanto no Sistema Integrado de Informações ao Cidadão, encarregado de atender a todos os cidadãos, como no trabalho das assessorias que atendem aos jornalistas, os órgãos de segurança pública de São Paulo parecem atuar com a lógica típica da comunicação de uma empresa privada. Ocorrências positivas são destacadas e fatos negativos são ocultados, e veículos tidos como “aliados” são compensados com notícias exclusivas, enquanto outros têm informações sonegadas, tudo com o objetivo de melhorar a imagem dos políticos no poder. Para que a informação pública passe a ser vista menos como arma e mais como serviço, torna-se necessário adotar medidas que garantam mais transparência.
Recomendações
1. Reavaliação dos procedimentos dos órgãos de segurança na divulgação de dados
Um índice de 80% de respostas insatisfatórias, as respostas negativas com fundamentação inadequada e a ocorrência de respostas diferentes para perguntas iguais mostram que os órgãos de segurança pública paulistas, em especial a Polícia Militar, precisam redefinir de maneira ampla os seus procedimentos de acesso à informação pública.
2. Regulamentação do conceito de “dados pessoais”
A alegação de “dados pessoais” não pode ser usada para restringir o acesso a informações sobre a atuação de agentes públicos no desempenho de sua função. Um possível caminho para evitar esses desvios poderia ser uma regulamentação do decreto estadual 58.052/2012 – algo que, a rigor, nem seria necessário, já que tanto o decreto como a LAI definem com precisão que o sigilo das informações pessoais não vale quando entrar em conflito com a defesa dos direitos humanos ou a proteção do interesse público.
3. Classificação de documentos clara e transparente
Como uma ação de transparência ativa, a Secretaria da Segurança Pública deveria publicar em seu site a lista completa de todos as informações classificadas como sigilosos, informando a data, o grau de sigilo e os motivos da classificação (LAI, artigo 30, § 2o, inciso III). Feito isso, precisa abrir um canal de diálogo com a sociedade para evitar o abuso nas classificações, que atualmente estendem o sigilo até para informações que implicam violação dos direitos humanos.
4. Fiscalização do trabalho das assessorias de imprensa de órgãos públicos
Tanto quanto os sites de acesso às informações públicas (como o SIC), as assessorias de imprensa governamentais também são instrumentos de acesso a informações públicas. Como tal, o serviço dessas assessorias não deve ser feito para agradar apenas ao governante em exercício, mas deve se pautar pelo interesse público. Para garantir que isso aconteça, é necessário um mínimo de accountability. Como qualquer serviço público, as assessorias de imprensa governamentais precisam prestar contas de seus serviços à sociedade e responder por eventuais violações dos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.
5. Criação de órgão independente de fiscalização
O cumprimento da lei de acesso à informação pelos órgãos públicos estaduais, de todas as esferas de governo, deve ser fiscalizado por um orgão independente, que promova políticas de transparência, atue na garantia desse direito e que aplique as sanções necessárias quando do descumprimento da legislação. Enquanto este orgão não é estabelecido, o Ministério Público, como guardião da lei, deve acompanhar o andamento da implementação da LAI e trabalhar para corrigir falhas e violações.
Foto: Reprodução/Ponte
Fonte: Ponte