Uma estrada ilegal que atravessa a Terra Indígena (TI) Kanela, em Fernando Falcão (MA), está colocando em risco a vida do povo Memortumré Kanela. A comunidade solicitou a interdição da estrada inúmeras vezes ao poder público, sem resposta. A situação foi agravada durante a pandemia devido ao aumento de invasores e o risco de contaminação dos indígenas.
Na avaliação de Carloman Koganon Canela, cacique da aldeia Escalvado, a situação é grave e o conflito, iminente. “Estão passando muitos não-indígenas dentro do nosso território. Pessoas de moto, a pé, carros com vidro fechado. Nós não sabemos quem são e podem trazer o vírus pra nós. Até agora não temos nenhum doente, mas precisamos de ajuda para resolver isso”.
Segundo lideranças, o fluxo de veículos tem sido cada vez mais intenso. Na justiça, no entanto, o trânsito é lento. O problema se arrasta há anos: em 2018, a comunidade já havia desfeito pontes como forma de protesto pelo atropelamento e desaparecimento de indígenas
A estrada irregular que passa pela Terra Indígena conecta a MA 272 (Fernando Falcão) à MA 006 (Grajaú). Segundo lideranças, o fluxo de veículos tem sido cada vez mais intenso. Na justiça, no entanto, o trânsito é lento. O problema se arrasta há anos: em 2018, a comunidade já havia desfeito pontes como forma de protesto pelo atropelamento e desaparecimento de indígenas.
Em agosto deste ano, entretanto, os Kanela identificaram que os não indígenas estão reconstruindo as pontes e retomando a utilização da estrada. Para permitir a passagem dos veículos, um brejo foi aterrado por eles com cascalho, dentro da terra indígena, e serve de desvio enquanto as pontes ainda estão intransitáveis.
“Estamos muito preocupados, pois estão passando carros de novo, causando sérios problemas e preocupação para o nosso povo. Estão cavando e colocando piçarra dentro do brejo como forma de aterrar pra facilitar a passagem por dentro do território”, relataram as lideranças Memortumré Kanela ao MPF, no final de agosto, solicitando urgência na intervenção dos órgãos públicos responsáveis.
Negligência governamental
O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Regional Maranhão tem atuado para salvaguardar os direitos da comunidade. “Estamos continuamente em contato com o povo, recebendo as denúncias e encaminhando para o Ministério Público Federal”, pontua Lucimar Ferreira Carvalho, assessora jurídica do Regional, adicionando que o MPF ingressou com uma Ação Civil Pública (ACP) destinada aos governos do estado e do município, solicitando providências e pedindo a revogação da licença concedida para a construção da estrada sem consulta aos Kanela.
A Fundação Nacional do Índio (Funai) também foi acionada e deveria realizar uma vistoria da área – mas permanece de braços cruzados. De acordo com a ACP, à Polícia Federal cabe adotar as medidas necessárias para evitar o trânsito dentro da TI, atuando na proteção dos indígenas. Lucimar adiciona, ainda, que o povo solicitou habilitação no processo da ACP, mas o pedido ainda não foi apreciado pelo juiz.
Diante do descaso, os próprios indígenas têm se organizado para fechar a estrada, com barricadas. “Os brancos voltam e abrem de novo. Isso está ficando muito sério: é uma urgência”, salienta Carloman.
Diante do descaso, os próprios indígenas têm se organizado para fechar a estrada, com barricadas. “Os brancos voltam e abrem de novo. Isso está ficando muito sério: é uma urgência”, salienta Carloman. “O risco é de confronto porque eles estão passando no nosso pátio, no coração da nossa aldeia”, situa o cacique.
Além do risco de conflito, a assessora jurídica do Cimi aponta que o licenciamento da estrada, feito pela Secretaria do Meio Ambiente (Sema) do estado do Maranhão, é irregular. “Por se tratar de terra indígena, que é de propriedade da União, a competência para a licença é do órgão federal, o Ibama, com necessidade de anuência e participação da Funai no processo. Além disso, também não houve estudos que considerassem o componente indígena no licenciamento”, aponta a assessora do Cimi Maranhão.
A falta de Consulta Prévia, Livre e Informada aos Memortumré Kanela, nos moldes que determina a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), é mais uma violação grave apontada pelos indígenas e pelo MPF.
Omissão e estagnação
O território Memortumré Kanela passa, atualmente, por um processo de revisão de limites. Após os estudos da Funai, foi identificada e delimitada uma nova área de 100,2 mil hectares, adjacente à TI já demarcada – e também cortada pela estrada ilegal. Oito anos após a publicação do relatório circunstanciado de identificação e delimitação, entretanto, a nova demarcação não apenas estagnou: ela regrediu.
“O processo administrativo do povo Memortumré Kanela foi um dos processos devolvidos pelo Ministério da Justiça para a Funai para que haja a sua ‘adequação’ ao Parecer 001/2017 da AGU”, destaca Lucimar. O Parecer atualmente se encontra suspenso por decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin.
A suspensão foi determinada no processo de repercussão geral sobre demarcação de terras indígenas, no qual os povos Memortumré Kanela e Apanjekrá Kanela atuam como amici curiae.
Enquanto a falta de vontade política dos sucessivos governos federais barram a regularização do território Kanela, a agricultura extensiva é que avança sobre o território.
“Temos atuado na defesa da demarcação do novo território e da proteção dos direitos. Há muita pressão dos latifundários de soja na região. A TI está ilhada, rodeada pelo agronegócio e, infelizmente, os direitos dos indígenas não estão sendo respeitados, como se vê nesta situação da estrada”, aponta o coordenador do Cimi Regional Maranhão, Gilderlan Rodrigues.
“O pátio é bem grande e fica na área central. É onde eles fazem festas, rituais, danças e reuniões a cada final de tarde. Ou seja, é um local muito importante, como se fosse um altar. Acontece que a estrada praticamente atravessa esse pátio. Então, a interferência é muito grande”
Invasão e ofensa
Lucimar explica que o pátio da aldeia é um espaço sagrado para os Memortumré Kanela. “A forma deles se organizarem socialmente e culturalmente é circular. O pátio é bem grande e fica na área central. É onde eles fazem festas, rituais, danças e reuniões a cada final de tarde. Ou seja, é um local muito importante, como se fosse um altar. Acontece que a estrada praticamente atravessa esse pátio. Então, a interferência é muito grande”.
Carloman reforça que a situação é insustentável. “Eu quero proteger meu povo. Esta história se arrasta há muito tempo, mas agora já não é só uma questão de estrada. É um problema de pandemia e todo mundo sabe que não dá para ficar deste jeito. A gente tem um histórico de massacres. Estamos preocupados”, salienta.