O movimento dos “coletes amarelos” na França deve chegar a seu “Ato V” no sábado (15), caso os manifestantes desrespeitem o apelo do governo e saiam às ruas para protestar. A mobilização, que começou contra o anúncio do aumento no preço dos combustíveis, evoluiu e alcançou diversas camadas da sociedade francesa, tornando-se uma criatura de vários tentáculos. A RFI conversou com manifestantes, que apoiam ou desaprovam a continuidade dos protestos, às vésperas de mais um fim de semana que promete ser tenso no país.
Os poucos capítulos da história dos “coletes amarelos” na França foram recheados de diversos eventos que tornam difícil fazer uma análise social e política precisa no momento. A mobilização foi apadrinhada pela extrema direita e pela esquerda radical, conseguiu levar às ruas de grandes cidades como Paris, Marselha e Bordeaux os mais distintos tipos de pessoas (dos conservadores aos “militantes queer” e antirracistas), e se encontra atualmente paralisada pelo recente atentado na cidade de Estrasburgo.
O presidente francês, Emmanuel Macron, tentou acalmar as coisas com um discurso televisivo, onde anunciou um aumento de € 100 no salário mínimo, mas não recuou na decisão de acabar com o Imposto de Solidariedade sobre a Fortuna. Em seguida, tendo em vista a tragédia em Estrasburgo, o ministro do Interior disse que não seria “razoável” protestar, o que levou à aparição de teorias da conspiração dizendo que o Estado está apenas fazendo um “uso político” do ataque terrorista para sair à francesa do conflito.
O contexto abre brechas para esse tipo de pensamento: se ainda existe algo que une todos os “coletes amarelos” espalhados pela França é o “antimacronismo”. “Tenho raiva do Macron mesmo quando ele ainda era candidato. Todas essas decisões políticas começam a me afetar pessoalmente, como a questão do aumento do preço da matrícula para estudantes estrangeiros”, afirma Ismael*, marroquino que mora na França há 7 anos e participou do “Ato IV”. Ele afirmou sentir ainda mais desejo de protestar agora que o governo “proibiu” as manifestações.
“O apelo do governo me deu ainda mais vontade de protestar, mas, paradoxalmente, como estou em processo de renovar meu visto, tenho medo. Todo mundo me diz para não ir”, conta. “Vai ser mais difícil passar desapercebido e não ser ‘controlado’ pela polícia, que vai estar ainda mais violenta. Se eu for às ruas amanhã, sentirei medo, mas não por causa do atentado, que está sendo usado como ‘marketing’ pelo governo. Eles sabem que, na França, um ataque terrorista assusta todo mundo.”
O brasileiro Tiago* vive o mesmo que Ismael: ele é estudante e teme por sua situação após o anúncio de que a matrícula para estrangeiros de fora da União Europeia aumentaria de cerca de € 200 para mais de € 2000. “É muito importante estar lá, mesmo não sendo francês, porque moro aqui e as coisas que acontecem têm um efeito na minha vida, positiva ou negativamente, independentemente de ter a cidadania francesa”, afirma.
“É claro que amanhã vou protestar e acho que todo mundo também deveria. O que une todas essas pessoas é o ódio contra a violência que a polícia usa contra elas a partir do momento em que elas erguem a sua voz em público. A galera estava muito nervosa com a polícia. [O apelo do governo] não vai mudar muita coisa e as pessoas vão sair às ruas”, conclui Tiago.
Façam o que eu digo, mas não o que eu faço
Ainda que o movimento não tenha uma “liderança” fixa, várias pessoas se autodeclaram “porta-vozes” dos “coletes amarelos” ao dar entrevistas às mídias francesas, como Laetitia Dewalle, que quer, a todo preço, manter os protestos. “Convido os franceses a continuarem a mobilização em todas as regiões, mas também em Paris, para mostrar que ainda estamos presentes”, disse à RFI. “Estamos de luto pelo ato terrorista, mas nossa mobilização é solidária e, em solidariedade a Estrasburgo, continuaremos nossa ação, de forma pacífica.”
Carle Tocard, que também se reconhece como “porta-voz” do movimento, discorda de Laetitia. Para ele, a mobilização na capital foi “manipulada pelos baderneiros” e não tem mais sentido. “Estou tentando dissuadir todas as pessoas que conheço e que podem ir”, afirmou. Mas suas palavras parecem ecoar pouco aos ouvidos do manifestante Christophe, que acusa Macron de propor medidas insuficientes. “As pessoas estão ainda mais motivadas após seu discurso. Eu, que ganho mais do que o salário mínimo, não tenho direito ao aumento de € 100”, ressalta.
“O atentado dá medo, somos uma multidão quando protestamos”, reflete Cécile, outra “colete amarelo”, que aponta o fato de que os manifestantes serão um alvo fácil em caso de novo ataque. “Mas hoje é preciso continuar a avançar, não podemos parar porque houve uma tragédia.”
O deputado do partido França Insubmissa, de esquerda, Alexis Corbière, disse que o país passa por um momento difícil, mas que o protesto ainda é pertinente. “Quando eles [o governo] pedem que as manifestações parem, eles dão uma data para que elas voltem? Não. O que eles querem é que elas acabem de vez. Não sou um porta-voz dos coletes amarelos, são eles que devem decidir, mas também não digo que essa grande manifestação popular tem que parar. Não é digno.”
Há também quem, confortavelmente em cima do muro, prefere não sair às ruas no sábado, mas concorda com o movimento, como é o caso de Christophe: “Tenho 70 anos, não quero apanhar, então não vou participar no sábado, mas continuo apoiando a manifestação. Não desistiremos enquanto Macron não mudar de ideia. É mais fácil colocar imposto nos pobres do que nos ricos.”
Coletes amarelos versus lenços vermelhos
Existe, entretanto, quem não concorda de forma alguma com o rumo que as manifestações tomaram. Em resposta à intensa violência vista nos últimos protestos dos “coletes amarelos”, surgiram os “lenços vermelhos”, que pedem, fazendo eco à mensagem governamental, que os manifestantes “sejam razoáveis e parem de protestar”.
Em uma entrevista à FranceInfo no começo de dezembro, o criador da página Facebook dos “lenços vermelhos”, John Christophe Werner, que deu início à oposição aos “coletes amarelos”, diz que não é contra o ato de manifestar, mas “somente respeitando aqueles que estão fora do movimento”. “E esse não é o caso. Os cidadãos ficam penalizados pelos bloqueios. No grupo [virtual], tem muitos comerciantes, e eles não suportam mais perder dinheiro”, disse.
“Somos vários lenços vermelhos contra essa violência. Não julgamos a motivação por trás, mas não concordamos com as práticas. Nada justifica a violência, somos dotados de uma voz. O governo avançou em relação às reivindicações e está na hora dos ‘coletes amarelos’ sentarem numa mesa para discutir”, explica Sylvie Jeanne. “Atualmente, chamar para uma manifestação equivale a convidar os baderneiros, que só querem destruir. Estamos num Estado de direito, democrático, e é insuportável para mim, que sou parisiense, assistir a esse quebra-quebra”, critica Valérie Aubert.
*Os nomes foram alterados a pedido dos entrevistados.
Foto: Charly Triballeau
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