O economista Ladislau Dowbor, que está lançando o livro A Era do Capital Improdutivo, fala sobre como os mecanismos financeiros capturaram o poder político em todo o mundo, inclusive no Brasil.
“Não há nenhuma razão objetiva para os dramas sociais que vive o mundo. Se arredondarmos o PIB mundial para US$ 80 trilhões, chegamos a um produto per capita médio de US$ 11 mil. Isto representa US$ 3.600 por mês por família de quatro pessoas, cerca de R$ 11 mil reais por mês. É o caso também no Brasil, que está exatamente na média mundial em termos de renda. Não há razão objetiva para a gigantesca miséria em que vivem bilhões de pessoas, a não ser justamente o fato de que ‘nenhum quadro de referência emergiu para guiar as políticas e as práticas’: o sistema está desgovernado, ou melhor, mal governado e não há perspectivas no horizonte.”
O trecho acima é uma das passagens do livro A Era do Capital Improdutivo(Outras Palavras & Autonomia Literária), do economista Ladislau Dowbor, professor titular de pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Na obra, ele mostra que o ponto fundamental que define o cenário econômico e social da maior parte do mundo não é propriamente a falta de recursos financeiros, mas sim sua apropriação por corporações que utilizam esses recursos para especular em vez de investir de forma produtiva. Uma esterilização que aprofunda as desigualdades e desenha um horizonte sombrio para o futuro do planeta.
Dowbor analisa uma estrutura em rede nada trivial, na qual as corporações transnacionais dominam a (não) competição de mercado e põem o tempo todo em risco a estabilidade econômica, à mercê de seus interesses. Isso apoiado não em teorias da conspiração, mas em dados e pesquisas de instituições que mostram uma gigantesca estrutura na qual grande parte do controle flui para um núcleo diminuto e fortemente articulado de instituições financeiras, uma verdadeira “superentidade”.
“Ao vermos como nos principais setores as atividades se concentraram no topo da pirâmide, com poucas empresas extremamente poderosas, começamos a entender que se trata sim de poder no sentido amplo. Agindo no espaço planetário, na ausência de governo/governança mundial, frente à fragilidade do sistema político multilateral, as corporações manejam grande poder sem nenhum contrapeso significativo”, diz Dowbor no livro. “Com efeito, menos de 1% das empresas consegue controlar 40% de toda a rede.” Trata-se de instituições financeiras como Barclays Bank, JPMorgan Chase&Co e Goldman Sachs.
É esse exercício constante da captura do poder – seja ele político, jurídico ou midiático – que faz com que as grandes corporações continuem lucrando às custas de aplicações que não servem ao conjunto da sociedade. E que desestabiliza economias e governos como, segundo Dowbor, aconteceu com o Brasil.
Em seu livro, o senhor fala do poder extremamente concentrado dos grandes grupos corporativos, com uma gigantesca concentração da riqueza no planeta e que opera por meio de mecanismos financeiros, o que resultou também na captura do poder político por esse reduzido grupo. Como chegamos a esse sistema de apropriação por uma minoria tão reduzida sem as pessoas se darem conta disso?
As pessoas não entendem mecanismos financeiros. Quando você compara em uma loja um produto com outro, quando te oferecem uma prestação de R$ 69,99 e outra de R$ 79 ao mês, em geral não se vê muita diferença. O cálculo atuarial não faz parte da nossa cultura e, no sistema de educação brasileiro, nunca se teve uma aula sobre a moeda, que é o principal estruturador da sociedade. Então, há um desconhecimento profundo dos mecanismos financeiros.
Fazer aplicações financeiras – comprar papéis, não se produzindo nada – rende em média, no mundo, 7% ao ano. Sem esforço nenhum, apenas pagando uma pequena comissão a uma entidade de intermediação, corretores financeiros, coisas do gênero. O progresso da produção não é de 7% ao ano, só a China tem esse índice, mas, no mundo, esse ritmo gira em torno de 2% a 2,5% ao ano. Ou seja, produzir rende muito menos do que as aplicações financeiras.
Quem faz aplicações financeiras são os ricos. As pessoas sequer sabem o que é ganhar 7% ao ano sobre capital parado. Se você tem um bilhão de dólares e aplica a uma modesta taxa de rendimento de 5% ao ano, ganha US$ 137 mil ao dia. Quando o bilionário ganha US$ 137 mil por dia, isso entra na conta dele diariamente, e esse dinheiro se incorpora aos 5% que estão rendendo. Vira uma bola de neve e você passa ter uma massa de capitais improdutivos, imensa, que é drenada dos processos produtivos pela razão de que esse tipo de dinheiro vai atrás de onde pode render mais. Não só rende mais na aplicação financeira, como rende mais sem precisar de esforço, obviamente isso acaba descapitalizando o setor produtivo.
Ao mesmo tempo, tem-se o aumento da desigualdade, porque o 1% ou um décimo de 1% enriquece de maneira fenomenal, mas esse dinheiro não se reverte em investimento em bens e serviços. Tem-se ao mesmo tempo o aumento de desigualdade e uma relativa estagnação econômica.
Nesse sentido, é um capital improdutivo que está no título do livro.
É um capitalismo, pelo menos para as grandes corporações que dominam esses mecanismos financeiros, sem risco.
Eles podem ter risco, mas o capital tem risco quando a pessoa investe, faz um projeto de construção de casas, por exemplo, investe efetivamente em produção. Quando tratamos dos capitais improdutivos, não falamos em investimentos, mas sim de aplicações financeiras.
O risco que existe, e forte, é sistêmico, como aconteceu em 1929 e em 2008, e, provavelmente, vai se repetir adiante. Porque, de tanto extrair capital do setor produtivo e atraí-lo para processos especulativos, pode haver um colapso dos papéis por insuficiência de base correspondente produtiva.
A crise de 2008, por ter sido causada pela especulação financeira, não foi uma oportunidade de se refletir sobre o capitalismo financeiro? Perdemos essa oportunidade?
Está surgindo nos últimos meses de 2017 um conjunto de estudos a respeito de como se perdeu a oportunidade. A crise poderia ter gerado uma volta a uma certa regulação ao ordenamento do sistema financeiro. O que aconteceu é que, de um lado, essa bolha financeira gerada pelos grandes bancos teve seu buraco compensado com dinheiro público – cerca de US$ 4 trilhões nos Estados Unidos e outros tantos na Europa – que normalmente seria destinado a investimentos em infraestrutura, políticas sociais, saúde, educação e outras do gênero, mas foi desviado para bancos. Esse cenário possibilitou a criação da política de austeridade, que promove um empobrecimento da população em proveito dos bancos.
Nesse movimento se geraram tensões políticas, mas apenas embriões de uma possível volta a uma política de regulação. Nos Estados Unidos, se negociou a lei Dodd-Frank, que substitui a lei que assegurou a estabilidade financeira durante 30 anos no pós-guerra, a Glass Steagall. Logo no início da crise em 2008, se avançou com essa regulamentação, e assim que os bancos voltaram a ter os bolsos cheios e a situação se tranquilizou, com as populações aceitando a tal da austeridade, começaram a liquidar a lei Dodd-Frank e se voltou ao sistema de caos financeiro de hoje. Saiu essa semana um estudo sobre fraudes financeiras dos grandes bancos, como as praticadas pelo Bank of America. As multas que eles têm que pagar por fraudes e atos do gênero chegam a US$ 340 bilhões. Esse é o nível da fraude. Estão se sentindo à vontade de novo, eles mesmos dizem: “happy days are back”.
A Europa tentou um movimento de regulação, mas não avançou, só um pouco na Inglaterra. Quanto ao Brasil, o país já tinha liquidado a regulação financeira que estava no artigo 192 da Constituição Federal de 1988 e limitava os juros e os processos especulativos. Esse artigo foi liquidado por meio de uma PEC em 1999 e uma emenda constitucional em 2003. Não se aproveitou a oportunidade de pôr ordem no sistema.
Esse dado sobre as fraudes e as multas mostram que o crime compensa, já que os ganhos continuam superiores às multas…
Não só compensa como gera um poder suficientemente grande para que esses processos se tornem legais. Por exemplo, de toda essa gente que criou esse caos a partir de 2008, ninguém foi preso. Eles são fortes o bastante para criar um sistema jurídico paralelo, com acordos pelos quais as empresas pagam uma multa para a qual já fizeram provisão. Sabem que estão fazendo errado, pagam, mas não obrigados a reconhecer culpa. Ninguém é preso. Pagam a multa e continuam no mesmo processo. No nível mundial, temos o Bank of America, o Deutsche Bank, o Barclays, Morgan, todos os grandes bancos estão nesse processo. Eles têm força para dobrar a legalidade.
O segundo eixo disso é que nós temos cerca de 60 paraísos fiscais no planeta, e esses mesmos bancos têm um mecanismo de transferência internacional, já que hoje não se carrega mais notas, só sinais magnéticos. Então, quando você pega mais de 200 mil empresas no Panamá… Como é que cabe? Você tem ilhas com mais empresas do que habitantes.
Grande parte desses recursos migra para os paraísos fiscais, hoje, em ordem de grandeza, são em torno de US$ 21 a US$ 31 trilhões, dados de 2012, quando o PIB mundial era de US$ 73 trilhões. O resultado é que esses capitais que resultam das poupanças não são reinvestidos para desenvolver o país, tampouco pagam impostos porque vão para paraísos fiscais. E o dinheiro nem fica nos paraísos fiscais, continua nas mãos do Bank of America, do Barclays, etc., e segue rendendo para os diversos bancos. É um sistema disfuncional.
Nesse caso, de acordo com sua análise expressa no livro, é preciso estabelecer uma governança global, já que cada país tem sua política e é necessário controlar esse fluxo que hoje está sob domínio das corporações.
Atualmente, os mecanismos financeiros são variados, desde os chamados derivativos, que também são chamados de transfer pricing, até o high frequency trading… Há um glossário de termos dos diversos mecanismos utilizados.
Gosto de citar o exemplo da Shell na Nigéria porque é muito simples e faz as pessoas entenderem. O petróleo extraído lá pertence ao país e o acordo que a Shell tem é pagar um imposto sobre seus lucros. A companhia vende o petróleo extraído para uma empresa laranja nas Ilhas Virgens Britânicas, a um preço muito barato, e o lucro é muito pequeno com a transação. Em vista disso, não paga muito imposto na Nigéria. Essa empresa laranja revende a preço cheio no mercado internacional, tem um lucro fenomenal, e está numa ilha em que não se pagam impostos.
O fato de se desviarem os recursos financeiros da produção é um desastre econômico. Permitir que uma imensa parte da população, apesar das novas tecnologias e do grande esforço de trabalho, continue pobre, enquanto uma parcela mínima tem esse enriquecimento, é um problema de justiça social, um problema ético. Mas quando as pessoas estão vendo que não há retorno para elas, começa a gerar um caos político, não temos mais no mundo pobres que apenas dizem “sim, senhor” e tudo bem. Por mais que se construam muros entre os EUA e o México, entre palestinos e israelenses, ou se coloquem mais bases militares no Mediterrâneo, o equilíbrio político entre as regiões pobres do mundo e as ricas, e mesmo dentro desses países, não vai ser restabelecido.
Os dois terços dos norte-americanos que nos últimos 40 anos têm somente umas dezenas de dólares a mais na sua renda não acreditam mais no sistema político, por isso votam no Trump, como votariam em outro. Na França, nem os socialistas nem os republicanos, que dividiam o poder desde sempre, chegaram ao segundo turno. Os ingleses votarem de maneira idiota e irrefletida a favor do Brexit, a Polônia voltar a um regime fundamentalista e religioso, o caos em todo Oriente Médio… É só olhar o mundo. Sem falar do Brasil, Venezuela, Argentina…
Se você rompe a lógica do ciclo econômico, rompe o sentimento de justiça social, de ser remunerado quem merece. É uma ruptura sistêmica. O dinheiro navega no planeta enquanto os governos estão se fragmentando em 200 pontos de decisão diferentes, não há sistema que funcione dessa maneira.
Mas esse caos que fragiliza a democracia também não dá chances para que o poder das corporações possa aumentar ainda mais?
Não tenho dúvida. E elas estão se organizando. Veja como financiam as eleições, universidades, think tanks, estão comprando até as revistas acadêmicas. Estão construindo a sua legitimidade, pois estão articuladas a nível mundial, e os governos não. Inclusive o sistema multinacional, representado pelas Nações Unidas, está sendo capturado rapidamente pelas próprias corporações financeiras.
O senhor falou dessa estratégia de captura e existe um dado no livro sobre a força dos lobbies, citando o exemplo da Google, contando hoje com oito empresas de lobby contratadas apenas na Europa, além de financiamento direto de parlamentares e de membros da Comissão da União Europeia.
As somas são gigantescas. A Google se dá ao luxo de contratar senadores norte-americanos para viajar a Bruxelas e pressionar homens públicos europeus. Há uma estruturação de poder global que, por sua vez, é dominado essencialmente por mecanismos financeiros.
No EUA, o lobby é legalizado. Aqui, não é e acabou o financiamento empresarial – embora seja provável que continue existindo o caixa 2 e outras formas de burlar essa proibição. Nesse processo com impeditivos do ponto de vista formal, a importância da mídia tradicional aumenta ainda mais nesse jogo da captura da política por esse poder financeiro-econômico?
Aqui a captura do poder se deu de maneira extremamente ampla. Temos a presença das multinacionais, não sei se você reparou, mas todas as multinacionais instaladas no Brasil financiam políticos da mesma maneira que a Odebrecht e outras empresas nacionais, mas não há uma só multinacional estrangeira mencionada nesse processo.
Os norte-americanos estão intervindo pesadamente porque têm interesse em desestabilizar o processo que estava em curso na América Latina, mas, além da apropriação da mídia, há uma tradicional penetração dos poderes econômicos no Judiciário. Curiosamente, o conjunto das medidas tomadas agora, que são uma regressão para o Brasil, é ditado por um presidente com 5% de apoio e um Congresso eleito por um sistema ilegal, financiado por corporações.
Visto por outro ângulo, com o presidente Lula e em determinado momento com a presidenta Dilma, um grupo tem a presidência e diz-se que está no poder, mas ele tem que entregar uma série de ministérios porque não tem maioria no parlamento. Tem apenas parte do Executivo, não tem o Judiciário, o parlamento, nem a mídia.
Quem criou essa crise é quem está no poder. Essas outras forças tiveram a capacidade de estrangular o que o Banco Mundial chamou de “Década de Ouro”, quando o Brasil teve resultados fantásticos.
No livro o senhor fala dos quatro motores da economia brasileira: as exportações, a demanda das famílias, as iniciativas empresariais e as políticas públicas. Como o poder financeiro afetou esses motores e acabou travando a economia?
É importante entender que a gente sabe fazer funcionar a economia. Na Europa do pós-guerra houve a elevação dos salários, fortes investimentos em políticas sociais e infraestrutura, forte presença reguladora do Estado. A grande demanda por parte da população gerava mercado para a produção crescente. E era uma política financiada em grande parte pelo Estado, mas como existia um aumento da demanda, havia como consequência um aumento de produção e os impostos indiretos tanto sobre o consumo quanto sobre as empresas, e os diretos sobre a renda, passaram a alimentar o caixa estatal para que se continuasse a financiar a dinamização da economia. Esse é o caminho. Isso funcionou na crise de 1929 nos EUA, com o New Deal, funcionava na Europa, com o Welfare State, que depois se chamou de social democracia, e também na China, cuja economia tem a importância dos produtos importados, mas é essencialmente o mercado interno que domina. Funcionou na Coreia e, agora, em Portugal, que ao invés de austeridade, que na prática é tirar dinheiro dos pobres para dar aos ricos, dinamiza a base de consumo da população, o principal motor da economia.
Nós temos hoje um dado mostrando que temos 61 milhões de adultos inadimplentes no Brasil, ou seja, gente que não consegue nem pagar sua própria dívida, quem dirá consumir. Quando se travou o consumo, travou-se também a produção das empresas. Se vangloriam que abaixaram a inflação, mas na verdade quebraram a economia. Travou-se a produção e assim se gera desemprego, o que reduz mais ainda a capacidade de consumo. O país entrou num processo descendente.
Com as empresas produzindo menos e as pessoas consumindo menos, o governo arrecada menos com impostos. Então, o governo que chegou ao poder em nome de restabelecer o equilíbrio fiscal está aprofundando o contrário. Corta investimentos sociais e em infraestrutura, mas, como paralisou a economia, isso faz entrar menos dinheiro ainda. Reduziu os gastos, mas reduziu ainda mais as entradas. Isso é um crime contra a teoria econômica.
Uma das principais críticas no segundo mandato de Dilma se baseava no crescimento da relação entre dívida pública e PIB, quase um fetiche entre economistas com viés liberal. Essa relação caiu no governo Lula e, na crise econômica, voltou a subir. Mas entre o começo do primeiro e o início do segundo governo FHC, essa relação dobrou…
O estoque de dívida do Japão é de 250% do PIB. Isso não tira pedaço, o Japão está indo bem. Nos Estados Unidos, é mais de 100%. O problema não é esse estoque – que é dinheiro das pessoas que têm dinheiro e não da população em geral, dos bancos que têm o nosso dinheiro. Compram títulos da dívida pública, tudo bem, só que no Brasil, quando foi criado, em julho de 1996, o sistema de taxas elevadas de juros sobre a dívida pública, permitiu-se aos bancos se financiarem aplicando em títulos em vez de buscarem fomentar a economia. Naquela época o índice estava em um patamar de 25% para uma inflação já baixa. Enquanto nos EUA é 0,5%, na Europa é 0,75%, e no Japão é zero. Esse é o problema, quando o banco pega o meu dinheiro, minha poupança, paga uma merreca e aplica em títulos do governo.
O Lula pegou a Selic com 24,5%, baixou para 14%, e a Dilma baixou isso para 7,25%. Ao mesmo tempo, ofereceu às famílias enforcadas em juros, empresas e pessoas físicas, taxas mais baixas nos bancos oficiais, Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal, o que aliviou essa população mas tirou a principal forma de ganho de todas as elites e da classe média alta. A partir de meados de 2013, não se tem mais governo, mas uma guerra. Aí a lógica é política, não é econômica. Foi assim que pioraram todos os indicadores.
Naquele momento, o rentismo acabou com a conciliação política.
Perfeito. Acabou o que era representado pela Carta aos Brasileiros, de junho de 2002, em que o Lula disse que respeitaria os contratos. O “esquemão” que o presidente Fernando Henrique Cardoso montou era muito simples: você corta a inflação, faz o acordo com os bancos – que precisavam desse acordo porque, com a economia globalizada, não se consegue entrar com uma moeda que muda de tamanho todo dia – que perderam uma gigantesca fonte de renda à época, a inflação. Você perdia seu dinheiro todo dia, mas o banco sempre recuperava. O que eles perderam com inflação, Fernando Henrique entregou de volta em forma de taxa Selic. Eles podiam ganhar 25% pagos por meio de dinheiro público.
Criou-se um sistema de “desvio dos impostos”, que por lei deveriam servir para investimentos públicos e para políticas sociais, mas passaram a ser desviados para os bancos. Por isso Fernando Henrique foi aumentando a carga de impostos, que era a forma de captar mais dinheiro para transferir. E aumentou em particular os impostos indiretos, que hoje são 56% de toda a carga tributária, que prejudica os mais pobres.
Naquele momento foi gestado um modelo para preservar os ganhos das instituições financeiras.
Exatamente. Lula, em junho de 2002, fez a Carta aos Brasileiros dizendo que manteria os contratos, mas chegou um momento em que a população brasileira ficaria estrangulada. Como não havia mais o artigo 192 da Constituição, o governo não tinha poder de interferência sobre a taxa de juros de pessoas físicas e jurídicas, só sobre a Selic. Hoje, existe uma taxa do rotativo do cartão de 480%. Uma piada. Economista que me visita não acredita. Nós estamos frente a um sistema de agiotagem que paralisou o país.
O senhor fala dessa questão do endividamento dos Estados nacionais no livro, e de como as instituições conseguem acabar capturando esses governos por conta disso. Como se dá esse processo?
No livro, cito o Wolfgang Streeck que diz: “antes, o governo tinha que responder à cidadania; agora, ele responde aos intermediários financeiros”. Antes se calculava quantos votos tem, hoje se calculam quantos empréstimos.
É só contar a quantidade de governos eleitos pela esquerda, e com programas de esquerda, que acabam fazendo política de direita. Não é porque são bandidos, mas porque há uma grande pressão – e não é só uma pressão nacional, mas mundial, já que envolve grandes bancos como o Citibank, Santander, etc. Por isso Temer não está nem aí se só 5% da população o apoiam, quem o está apoiando são os três grupos que dão a nota de investimento para um país. O peso externo, a confiabilidade dos mercados pesa mais que o interesse nacional.
E os bancos recebem para dar essa nota.
Isso é denunciado pela The Economist.
O senhor falou dos governos de esquerda e da relação que se estabelece com o poder financeiro. Como a esquerda pode sair dessa armadilha? Existe um modelo a ser adotado hoje?
Não diria nem de esquerda, mas eu chamaria de capitalismo civilizado. E produtivo. Você pode pegar o livro do [Joseph] Stiglitz, Reescrevendo as Regras(Rewriting the Rules of the American Economy: An Agenda for Growth and Shared Prosperity), e a fórmula está aí. Vai encontrar isso em inúmeras propostas, como a do Bernie Sanders nos EUA e a do (Jeremy) Corbyn na Inglaterra.
O caminho é extremamente simples. No caso brasileiro, tem que se usar as reservas, o compulsório, os bancos públicos, o BNDES, para reforçar empréstimos a baixo custo para a população e para as empresas. Dinamizando a capacidade de as famílias consumirem, mesmo aumentando o buraco – o que não é necessário porque o Brasil tem US$ 400 bilhões em reservas e pode convertê-los –, reforçando o consumo das famílias isso se traduz em consumo imediato, que vai redinamizar as empresas, pois os estoques vão se reduzir e elas vão voltar a produzir. Se voltar a produzir, vão voltar a empregar, temos um efeito multiplicador. Com mais consumo das famílias e mais empregos, é mais dinheiro em forma de impostos e isso cobre o buraco inicial. É assim que funciona o crédito.
Não estamos em crise de capacidade produtiva, mas em uma crise de paralisia gerada pelo sistema financeiro. O caminho é claro, não tem mistério. O problema é conseguir o poder político correspondente para impor isso, porque você não vai poder montar uma coisa dessas com a população pagando 400% de juros. O banco, dentro desse tipo de proposta, tem que voltar a ser aquilo para o qual foi criado e estava no artigo 192 da Constituição: o sistema financeiro nacional deve servir para o desenvolvimento equilibrado do país. Coisa que qualquer banqueiro deveria saber fazer. Você põe uma agência bancária, identifica na sua cidade empresários locais e vê que ali tem uma fábrica de sapatos mas não tem curtume, porque não investiram. O banco, como financiador, vai estimular o processo produtivo e gerar lucro para o dono da empresa, que vai poder pagar o empréstimo. Ou seja, é o banco a serviço do desenvolvimento, e não o desenvolvimento a serviço do banco. Acaba com o que os norte-americanos chamam de “o rabo abanando o cachorro”.
Para concluir, o senhor citou, nesse aspecto de modelos, Sanders e Corbyn, mas nenhum brasileiro. A esquerda brasileira pensa pouco na economia?
Não. Na situação atual, se fizer a proposta como descrevi aqui, vão dizer: “você está brincando, sabe quem está no poder?”
A esquerda tem imensa dificuldade, apesar de ter várias propostas surgindo, como a da Fundação Perseu Abramo e outras de estratégia para o Brasil. Há tempos nós fizemos com Ignacy Sachs e Carlos Lopes uma proposta com uma visão de elementos básicos para uma economia funcionar. São 13 eixos, sendo todos já experimentados onde foram instalados.
O que trava é que não estamos mais numa democracia. Temos decisões trágicas para o país tomadas por um Congresso eleito de forma ilegal e com um presidente que tenta salvar a pele, além de uma mídia que bate palmas. Estamos vivendo uma curiosa estrutura formalmente legal, mas que, a meu ver, não é democrática.
O senhor enxerga saída a curto prazo?
Não a curto prazo. E a presença de um Trump nos Estados Unidos é muito ruim para nós, estimula visões racistas, conservadoras e destruidoras do meio ambiente, veja que se retomou a destruição da Amazônia… Estamos com grupos nacionais e internacionais que estão se lambuzando na entrega do petróleo do país. O pessoal diz que voltou o investimento externo… Claro, estão comprando a preço de banana, se apropriando do país.
Na realidade, para mim e para outros economistas preocupados com interesse nacional e não com rentabilidade financeira, é difícil fazer propostas quando não temos a força política necessária para as mudanças que temos que fazer. Uma impotência institucional.
Fonte: Portal Vermelho.