Três anos e 157 audiências públicas depois, com participação de aproximadamente 8 mil pessoas nesse período, a Comissão da Verdade “Rubens Paiva”, da Assembleia Legislativa de São Paulo, divulgou na última quinta-feira (12/03) o seu relatório final pedindo desmilitarização da polícia, reforma do Judiciário e punição de torturadores. A conclusão do colegiado é de que, passada a ditadura, “o Brasil continua a ser um Estado fora da lei no tocante aos direitos humanos”.
Dividido em 26 capítulos, o relatório traz 188 casos de mortos e desaparecidos políticos, 150 recomendações temáticas e 18 recomendações gerais. Inclui banco de dados com toda a documentação obtida pela comissão e os vídeos das audiências. Todo o conteúdo está disponível na internet.
Ali estão temas como a formação da cadeia de comando da ditadura (1964-1985), origens do Esquadrão da Morte, métodos de ocultação de corpos, perseguição a militares que resistiram ao regime autoritário, militarização da segurança pública, financiamento da repressão, relações internacionais, homossexualidade, saúde mental, atuação de advogados e repressão a trabalhadores e estudantes, entre outros. O relatório virtual tem um filtro alfabético ou por organização, e separa audiências públicas relacionadas a cada pessoa.
Toda a equipe responsável pelo trabalho, liderada pelo presidente da comissão, deputado Adriano Diogo (PT-SP), ressaltou a permanência, mesmo no período democrático, de uma face autoritária e violenta do Estado, materializada, por exemplo, na repressão a setores da sociedade. Fundadora do grupo Mães de Maio, Débora Maria da Silva enfatizou: “Se houvesse punição aos torturadores no passado, não teria havido chacina na democracia. As histórias do nosso país se repetem. O único diferencial é que todo mundo sabia quem era o inimigo (na ditadura), e agora ele é invisível. Os laudos do passado são as resistências seguidas de morte no presente”. Ela protestou também contra a impunidade nos casos de violência contra, principalmente, negros e pobres: “Quem nos mata mais é o Judiciário, com uma canetada. Desmilitarização da polícia tem de vir com uma dobradinha, que é a reforma do Judiciário”.
Arquivos
Assessora da comissão estadual e ex-presa política, Amelinha Teles afirmou que a busca por memória, verdade e justiça não pode ser vista pelo Estado brasileiro como uma questão formal. Ela enfatizou o papel dos familiares de mortos e desaparecidos, sem os quais “não haveria justiça de transição e muito menos comissão da verdade”. E lembrou que há ainda muitos arquivos a serem abertos, alguns desaparecidos, e resistência de autoridades em fornecer informações. O colegiado da Assembleia também defende continuidade das investigações sobre as mortes dos ex-presidentes João Goulart e Juscelino Kubitschek, ambas ocorridas em 1976.
A comissão paulista refutou conclusão da Comissão Nacional da Verdade (CNV), que terminou por aceitar a versão de acidente para a morte de JK. Coordenadora de um grupo de trabalho formado por pesquisadores da USP e do Mackenzie, a advogada Lea Vidigal Medeiros disse que já foram protocolados pedidos de revisão dessa conclusão da CNV. Ela reclamou de não ter sido atendida pela comissão nacional, que encerrou seus trabalhos em dezembro. “O assassinato do presidente Juscelino Kubitschek foi planejado, avisado a ele, noticiado e ocultado por uma perícia fraudulenta da ditadura militar. O Estado é culpado até que se comprove o contrário”, afirmou Lea. “Pretendemos levar isso até as cortes internacionais”, acrescentou.
O Fórum de Trabalhadores e Trabalhadores por Verdade, Justiça e Reparação também divulgou carta criticando a comissão nacional por “não acatar como recomendação formal” a responsabilização de empresas que colaboraram com a repressão durante a ditadura. “A CNV optou por responsabilizar os militares, omitindo para fins de reparação o papel dos empresários como organizadores do golpe”, diz o documento.
Investigação
Houve atritos entre as duas comissões durante o período de apurações. Antes da intervenção da advogada, o ex-coordenador da CNV Pedro Dallari participou da abertura do evento e, ao lado de Adriano Diogo, agradeceu publicamente a comissão estadual e seu presidente, destacando o “rigor metodológico” nas audiências públicas. E lembrou que parte das conclusões feitas pelo colegiado paulista foi absorvida pelo nacional, caso dos perfis de mortos e desaparecidos. “A investigação que nós realizamos não começaram conosco e não vão acabar conosco. Esses relatórios permitirão que pesquisadores, a imprensa, deem continuidade à investigação.”
Há espaços dedicados a vários episódios emblemáticos do período – que também foram temas de audiência –, como o incêndio (originado de vazamento em dutos da Petrobras) ocorrido em 1984 na favela de Vila Socó, em Cubatão, litoral paulista. A tragédia teve oficialmente 93 mortos, mas pesquisadores afirmam que o número foi de pelo menos 500, podendo chegar a 700. Segundo Dojival Vieira, da Comissão da Verdade da subseção da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em Cubatão, houve uma “operação abafa para encobrir um crime de lesa-humanidade cometido a céu aberto”. O ex-ministro de Minas e Energia e ex-presidente da Petrobras Shigeaki Ueki foi ouvido em uma das audiências.
Amelinha destacou dois momentos: o ato em referência aos 50 anos do golpe, em março do ano passado, no pátio do 36º Distrito Policial (no Paraíso, bairro da zona sul paulistana), no local onde funcionou o Doi-Codi, e o lançamento do livro Infância Roubada, com histórias de mães e filhos de presos e desaparecidos políticos. A comissão também publicou a íntegra da sentença de 2010 da Corte Interamericana de Direitos Humanos que condenou o Brasil pelo caso Araguaia e o chamado Bagulhão, como ficou conhecida carta escrita em 1975 por presos políticos denunciando torturas, mortes e desaparecimentos e apontando 233 torturadores.
Foi praticamente a última atividade de Adriano Diogo como parlamentar – ele se candidatou a uma vaga para a Câmara, mas não se elegeu. Foi homenageado pelo grupo Mães de Maio e por várias entidades. “Eu reencontrei minha história, meus companheiros”, afirmou o deputado. Ele destacou a importância de cada vez mais pessoas terem acesso aos fatos daquele período histórico brasileiro.
E manifestou preocupação com o atual momento, que ele considera “de enorme gravidade”, em referência, principalmente, ao protesto previsto para o próximo domingo (15). “A ditadura acabou, os torturadores não foram punidos e a ameaça de golpe no Brasil é uma realidade. Golpe é sempre um assassinato coletivo contra as esperanças de um povo”, afirmou.
A abertura da última sessão da comissão estadual foi aberta com uma homenagem ao seu patrono: o áudio de uma declaração do então deputado Rubens Paiva na madrugada de 1º de abril de 1964 pedindo apoio ao presidente João Goulart contra “uma pequena minoria que detém o poder econômico e os órgãos de comunicação”, segmentos contrários “à divisão da riqueza brasileira entre todos os seus habitantes”. Paiva foi preso em 1971 e tornou-se mais um desaparecido político.
Foto: Reprodução/Brasil de Fato
Fonte: Brasil de Fato