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Imagine ser acordado bruscamente em sua casa com o barulho de várias pessoas tentando forçar a entrada. Ou sofrer a angústia de ter dezenas de soldados cercando sua residência, enquanto você permanece por horas aguardando a invasão. Pense no que sentiria ao ver estranhos armados, gritando em outra língua ordens que você não entende. Como seria ver sua casa destruída mais uma vez e não ter a quem recorrer? Na noite do dia 26 de outubro de 2016, militares israelenses fecharam a entrada de Azzun, na região de Qalqiliya, norte da Cisjordânia, e algumas famílias palestinas sentiram tudo isso novamente.
Incursões militares são recorrentes em Azzun. Quando elas acontecem, os soldados fecham as cancelas que bloqueiam as estradas nas entradas da vila e ninguém pode entrar ou sair. Naquela madrugada de outubro, entre 1h e 6h, 15 casas foram invadidas e cinco homens detidos. A situação algumas horas depois era aterradora e as famílias tinham em comum o cansaço da noite sem sono e a indignação de presenciar outra operação do exército israelense.
Por volta das 11h, as mulheres da família Najad lavavam o quintal de sua casa, removendo do chão as marcas deixadas por soldados horas antes. Os soldados — “muitos deles”, segundo a mãe, S. — cercaram a casa por volta das 2h30. Gritavam em hebraico algo que ela não entendia, até que compreendeu que estavam pedindo que as facas fossem levadas para fora da casa. Então, ela levou até eles todas as facas da cozinha. “Mesmo assim continuaram pedindo as ‘facas grandes’. Eu disse a eles que não tinha nenhuma”.
Às 5h, entraram na casa, pedindo documentos e ordenando que a família toda, cinco adultos e três crianças, fosse para um quarto, menos o filho mais velho, T. A família conta que era possível ouvir os sons de soldados espancando T. Esta foi a terceira operação do exército na casa deles e a segunda vez em que o filho foi detido. Soldadas também revistaram duas mulheres da família. Após contatar a Cruz Vermelha e uma organização chamada “Prisoner’s Club”, a família de T. obteve a informação de que ele havia sido levado para a prisão al-Jalameh.
Perto dali, a família Adam mora em um quintal com três casas. Por volta da 1h15, segundo o pai, cerca de 70 soldados chegaram com dois jipes e ao menos dois caminhões. “Eles perguntaram sobre as armas. Mas eu disse a eles que não tínhamos armas”. Ele mostra todos os cômodos da casa e os buracos feitos nas paredes pelos soldados em busca de possíveis armamentos escondidos. Os soldados também ordenaram que todos os familiares fossem para um cômodo, com exceção do filho de 24 anos, M. “Eu gritei e tentei ajudar meu filho, mas eles me empurraram de volta para o quarto”, contou a mãe de M., chorando.
“Quando saímos, havia manchas de sangue no chão. Limpei tudo e não deixei que minha mãe visse”, disse a irmã de M., que é estudante de direito e foi revistada por soldadas no seu quarto. Seus pertences foram totalmente revirados e alguns de seus livros rasgados. A família afirmou que essa foi a quinta incursão do exército em sua casa e a quarta vez que o filho foi preso. O pai de M. disse que os soldados também levaram dinheiro e joias que acharam ao revistar a casa. Ao sair, um deles disse: “Saiam da nossa terra. Vocês não deveriam estar aqui, vocês deveriam estar na Jordânia.” Dois dias depois da operação, a reportagem da Ponte entrou em contato com a família e na época eles ainda não sabiam a localização de seu filho.
Em outra casa, segundo o relato dos moradores, os soldados não procuravam por ninguém em específico. Dez homens e duas mulheres invadiram a residência às 3h, dizendo a todos que se levantassem e perguntando se eles tinham filhos homens. Pediram os documentos de pai e filho, e levaram o resto da família para a cozinha, enquanto faziam buscas na casa. Segundo os moradores, os israelenses estavam particularmente interessados no quarto das meninas e as soldadas levaram as três filhas para o quarto, onde as revistaram.
Sentadas no sofá da sala, tímidas e cansadas, as duas meninas de 9 e 12 anos se apoiavam na irmã mais velha para contar aos estranhos o que havia ocorrido horas antes. Disseram que, mesmo com vergonha, foram obrigadas a tirar a calça e a camiseta para a revista — a irmã mais velha, de 18 anos, teve que se despir completamente. Os militares disseram que liberariam o filho mais velho após algumas horas; entretanto, no dia seguinte à operação do exército, ele ainda estava detido na prisão al-Jalameh.
Recentemente, a organização de direitos humanos israelense B’Tselem documentou episódios de incursões noturnas do exército israelense em vilas do distrito de Nablus. Em 2015, o porta-voz das Forças Armadas de Israel admitiu à instituição que o exército conduz operações de “mapeamento” e que essas atividades são realizadas de acordo com ordens do centro de comando regional. O comunicado enfatizou que “não são atos aleatórios realizados sem necessidade ou por razões irrelevantes. Eles são missões operacionais autorizadas pela cadeia de comando, servindo a um objetivo legítimo”.
O B’Tselem considerou que “obter informações de residentes palestinos invadindo sua privacidade, aterrorizando-os e interrompendo o cotidiano de pessoas que não são suspeitas não é forma legítima de ação, e não há necessidade operacional que possa justificá-la”. Em reportagem anterior da Ponte, um soldado israelense membro da organização Breaking the Silence afirmou que tais operações têm como objetivo deixar os palestinos intimidados. “Assim, você rompe o entendimento na cabeça deles de que estão em controle das suas vidas. Você é apenas um cara de 18 anos com um fuzil, mas se sente com poder. Você está na casa de um pai de família de 50 anos, mas ele faz o que você quer”, afirmou Ido Even-Paz.
Outro lado
A Ponte enviou questionamento à embaixada de Israel no Brasil sobre as operações de mapeamento, em específico a que foi mencionada nesta reportagem. Sem responder sobre as violações reconhecidamente cometidas, o vice-cônsul geral de Israel, Fares Saeb, disse é “especialmente difícil responder por uma reportagem baseada em apenas um lado da história ou em meias verdades”. Segundo Saeb, “o exército israelense continua fazendo o melhor para proteger as vidas dos cidadãos israelenses (judeus e árabes), com todos os meios necessários e de acordo com as leis internacionais”. E deu um recado à reportagem: “Acreditamos que a Ponte faria melhor em fornecer aos seus leitores uma versão completa do contexto da região”.
Fonte: Ponte Jornalismo.