“Esculacho” no litoral paulista

Por Jessica Mota.
No dia 14 de maio mais uma onda de manifestações do Levante Popular da Juventude se espalhou por 11 estados no Brasil, com o objetivo de expor acusados de crime de tortura na ditadura militar.

As paredes e cadeiras brancas do sindicato, na zona norte de São Paulo, ganham cores conforme os jovens vão se acomodando para a reunião. “Tá começando agora a nossa descida da serra”, anuncia Bolero, rapaz eloquente que segue falando sobre a segurança do grupo e sobre o que cada comissão faria no ato que está para acontecer. “Quem da imprensa tá sem carro?”, pergunta. Eu e mais três jornalistas vamos com Tati, estudante de doutorado em Ciência Política na Unicamp e professora. Fora do sindicato, a semana em São Paulo começava fria e cinza.

Uma hora antes, ainda sob o céu escuro, Edson Magalhães, o Junior, porta-voz do Levante Popular da Juventude, conversa comigo. Ele me explica que o Levante é a união de jovens urbanos ligados ao movimento social. Vindos de Franca, Piracicaba, São Carlos, Bauru e Campinas, estudantes de direito e ciências sociais e jovens do Levante e do MST. Ali ao lado, na cozinha, se prepara café preto e pão com manteiga.

Junior conta que o objetivo da ação é expor o torturador. “A gente não quer bater nele, não quer jogar nada nele”. Não é nada contra a figura física do ex-militar. Ele me entrega o panfleto que mais tarde seria distribuído na vizinhança da Rua Tereza Moura, no Guarujá. Nele, as fotos de Frei Tito e da presidenta Dilma Rousseff que acusam Maurício Lopes Lima, o dono do endereço, de os terem torturado.

No papel, o alvo é identificado como ex-chefe de equipes de investigação na Operação Bandeirantes, a Oban, e no Doi-Codi em São Paulo.

A inspiração para a iniciativa veio de ações parecidas feitas por jovens argentinos. “Vi um vídeo dos hijos argentinos cinco anos atrás e achei fantástico”, conta Junior, acrescentando que os protestos de militares contra a Comissão da Verdade também motivaram o grupo a responder, a se manifestar.

Daniel Fogo, 16 anos e cabelos enrolados, fala com um sorriso tímido que está ali porque um amigo o chamou. “Acho importante essa luta, é uma pauta atual”.

Saindo de São Paulo em um trio de carros, o trânsito é lento. Seguimos um gol verde com placa de Piracicaba. O clima no carro é ameno. Tati, vestida com calça marrom de veludo, casaco rosa e usando óculos de armação grossa, tentava antecipar a repercussão do evento. Mais tarde eu contaria 70 pessoas na concentração: 15 da imprensa, entre jornalistas e cinegrafistas. “Acho que vai dar boa repercussão”, opina nossa motorista.

A velocidade aumenta. Chegando à Avenida do Estado, rumo a Imigrantes, o trânsito flui melhor. “Que reação será que o Lima terá?” especulamos. Surge o primeiro braço de mar em meio à densa neblina.

Nas curvas da estrada de Santos

Lima não precisou ser “descoberto”. Figura pública, o ex-militar tem dado entrevistas na mídia sobre a época em que atuou na ditadura. Matéria publicada no Portal Vermelho em 2010 diz que Lima “é apontado pelo Ministério Público Federal (MPF), (…), como um dos responsáveis por seis mortes ou desaparecimentos forçados, e por tortura a outras 20 (pessoas) em 1969 e 1970, no auge da ditadura militar brasileira (1964-1985)”.

Em entrevista concedida ao jornal A Tribuna de Santos, Lima afirmou ter exercido apenas funções investigativas. “Criminoso só fala em juízo. Mas nós tínhamos uma pressa, porque os outros continuavam. Eram verdadeiras quadrilhas de terroristas”, disse na entrevista. Seu nome consta no livro Brasil Nunca Mais como torturador, e ele foi reconhecido como tal pela presidenta Dilma Rousseff, que foi interrogada por ele quando ela era militante do movimento VAR-Palmares.

Na estrada de Santos, o comboio de carros segue debaixo de chuva. No meu colo, as letras que em alguns minutos ganhariam vida nas vozes dos jovens empenhados em expor e abrir o debate sobre o passado negro da ditadura militar no Brasil: “Chão, chão, chão quem é contra a repressão / Pula, pula, pula quem é contra a ditadura”.

Aqui mora o torturador de Dilma

Do momento em que estacionamos em uma praça próxima ao edifício de Maurício Lopes Lima ao fim da manifestação, o evento seguiu o planejamento transmitido por Bolero aos companheiros.

Debaixo de muita chuva, a tinta vermelha que escreveu “Aqui mora o torturador da Dilma” na calçada do número 36 da Rua Tereza Moura, no bairro das Astúrias, se desmanchava em poças. Mas cada comissão continuava a cumprir sua função. Com faixas estendidas, com a bateria em ação, o esculacho ganhou coro com as crianças e adolescentes da escola estadual em frente ao edifício de Lima. “Gaiola nele”, berravam os pequenos de dentro dos muros escolares.

Além dos jovens, alguns representantes dos movimentos e ex-presos políticos estavam no local. Amelinha Teles, presa política que foi torturada na época da ditadura e representante da Comissão Familiar de Mortos e Desaparecidos Políticos, estava lá. “Testemunhamos aquela época e agora testemunhamos a juventude”, me falou.

A manifestação pegou de surpresa a senhorinha que esperava o táxi para ir ao oftalmologista. Com sotaque italiano carregado, ela conta que mora há 30 anos no edifício e sabia do passado do vizinho do apartamento de cima, mas não quis se identificar por medo.

De repente, os jovens iniciam uma encenação de tortura. Ela se emociona. Liga assustada para a filha avisando que talvez o táxi não vá conseguir chegar e vai caminhando.

Quem para pra olhar é o senhor de 74 anos, Alberto Felipe, residente nos Estados Unidos e de férias no Brasil. Achava que era alguém querendo se jogar do prédio. Depois de se inteirar, conclui: “Os culpados que venham à tona”.

A diretora, Conceição Rodrigues, 48 anos, e alguns funcionários da escola estadual também se surpreenderam. “Nós vimos essa agitação na porta da escola e viemos verificar”, fala. “Mas tem que apurar direito, a gente não conhece bem essa história. Cabe à justiça tomar as providências. A população pode se manifestar, mas cabe à justiça ver se ele já foi punido ou não. A gente não sabe, né?”

A manifestação acaba de forma pacífica. Perto do final, dois carros da polícia militar se aproximam. “Se vocês tivessem feito um comunicado, nós poderíamos ter vindo fazer a escolta”, comenta o policial. Cercado por jornalistas, o advogado que acompanhava a manifestação responde que não haveria necessidade, “é um evento pequeno”.

Maurício Lopes Lima, acusado de torturador, não atendeu à campainha.  Nem dos manifestantes, nem da imprensa. Depois de muita insistência, resumiu à repórter Tatiana Farah, do Globo: “Acho isso um besteróide”.

Na volta à São Paulo, o gol verde parece ter sido o único que não voltou inteiro. A lateral da lanterna esquerda estava despedaçada. Acidente de percurso.

Lembro-me dos trabalhadores que abordei no momento em que passavam pela manifestação, ditraídos. Era o primeiro dia do trabalho deles: “capinação”, me explicaram. Perguntei se sabiam que havia um morador acusado de ser torturador que vivia ali. Disseram que não.

“Mas vocês sabem que houve tortura na ditadura?”

As cabeças balançaram, em negativa.

Jessica Mota, 20 anos, é estagiária da Agência Pública.

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