Por Márcia Tiburi.
Uma das formulações mais ricas da história da filosofia é a chamada “dialética do senhor e do escravo”, que aparece na Fenomenologia do Espírito, obra de Friedrich Hegel do começo do século 19. Fenomenologia deixa de ser um termo complicado se pensarmos na descrição do caminho que leva da “consciência sensível” até o “saber absoluto”, ou seja, da percepção mais simples sobre as coisas até a complexidade da verdade.
Em nossa época, estamos desacostumados ao trabalho da compreensão e a ideia da verdade não tem mais valor coletivo, vide o lugar das fake news que avançam como indústria da deturpação de fatos e falas. Enquanto isso, meios de comunicação e toda sorte de discursos prontos liberam as pessoas do esforço de discernir e pensar. Para citar um exemplo, um dia desses um ministro do STF disse impropérios a um outro e seu discurso tornou-se, para muita gente, uma espécie de desabafo gracioso. Repetido em memes e camisetas, perderam-se as “mediações” em jogo em uma fala como aquela.
Se entendêssemos as “mediações”, ou seja, os interesses, os contextos, os jogos de poder envolvidos nos discursos que se pretendem como verdades, talvez nos tornássemos um pouco mais senhores de nossas opiniões. Mas poucos se ocupam em entender como as opiniões são fabricadas e vendidas como verdades no mercado das ideias.
“Mercado de ideias” não é apenas uma metáfora econômica para algo que não parece ser um “produto” e, portanto, não parece estar embalado para a viagem ideológica do momento. Ora, a ideologia está para o universo do pensamento assim como a usura está para a economia. Na bolsa de valores dos pensamentos prontos, todos sabem que as ideias se tornaram um capital.
O dono do pensamento único é, literalmente, o grande capitalista. A hiperprodutividade das frases de efeito nas redes sociais é a parte que cabe ao cidadão, trabalhador vigiado de perto pelo sistema midiático-religioso, para servir como replicante. O sistema econômico-político depende do controle da mentalidade popular e a mágica desse tipo de mercado – altamente publicitário – é fazer cada cidadão acreditar que é pensamento próprio aquilo que, na verdade, estava na prateleira por um preço alto. “Escravos de ideias” são escravos felizes, não devem perceber que elas são desfavoráveis às suas próprias vidas.
Sustentar a capacidade de lutar pela independência do pensamento implica a dialética, ou seja, a luta contra as corporações proprietárias dos meios de produção dos discursos, especializadas em construção de narrativas. Elas atuam como senhores a controlar a consciência da população. Escravização televisiva e escravização digital pelas redes sociais ocultam o “trabalho espectral” e seu caráter de exploração. Reduzida a uma espécie de lazer controlado ou de controle prazeroso, a liberdade de pensar e de agir já não é uma questão.
De certo modo, a dialética do senhor e do escravo – como luta pela independência da consciência que nos torna senhores ou escravos de ideologias econômicas, religiosas, morais ou políticas – foi interrompida em nossa época. Os escravos foram levados a acreditar que estão se divertindo ao serem explorados. Nesse contexto, o questionamento continua a ser a arma rara – e cara – que precisa estar disponível para a emancipação do povo.