Escravidão e Jacarezinho. Por Elaine Tavares

Foto: Amnistía Internacional

Por Elaine Tavares.

O sistema colonial que se instalou no “novo mundo” depois da invasão das Américas precisava de mão-de-obra para fazer o trabalho andar. Foi assim que os países ricos da época – Inglaterra e Holanda  – começaram um comércio até então inédito: o de gente. Levavam os navios para o continente Africano, sequestravam gente, e levavam para a América para trabalhar como escravo. Foram séculos dessa infâmia.

No caso do Brasil, quase dois milhões de pessoas foram trazidas para trabalhar nas fazendas dos senhores de engenho ou de café. Mais de 200 mil morreram no caminho. Essa gente toda foi espalhada pelo território e apesar das condições brutais de existência, gerou descendência. Um censo realizado em 1872 – 16 anos antes da abolição – dá conta de que 58% da população brasileira se declarava negra ou parda, ou seja, os negros eram maioria, sempre foram desde que trazidos da África. Quando a abolição finalmente chegou, o país tinha ainda 723 mil pessoas na condição de escravo.

É bom que se lembre de que antes disso teve a Lei do Ventre Livre, que deu “liberdade” aos nascidos de pessoas ainda escravizadas e a Lei do Sexagenário, que liberou os mais velhos. Ora, todas essas duas leis foram perversas porque jogavam numa condição ainda mais miserável os bebês, que apesar de “livres” tinham de ficar com os pais ou abandonados, e abandonava os velhos a sua própria sorte depois de já terem sido consumidos. Nem às crianças nem aos velhos foi dada qualquer condição de reproduzir a vida.

Da mesma forma, toda essa gente escravizada se viu livre numa manhã de 1888, sem qualquer opção de existência. A eles não foi dado o direito de propriedade e muito menos qualquer política pública de recomeço da vida agora como um ser livre. Nem mesmo o trabalho lhes restava porque as levas de imigrantes agora viriam a substituir os negros, e estes eram sempre a primeira opção dos fazendeiros. Isso mostra bem a condição do negro naqueles dias de libertação. Começava aí um novo processo de aprisionamento, desta vez como exército de reserva do capitalismo nascente.

Depois de 300 anos de escravidão, os negros eram largados com uma mão na frente e outra atrás. Sem emprego e sem opção, eles foram ocupando terras periféricas e se organizando como dava. No geral, o máximo que conseguiam eram trabalhos esporádicos, bicos, e suas condições de vida eram precárias. É dessa história de sequestro, violência e abandono que nasce o menino de rua, a favela, o mendigo. É claro que muitos negros conseguiram romper com essa planejada destruição, mas a maioria foi jogada na marginalidade.

A tragédia do Jacarezinho – Rio de janeiro/2021

Neste dia 06 de maio de 2021, 133 anos depois daquele maio que tornou livres os negros escravizados, uma tropa da polícia civil do Rio de Janeiro entrou na comunidade do Jacarezinho e matou, sem direito a julgamento ou defesa, 25 pessoas. Gente jovem e preta, como tem sido, sistematicamente, há décadas, em todas as regiões do país. A lógica é cortar o “mal” pela raiz. O argumento é singelo: os policiais estavam ali “limpando” a área para garantir a segurança aos “cidadãos de bem”. Segundo a versão oficial, as pessoas mortas eram bandidos, traficantes e mereceram o destino: CPF cancelado, para usar a linguagem dos tempos bolsonarísticos. Não foi um confronto, foi uma execução.

Analistas entendidos da realidade carioca falam que o Jacarezinho é uma região do Rio onde as milícias ainda não puderam entrar. E que são elas as que dominam quase 60% do território. Pode estar aí um dos motivos para essa “incursão” já que todo o poder institucional do estado e da cidade está conectado com as milícias. Há quem diga que o próprio clã que hoje governa o país também. Tudo isso são questões que aparecem de maneira periférica na discussão. Geralmente quando acontece algo assim sempre vêm à tona as guerras de facções, os esquemas de poder do submundo do crime e tal.

Para o leitor/espectador comum, o foco todo fica sempre no morto: era um bandido. Mesmo que não seja. Se era preto e vivia na favela, era bandido. Essa é a compreensão. E se o morto é uma criança, as pessoas pensam: bom, se não era bandida ainda, seria. Porque no imaginário nacional o negro está sempre vinculado ao lado ruim da força. Essa é a ideia que vem se reforçando desde o princípio da escravidão, eu intuo. Imagino os donos de engenho repassando aos filhos a informação: “não cheguem perto dos negros, eles não são gente, são coisas do mal”. Depois, quando os negros estavam livres e foram se incrustar nos morros, seguiam sendo apontados como os “malvados”, os “capoeiras”, os “marginais”. Hoje, ainda confinados às regiões mais pobres, eles seguem sendo a imagem do mal. É uma construção histórica que muito bem serve à classe dominante, essa que nunca saiu da casa grande.

Pode ser que alguns daqueles jovens assassinados no Jacarezinho fossem traficantes. Pode ser. Muitos deles são. Porque aos pobres do país muitas vezes não resta saída. Ser recrutado pelos gerentes do tráfico é coisa corrente nas comunidades. É bem difícil escapar desse destino porque no geral não há trabalho para jovens negros, e se há, é subemprego. Com o tráfico eles tiram em um dia o que ganhariam em um mês. Que jovem não faria esse cálculo? Negro, branco, vermelho, amarelo ou azul? Qualquer um, afinal, vive-se num mundo capitalista no qual a pessoa é medida pelo que tem. A questão é? São eles, culpados? E sendo, deveriam ser executado assim, sem julgamento ou direito à defesa?

Não faz muito tempo um avião presidencial – eu disse presidencial – foi pego com quilos e quilos de cocaína. Cocaína é droga. Sabem o que aconteceu? Nada. Nenhuma invasão ao aparelho, nenhum tiro. O militar – assim trata a imprensa, em vez de bandido ou traficante – que acabou responsável pelo caso foi preso sem alarde e nem sei se ainda está. Outro caso famoso é o de um avião cheio de cocaína que era de propriedade de um deputado mineiro e que foi apreendido dentro da fazenda do deputado, tampouco teve tiro ou execução. E inclusive, mesmo sendo o avião do deputado e a fazenda do deputado, o tal deputado não foi incriminado. Parece que só sobrou para o piloto. Eis a questão!

Os traficantes de verdade, os que importam, os que fazem girar o mundo das drogas, esses não estão na favela. Eles frequentam os salões e vivem no asfalto. Suas casas não são invadidas e eles não são assassinados em frente às mães, às irmãs, aos primos. Eles são os que estão no comando. Nada lhes toca. A guerra é feita aos gerentes e aos soldadinhos do tráfico, para mostrar que se está fazendo algo. E com muito mais violência a guerra é feita  aos soldadinhos, porque esses não tem nenhum poder a não ser a arma que carregam. Eles podem ser abatidos como moscas para serem expostos como troféus de uma “política de segurança”. Mas, outros como eles logo estão prontos para se alistar no exército do tráfico, porque não encontram saída do labirinto onde foram jogados há séculos.

Esse é o jogo. Essa é a incômoda verdade. “Todo camburão tem um pouco de navio negreiro”, diz a canção do Rappa.

E, nesse contexto, basta a gente se levantar em defesa dos mortos e já vem a matilha a gritar: “leva pra casa, tomara que estuprem tua mãe”. Porque essas criaturas, que não conseguem enxergar o todo, temem os traficantes, os bandidos, os “negrinhos”. Não conseguem ver que o temor precisa tomar outra direção. Os verdadeiros causadores da tragédia das drogas não são os guris do morro. Eles são apenas um elo da corrente, o mais fraco, aliás. O verdadeiro traficante – o dono da droga – está protegido e seguirá assim até que um dia esse mundo mude pela força das nossas mãos.

Hoje as famílias do Jacarezinho choram seus mortos, e daqui a algumas horas, outras famílias, de outros morros, outras comunidades, também chorarão. Tem sido assim, todos os dias. Porque são herdeiras daquela gente “descartável” que cometeu a heresia de ficar por aqui, de não morrer.

E assim vai a vida nesse triste país, sem parada.

Dia virá, eu espero, que os deserdados se levantarão, organizados e coletivamente, e arrancarão das mansões os verdadeiros fabricantes da morte e do terror.

Elaine Tavares é jornalista, produtora e apresentadora do programa Campo de Peixe na Rádio Campeche, e colunista no espaço Prismas da Pátria Grande no JTT A Manhã com Dignidade do Portal Desacato.

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