Por Rafael Barifouse.
A explosão de casos de covid-19 no Brasil nas últimas semanas leva aqueles na linha de frente do combate à pandemia do novo coronavírus a passar por um dos piores cenários possíveis de sua profissão.
O grande fluxo de pacientes fez as unidades de tratamento intensivo (UTIs) atingirem níveis perigosamente altos de ocupação e, em alguns casos, chegarem à lotação máxima.
Muitas vezes, não há espaço para todos que precisam de atendimento, e os médicos precisam escolher quem vai para a UTI quando surge uma vaga.
“A gente acaba escolhendo quem vai ter mais chances de sobreviver”, diz a médica Andressa*, que trabalha na emergência de um dos maiores hospitais públicos de Fortaleza, no Ceará, o segundo Estado com o maior número de casos, atrás apenas de São Paulo.
Formada há dez anos, Andressa diz que a falta de leitos de UTI é um problema crônico do Sistema Único de Saúde (SUS). Mas isso se agravou com a pandemia, mesmo com o esforço de governos para aumentar a capacidade dos hospitais.
“Os leitos mais do que dobraram, mas não conseguimos dar conta da demanda. Temos pacientes intubados na enfermaria, na emergência. Já teve paciente que ficou mais de duas horas rodando intubado em ambulância porque não tinha vaga”, diz a médica.
“Fazemos essa escolha (de quem vai para a UTI) todos os dias, é algo rotineiro. Mas não é fácil. Dá uma sensação de impotência muito grande, de que estamos lutando contra algo muito maior do que a gente.”
Além de ficar mais frequente na rede pública, esse dilema também está se tornando uma realidade onde até então não existia, a rede privada.
A cardiologista Marina* diz que teve de tomar essa decisão com uma paciente de 90 anos depois que sua saúde piorou rapidamente ao ser internada em um grande hospital particular do Rio.
A idosa precisava ir para a UTI, que estava quase lotada. E havia outros oito pacientes mais jovens em estado grave, recebendo um alto fluxo de oxigênio.
Havia uma grande chance destes doentes precisarem ser intubados, mas não haveria vaga para eles se a paciente de Marina fosse para a UTI.
Uma comissão de médicos optou por deixar a idosa sob cuidados paliativos, e ela morreu na madrugada seguinte.
“Foi uma angústia muito grande, porque era uma pessoa que estava lúcida, não tinha outras doenças graves e havia expressado o desejo de viver”, diz Marina.
A médica diz que, antes da pandemia, isso não acontecia porque havia leitos de UTI suficientes.
“A gente não precisava fazer essa ‘escolha de Sofia’. Mas agora estamos vivendo cada vez mais isso. E é muito difícil também porque não somos treinados para tomar esse tipo de decisão, para priorizar quem tem mais chance de se recuperar porque é mais jovem ou saudável. A gente aprende que tem que salvar vidas.”
Associações médicas criaram regras para orientar essa decisão
Para ajudar os médicos a tomarem essas decisões com base em critérios científicos e uniformes, associações médicas brasileiras criaram protocolos de triagem de atendimento em UTIs quando houver um colapso do sistema de saúde.
Um deles foi elaborado pela Associação de Medicina Intensiva Brasileira (Amib) em parceria com a Associação Brasileira de Medicina de Emergência, a Sociedade Brasileira de Gerontologia e a Academia Nacional de Cuidados Paliativos.
“Em uma situação de catástrofe, não queremos que essas escolhas sejam feitas em segredo, mas de forma clara e transparente, com critérios eticamente justificados e de acordo com o ordenamento jurídico e os valores brasileiros”, afirma a médica Lara Kretzer, coordenadora da equipe responsável pelo protocolo divulgado neste mês pela Amib.
“Queremos trazer esse assunto para o debate público e prestar contas de como esse processo está acontecendo em vez de varrer tudo para debaixo do tapete.”
O Conselho Regional de Medicina do Estado de Pernambuco (Cremepe) também elaborou seu próprio protocolo, que foi levado à público no final de abril.
“Os médicos que estão na ponta, além de estarem sofrendo muito ao ver tanta gente morrendo, com a sobrecarga de trabalho e com o medo de contaminar seus familiares, precisam tomar decisões que podem gerar traumas graves”, afirma Zilda Cavalcanti, diretora do Cremepe.
“Se um profissional tem um respirador para três pacientes, ele não pode carregar sozinho o peso dessa escolha. Precisamos dar critérios para respaldar o médico e fazer com que essa decisão seja a mais justa possível.”
Os protocolos da Amib e do Cremepe se baseiam em uma análise das condições de saúde do paciente para determinar, por meio de um sistema de pontos, quem pode se beneficiar mais de um leito de UTI.
Em ambos, é feita uma Avaliação Sequencial de Falência de Órgãos (Sofa, na sigla em inglês), em que é analisado o estado de seis sistemas básicos do organismo: respiratório, cardiovascular, hepático, de coagulação, renal e neurológico. Quanto pior for a condição do paciente, maior é a pontuação recebida.
É analisado em outra etapa se o paciente tem outras doenças crônicas, as chamadas comorbidades, que são um fator de risco para quem tem covid-19.
No caso do Cremepe, há uma escala que confere uma pontuação mais alta quanto pior for o quadro do paciente. A Amib confere uma pontuação única nesta etapa, caso a expectativa de vida do paciente seja inferior a um ano por causa destas doenças.
Por fim, uma terceira etapa mede a capacidade física e motora de uma pessoa naquele momento, um indicativo de como seu organismo será capaz de responder ao tratamento. Novamente, quanto pior a condição, maior a pontuação que alguém recebe.
Ao final, são somados os pontos de cada avaliação, e o paciente com a menor pontuação recebe prioridade no atendimento
O objetivo destes sistemas é identificar os casos em que a saúde de uma pessoa está tão comprometida que nem mesmo uma UTI conseguirá salvá-la ou quem não está tão doente em comparação a pacientes para os quais a UTI pode ser a diferença entre a vida e a morte.
“Em um esgotamento do sistema de saúde, a ênfase passa a ser salvar o maior número de pessoas. Por isso, precisamos racionalizar o uso dos recursos”, explica Kretzer.
Cavalcanti ressalta, no entanto, que deixar de internar um paciente na UTI não significa abandoná-lo à própria sorte.
“Gosto de uma frase que ouvi: ‘Muitas pessoas vão para a UTI querendo garantir seu direito à saúde, mas, na verdade, querem garantir seu direito à esperança’. Mas, há casos em que o risco de morte de uma pessoa é altíssimo, e ela não vai se beneficiar da UTI. O melhor a fazer é proporcionar um fim de vida digno.”
Maximizar o ganho para a sociedade
O médico Eduardo Leite, da comissão de terapia intensiva da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia, diz que a falta de vagas de UTI por causa da pandemia de covid-19 já é uma realidade em algumas cidades do país e que, em uma situação assim, é preciso estabelecer regras melhores de atendimento.
Normalmente, uma pessoa precisa ir para este tipo de unidade porque sua saúde está muito frágil e exige um acompanhamento bem próximo e uma resposta imediata da equipe médica em caso de piora. Ou ainda porque necessita de um equipamento de suporte à vida que só é oferecido na UTI, como é o caso dos respiradores.
O atendimento é feito conforme a ordem de chegada, e não há critérios para exclusão de um paciente.
“Mas, em um sistema hospitalar saturado, isso pode não ser o melhor, porque dar uma vaga para quem não tem muitas chances de sobreviver não é a forma mais eficiente de administrar o sistema de saúde”, diz Leite.
Por isso, o pneumologista, que não participou da elaboração dos protocolos criados pela Amib e pelo Cremepe, considera que as regras elaboradas por estas associações podem ser fundamentais para que esta escolha não seja uma responsabilidade exclusiva do médico na linha de frente.
“Essa abordagem pode maximizar o ganho médio para a sociedade, ainda que seja difícil aplicar esse protocolo na prática. Ao menos, isso ajuda a aliviar o peso emocional e psicológico desta decisão em que você precisa dar mais chance a uma pessoa em detrimento de outra, que você praticamente condena à morte”, afirma Leite.
O médico Daniel Neves Forte, que é especializado em cuidados intensivos e paliativos, explica que, antes desta pandemia, não havia a necessidade, em países mais desenvolvidos, de fazer uma triagem de pacientes por causa de falta de vagas de UTI.
“Esse era um problema inexistente para eles, que ficaram assustados com o esgotamento de leitos e correram atrás para desenvolver mecanismos de triagem”, diz Forte, que é presidente do comitê de bioética do Hospital Sírio-Libanês.
Mas isso já era uma realidade no Brasil por causa da precariedade do SUS. Isso levou o Conselho Federal de Medicina (CFM) a publicar, em 2016, uma resolução que estabelece cinco níveis de prioridade para admissão nas UTIs, que vão de pacientes com “alta probabilidade de recuperação” àqueles “sem possibilidade de recuperação”.
“Essa resolução já foi um grande passo à frente, mas ainda assim era muito subjetiva, baseada na interpretação feita pelo médico em cada caso”, diz Forte.
O médico avalia que os protocolos criados no Brasil representam um avanço, por apresentarem critérios mais objetivos que reduzem as chances de haver injustiças com esse tipo de escolha.
“Mas tenho uma enorme preocupação em usar protocolos que não foram validados cientificamente, porque a gente pode não conseguir ter o efeito pretendido, que é dar o leito para quem vai ter o maior benefício com ele”, diz Forte.
‘Querem responsabilizar quem está na linha de frente?’
Lara Kretzer, da Amib, diz que as regras desenvolvidas pela associação médica vão ser testadas cientificamente para verificar se atinge seus objetivos.
“A partir disso, podemos ajustar o modelo para que ele cumpra a função de identificar o paciente que tem mais chance de sobreviver e diminuir o número de mortos em uma pandemia.”
A Amib já apresentou seu protocolo para a Associação Médica Brasileira (AMB) e o Conselho Federal de Medicina (CFM) para que estas organizações avaliem os critérios e se posicionem sobre sua adoção. Nenhuma das duas fez isso até o momento.
O CFM não respondeu ao pedido de entrevista da BBC News Brasil. A AMB diz que está avaliando o protocolo e não tem uma previsão de quando se manifestará.
“Precisamos estar muito bem fundamentados para isso, porque essa crise vai passar, como outras já passaram, e as atitudes que nós tomarmos é que ficarão”, diz Lincoln Lopes Ferreira, presidente da AMB.
“Mas nada disso é novo. Denunciamos há muito tempo esse problema, que revela uma ineficiência de gestão crônica. Agora querem transferir a responsabilidade para quem está na linha de frente?”
Kretzer diz que a elaboração de um protocolo não significa isentar o gestores de saúde de sua responsabilidade, porque o documento prevê que as regras só podem ser aplicadas depois de ser feito um esforço para ampliar a rede de atendimento.
“Também não estamos jogando isso no colo do médico, pelo contrário. Estamos tentando tornar mais fácil e seguro o seu trabalho com critérios desenvolvidos por sociedades científicas e submetidos ao escrutínio de especialistas”, diz Kretzer.
A médica afirma ainda não ser possível ignorar que há problemas graves no sistema de saúde público do país, mas diz que comparar a falta de leitos crônica ao que ocorre em uma pandemia é “fazer uma confusão enorme”.
“Em uma situação normal, quando há um aumento na demanda, é possível repensar e ajustar a forma de trabalho. Mas estamos falando aqui de uma situação de catástrofe, em que, mesmo depois de aumentar o número de leitos, cancelar cirurgias eletivas e de outras medidas de contingência, o sistema continua não dando conta. Não podemos nos abster diante de uma situação assim, e não vai ajudar em nada minimizar o que está acontecendo.”
*O nome dos entrevistados foi alterado para preservar sua identidade.