Escola Sem Partido caça bruxas nas salas de aula

Por Andrea Dip

Com colaboração de Patrícia Figueiredo

Janeth de Souza terminou de dar suas aulas de inglês no Instituto de Educação Rangel Pestana, em Nova Iguaçu, e estava a caminho de casa quando recebeu um telefonema. Deveria comparecer à Diretoria Regional de Educação Metropolitana I para responder a uma sindicância. Chegando lá, foi informada de que havia uma “denúncia anônima”: um vídeo de 40 minutos de uma de suas aulas, em que explicava aos alunos porque os professores entrariam em greve. Janeth estava sendo acusada de “doutrinação ideológica” – um termo que nunca tinha ouvido em seus mais de 30 anos de profissão.

“Sempre defendi a escola pública e ainda não me aposentei porque acredito que a gente pode melhorar a educação nesse país. Dou aula para futuros professores e acho que nada mais justo do que explicar os motivos das greves, primeiro porque isso os afeta diretamente como estudantes e segundo exatamente por serem futuros professores” diz Janeth, que ainda aguarda o resultado da sindicância aberta em novembro de 2015.

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A alguns quilômetros de distância, outra professora, esta de geografia, também aguarda o resultado de uma denúncia feita à Vara da Infância e Juventude de sua cidade. Alice Aparecida e Silva e seus colegas professores do Instituto de Educação Estadual de Londrina foram denunciados ao Núcleo Regional de Ensino, ao Ministério Público e ao Juizado da Infância e Juventude por um advogado chamado Filipe Barros – hoje candidato a vereador pelo PRB e fundador da página “Endireita Londrina” – por causa do evento “Diversidade e Sustentabilidade”, em junho desse ano, que trouxe temas como violência contra a mulher, homofobia, transfobia e acessibilidade.

“Nós trabalhamos esses conteúdos por seis meses e esse evento foi o encerramento. Nosso trabalho foi recortado, descontextualizado e denunciado, dizendo que estávamos estimulando a erotização infantil e trabalhando a ‘ideologia de gênero’ – o que, aliás, precisamos discutir, pois não existe ideologia de gênero – porque um dos grupos de alunos, que estava trabalhando a questão da orientação sexual, levou uma drag queen para fazer uma performance na hora do intervalo. Foi uma série de atividades, mas o enfoque foi na performance da drag, que em nenhum momento ficou sem roupa, e em um pedaço de um filme chamado ‘O homossexual não é perverso, perverso é o ambiente onde ele vive’, de 1971”.

Na denúncia, o advogado diz que o conteúdo não poderia ser abordado na escola porque o poder Legislativo do Paraná havia retirado do plano estadual de educação o “ensino da teoria de gêneros e orientação sexual” e que a educação religiosa e moral é competência da família. Alice diz que ela e os colegas receberam muito apoio dos alunos e pais e que quem passou as informações ao denunciante foi outro professor. O Núcleo de Educação está cuidando da defesa do grupo.

“O Ministério Público não se pronunciou e a Vara da Infância e Juventude pediu esclarecimentos mas ainda não se manifestou novamente. A programação aconteceu durante um período em que não tem crianças, apenas adolescentes. As manifestações homofóbicas, machistas e racistas na escola são recorrentes. Eu já ouvi de um aluno que estava mal humorada porque [eu] não tinha feito sexo na noite anterior. Trabalhar esses temas é fundamental, nós vivemos em uma sociedade bastante preconceituosa e excludente e a escola é o reflexo desse contexto”, diz Alice. E acrescenta que ela e os colegas receberam muitas mensagens de ódio nas redes sociais, “principalmente na página do advogado Filipe, onde fomos expostos. Gente dizendo que não servíamos nem pra dar aulas pra animais”. Em sua página no Facebook, o advogado e candidato a vereador propõe uma petição para a criação de um projeto de lei de iniciativa popular alterando a lei orgânica do Município “de modo a vedar qualquer política pública educacional de promoção da ideologia de gênero”.

Em Curitiba, a professora de sociologia Gabriela Viola ficou temporariamente afastada da escola onde trabalha, o Colégio Estadual Profª Maria Gai Grendel, após o vídeo de uma paródia criada por seus alunos de 1o ano do funk “Baile de Favela” citando as teorias de Karl Marx ganharem repercussão nacional. “A paródia foi uma forma que eu encontrei de fazer a sala toda participar do conteúdo que está previsto no currículo do 1o ano do colegial, estudar pensadores clássicos como Durkheim, Marx e Weber. Eles que escolheram o estilo musical, fizeram a paródia. O que a gente fez, que é um papel da Sociologia, foi pegar algo que estava pronto na sociedade, desconstruir e construir algo novo. A gente ressignificou algo que está presente na vida deles. Aí postei a música no Facebook no domingo à noite e, no dia seguinte, o vídeo já estava em um monte de páginas de direita, dizendo que era doutrinação ideológica, com discursos de ódio contra mim e contra os alunos”, conta Gabriela.

Com a repercussão, a coordenação do colégio determinou seu afastamento até que o caso fosse decidido junto ao Núcleo Regional de Educação, mas os alunos se mobilizaram para que a professora voltasse. “Quando fui mandada pra casa, não tive contato com eles e fiquei surpresa ao ver que se mobilizaram nas redes sociais, com a hashtag #FicaGabi e também em atos na própria escola. Para conter um deles, a patrulha escolar chegou a ser chamada e apareceram três carros da Rotam”, conta a professora, que voltou a dar aulas no colégio.

Casos de professores perseguidos por “doutrinação ideológica”, conceito que vem ganhando força rapidamente como aconteceu com a “ideologia de gênero”, – leia entrevista a respeito disso aqui – têm se multiplicado por todo o país. Talvez um dos casos mais emblemáticos seja o da professora de Comunicação e Expressão Cleo Tibiriçá, na época professora da Fatec Barueri em São Paulo, e que hoje trabalha na coordenação de ensino superior do Centro Paula Souza e leciona em outra Fatec. Em outubro de 2013 ela recebeu um e-mail do advogado e fundador do movimento Escola Sem Partido, Miguel Nagib, dizendo que havia recebido uma denúncia de um dos seus alunos e que iria publicar uma série de artigos em seu site referentes à sua prática doutrinadora em sala de aula. O plano de aulas, autorizado pela direção da Fatec desde 2009, serviu como “prova” da acusação: “Tinha lá textos de Hobsbawm, Milton Santos, uma música do Chico Buarque, alguma coisa de Paulo Freire. Tinha também muitos artigos, alguns da revista Carta Capital e até alguns da Veja.”

“Eu trabalho a língua a partir de textos ancorados em um contexto geográfico, sociopolítico. Porque em geral os alunos não entendem nada de gramática e vocabulário porque a língua é trabalhada fora de contexto, aí eles morrem de tédio e não sabem fazer uma análise sintática, porque não veem como isso funciona na vida real. Quando você coloca isso como coisa viva, que dialoga com a realidade, o negócio muda de figura. Sempre funcionou, sempre tive muita adesão dos meus alunos,” explica a professora. E acrescenta: “Eu nunca tinha ouvido falar no Escola Sem Partido até então. Depois descobri que esse aluno que fez a denúncia, um rapaz de 35 anos, era ligado ao instituto Millenium e ao próprio Escola Sem Partido”, lembra Cléo.

A professora diz que respondeu ao e-mail de Nagib dizendo que não autorizava a publicação desses artigos ou a exposição pública de seu nome, mas não adiantou. “Ele ignorou minha resposta e publicou. A primeira publicação mandou com cópia pro diretor da Fatec de Barueri, para a superintendente do Paula Souza e para o governador Geraldo Alckmin, dizendo que eu fazia aquela prática com o dinheiro do contribuinte e que merecia sindicância para exoneração”, conta. Com seu nome exposto não só no site do Escola Sem Partido (ESP) mas também na coluna de Rodrigo Constantino na Veja e em diversos outros sites e blogs, Cléo diz que passou a receber mensagens de ódio nas redes sociais, ameaças na sua caixa postal telefônica, teve de mudar o endereço de e-mail institucional de tantos xingamentos que chegavam todos os dias e que sua filha chegou a ser apontada por um desconhecido que gritou “essa é a filha da doutrinadora” na universidade em que estudava. A professora lembra que apesar do apoio do Centro Paula Souza, a Fatec Barueri se recusou a fazer sua defesa pública e que algum tempo depois foi informada por um colega professor que a sindicância havia sido aberta e teve acesso à carta que seu diretor enviou a Miguel Nagib avisando da abertura do processo.

“Eu recebi mensagens dizendo que não merecia só ser presa por doutrinar jovens contra a família e contra Deus, que eu merecia morrer. Outras dizendo que eu merecia queimar no inferno, que eu era a pior espécie de professor mas que graças a iniciativas como o Escola Sem Partido eu seria exterminada”. Cleo abriu um processo contra o fundador do ESP e conseguiu na justiça que os artigos fossem tirados do ar (o artigo de Rodrigo Constantino inclusive). Pediu transferência da unidade em que trabalhava e hoje espera os resultados da sindicância e do processo que move contra Nagib.

Por dentro do movimento

O Escola Sem Partido é um movimento que prega “o fim da doutrinação política e ideológica em sala de aula” –, segundo seu líder e criador, o procurador paulista Miguel Nagib. Segundo ele, foi uma experiência com a escola de sua filha, que o fez fundar o movimento, como explicou em entrevista à Pública: “Em setembro de 2003, minha filha mais nova, cursando a 7a. série do ensino fundamental num colégio particular de Brasília, contou que seu professor de história havia comparado Che Guevara – um homem conhecido pela violência praticada em nome da sua ideologia política – a São Francisco de Assis. Como eu já estava incomodado com esse professor, decidi escrever-lhe uma carta aberta, denunciando o seu empenho de ‘fazer a cabeça’ dos alunos. Imprimi umas 300 cópias, e fui ao estacionamento do colégio distribuir aos pais que chegavam para deixar seus filhos. O efeito dessa iniciativa foi o mais inesperado para mim. A direção do colégio contestou a veracidade do fato narrado pela minha filha e negou que os professores usassem suas aulas para fazer a cabeça dos alunos. Os alunos se solidarizaram inteiramente com o professor, e me enviaram dezenas de mensagens ofensivas. Nenhum pai me apoiou. O episódio me impressionou muito, e eu acabei me interessando pelo tema da doutrinação política e ideológica nas escolas (…) Foi então que, inspirado em alguns sites americanos, resolvi criar o ESP, para que as vítimas da doutrinação em sala de aula pudessem relatar suas experiências, de modo que com o tempo nós tivéssemos um bom acervo de provas da existência do fenômeno”.

Mas o movimento só veio a ganhar força, assume Nagib, em 2014, com a discussão sobre a inclusão dos temas de gênero e sexualidade nos planos de educação e com as manifestações contra e pró impeachment da presidente Dilma Rousseff em 2015 e 2016. “A tentativa do MEC e de grupos ativistas de introduzir a chamada ‘ideologia de gênero’ nos planos nacional, estaduais e municipais de educação acabou despertando a atenção e a preocupação de muitos pais para aquilo que está sendo ensinado nas escolas em matéria de valores morais. E, com o acirramento da disputa política a partir de 2015, o alinhamento ideológico dos professores e o aparelhamento político-partidário do sistema de ensino tornaram-se manifestos, e isso também está sendo percebido pela sociedade” diz o advogado, que hoje é procurador em Brasília. O Escola Sem Partido – que recentemente se transformou em uma associação civil – tem sido amplamente apoiado por grupos e pessoas de direita e extrema direita como Revoltados Online e MBL, o “Batman dos protestos” – que agora é candidato a vereador pelo PSC. Atrai simpatizantes como o rapaz vestido de Hitler que aparece em um vídeo sendo expulso de uma audiência pública sobre o Escola Sem Partido na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Uma das líderes do Revoltados Online, a procuradora de justiça do Distrito Federal aposentada Beatriz Kicis, é cunhada de Nagib. Mas seu rosto mais conhecido é o do ator Alexandre Frota, que foi pessoalmente levar o projeto do ESP ao novo ministro da educação e deputado do DEM Mendonça Filho.

Provocado a se posicionar a respeito do assunto, o ministro enviou à Pública a seguinte resposta, através de sua assessoria de imprensa: “Com relação ao movimento Escola Sem Partido, o ministro da Educação, Mendonça Filho, reitera que respeita o direito de qualquer movimento defender as ideias que possui e considera salutar que a sociedade debata a educação. Entende que essa discussão envolve aspectos legais, constitucionais, que devem ser avaliados pela Advocacia-Geral da União, mas que nesse processo prevalecerão o interesse geral por uma boa educação e os conceitos como pluralidade, liberdade e a preservação do direito do estudante de conhecer todos os pontos de vista históricos e ideológicos. O ministro defende a importância de professores bem formados, do exercício do controle social feito pelos pais, alunos e a própria comunidade no entorno da escola, bem como do compromisso de gestores e professores com a amplitude do conhecimento dentro da sala de aula. Ele espera que esse debate enseje uma maior maturidade dos formadores de opinião e daqueles que querem uma escola melhor, no sentido de sedimentar conceitos como pluralidade, amplitude e liberdade, e não cerceamento e censura. Mendonça Filho garante que vai trabalhar por uma educação de qualidade, plural e que ofereça ao aluno a oportunidade de ter ampla visão de mundo para que possa desenvolver um senso crítico e ter condições de fazer suas escolhas com base no acesso à diversidade de ideias”. Um segundo e-mail enviado à assessoria de imprensa, pedindo por uma resposta mais clara, não obteve resposta.

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Disputa política

Na política, o apoio ao Escola Sem Partido também vem das figuras e partidos conservadores e bancadas religiosas, apontando para uma disputa “mais política do que pedagógica”, novamente nas palavras do próprio Miguel Nagib. O primeiro Projeto de Lei baseado no Escola Sem Partido (2974/2014) foi apresentado em 2014 pelo deputado estadual Flávio Bolsonaro. A pedido do deputado, Nagib escreveu um anteprojeto de lei que disponibiliza em seu site que se tornaria modelo para PL’s por todo o país. Logo depois, foi a vez do vereador Carlos Bolsonaro sugerir o projeto (867/2014) no município do Rio de Janeiro. Desde então, já foram apresentados projetos do Escola Sem Partido em ao menos onze estados brasileiros e no Distrito Federal e o fundador do movimento tem viajado para prestar consultorias e participar de audiências públicas por todo o país. Já foram aprovados projetos em pelo menos dois municípios: Picuí (PE) e Santa Cruz do Monte Castelo (PR).Em Alagoas, o “Escola Livre” é lei desde maio deste ano e dois projetos tramitam no âmbito federal: um na Câmara dos Deputados (PL 867/2015) do deputado Izalci Lucas (PSDB); e outro no Senado (PL 193/2016), do senador Magno Malta (PR-ES) – sendo o do Senado uma versão mais atualizada que abrange, inclusive, a proibição da discussão de gênero nas escolas. Evangélico, o senador foi um dos principais articuladores da derrota do PL122/2006, a lei anti-homofobia e um grande entusiasta da redução da maioridade penal.

“Eu acho muito importante que a política seja discutida dentro da sala de aula porque é lá que se formam os seres pensantes. Essa lei [Escola Livre, aprovada em Alagoas] é um retrocesso. O objetivo é acabar com o senso crítico dos alunos. Como essa nossa geração vem se fortalecendo politicamente, isso acaba assustando esses políticos” – Nycholas Pires, 19 anos, Escola Estadual Onélia Campelo, Maceió

Já o projeto de Izalci Lucas – que em sua última campanha recebeu R$ 270.010,34 de doações de instituições privadas de ensino e que declarou R$ 685.502,23 em investimentos em escolas da rede de ensino privadas no mesmo ano de 2014 – é criticado por juristas e pelo Ministério Público Federal. Nota técnica do MPF enviada ao Congresso Nacional em julho deste ano dizia que “O projeto de lei que propõe criminalizar professores sensíveis aos temas dos direitos humanos representa uma grave ameaça ao livre exercício da docência e constitui um retrocesso na luta histórica de combate à cultura do ódio, à discriminação e ao preconceito contra mulheres, negros, indígenas, população LGBTT [Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros], comunidades tradicionais e outros segmentos sociais vulneráveis”. A nota se referia ao PL de Izalci mas, segundo o MPF, vale “para todas as proposições legislativas correlatas”.

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A procuradora federal dos Direitos do Cidadão Deborah Duprat, responsável pela nota, disse em entrevista à Pública que o PL fere a Constituição na medida em que tira da educação aquilo que é sua nota principal, que é preparar o indivíduo para a vida em comunidade. “Quando o projeto determina que alguns temas estejam fora da discussão ele inibe a participação de todas e todos no espaço público. Porque algumas pessoas com posições diferentes estarão excluídas e não poderão ser ouvidas”. Ela também aponta o controle sobre o professor e sobre o que ele está autorizado a falar em sala de aula como outro ponto inconstitucional. “Nossa Constituição é um documento que tem uma importância fundamental porque rompe com um período de censura de restrição das liberdades fundamentais. A liberdade de expressão foi potencializada em vários espaços da constituição. Seria um absurdo que exatamente em sala de aula o professor estivesse limitado sobre o que ensina aos alunos. Até porque existe uma disposição especifica sobre Liberdade de Cátedra no capitulo relativo a educação. E é preciso levar em conta que esse projeto, apesar de usar palavras sedutoras como ‘pluralismo de ideias’ está atravessado por noções morais e religiosas que pretende inibir discussões sobre os diversos formatos de família, questão já superada até pelo Supremo Tribunal Federal, como se essas questões pudessem estar subtraídas do conhecimento das crianças”.

“Eu acho que esse PL é uma herança da ditadura militar. Quanto tempo depois vão querer proibir os estudantes de debater fora da sala também? Eu acredito que a escola não pode ser só para dar o conteúdo, mas também para formar pessoas com senso crítico e que vão se inserir na sociedade. Acho que os professores têm, sim, um papel na formação política dos alunos mas é diferente debater e manipular” – Joaquim Moura, 20 anos, Porto Alegre, cursou ensino médio no Colégio Estadual Piratini

Othoniel Pinheiro Neto, professor de direito constitucional que tem acompanhado o Escola Livre em Alagoas, diz que o PL de Izalci é “um canhão pra matar passarinho” porque vai além dos objetivos que propõe e traz termos abertos e conteúdos vagos que podem levar o professor a ser processado por qualquer coisa que fale em sala de aula. “No artigo 2 inciso 1 do projeto, ele fala em ‘neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado’. Exige que o professor seja neutro mas isso é muito subjetivo, não diz o que seria essa neutralidade. No terceiro artigo diz que ‘São vedadas, em sala de aula, a prática de doutrinação política e ideológica bem como a veiculação de conteúdos ou a realização de atividades que possam estar em conflito com as convicções religiosas ou morais dos pais ou responsáveis pelos estudantes’ mas novamente não especifica o que seria essa doutrinação. Pode ser qualquer coisa! E sobre entrar em conflito com as convicções morais e religiosas dos pais, isso é impossível em uma classe com mais de um aluno” Explica. Othoniel também fala sobre o Pacto de San José de Costa Rica, usado como fundamento legal por Miguel Nagib e pela maioria dos PL’s: “Essa é uma utilização indevida e falaciosa, porque o Pacto de São José da Costa Rica é o que os operadores do direito chamam de ‘direito de primeira geração’. O Pacto diz que os pais têm direito a que os seus filhos recebem educação moral e religiosa, está falando da liberdade dos pais perante o Estado, ou seja, que o Estado não pode adentrar na relação da família no âmbito domiciliar. Eles querem trazer isso pra escola, mas aí é o Estado prestando serviço de educação. Não cabe porque esse é um ‘direito de segunda geração’. Os direitos de segunda geração são os direitos por exemplo de prestação de serviços do Estado para a população como direito à saúde à educação”.

Izalci diz que o projeto é necessário para acabar com a doutrinação de esquerda, que, “inclusive já foi dito por membros do partido e pelo Lula, de que tinha que fazer um trabalho principalmente no ensino fundamental, uma doutrinação ideológica e partidária”. Ele complementa que “Não pode-se fazer uma crítica ao capital e elogiar o comunismo determinando que tudo o que é capitalista é ruim e mau e demônio e tudo e comunista é bacana. O comunismo é bom até acabar o dinheiro dos outros quando acaba o dinheiro dos outros é ruim”. Questionado sobre quem fiscalizaria a aplicação da lei, o deputado diz que seriam os alunos e a própria família. Miguel Nagib concorda: “A única pessoa que esta em condições de aferir a conduta do professor em sala de aula, saber se esses deveres estão sendo respeitados são os próprios estudantes. Se ele perceber comportamento inadequado vai se reportar”. Mas os estudantes teriam tal discernimento, já que segundo seu projeto são facilmente ludibriados pelos professores? “Individualmente não, mas o coletivo de estudantes sim. A medida em que esse conhecimento for se aprofundando ele vai se incorporar a pratica dos professores e passar a ser natural” acredita.

O senador Magno Malta foi procurado pela Pública mas não quis se manifestar.

“Eu pretendo ser professora e acho o projeto bem ‘paia’. Às vezes a gente precisa falar! Não é uma doutrinação, eu não acho que os professores influenciam. As pessoas duvidam muito da capacidade do aluno de pensar por si próprio” – Kaliane, 17 anos, 3º ano da Escola Estadual Caic Maria Alves Carioca, Fortaleza

Para Fernando de Araújo Penna, doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e professor adjunto da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense, criador da página “Professores conta o Escola Sem Partido”, para além dos projetos de lei, existe uma grande disputa quanto à Base Nacional Comum Curricular (BNCC) que vem sendo adiada. “O ministro declarou que iria paralisar as negociações para ‘desideologizar o debate’ e isso é um escândalo, uma verdadeira caça as bruxas! O deputado Rogerio Marinho (PSDB/RN), que propôs o projeto de lei (1411/2015) sobre ‘Assédio Ideológico’ que prevê prisão aos professores, foi chamado no dia 31 de maio deste ano a um seminário sobre a Base na Câmara dos Deputados. Dentro desse evento, para o qual deveriam ter sido chamados autores, educadores, pesquisadores, tinha uma mesa chamada ‘Ciências Humanas da BNCC’. Três pessoas foram falar: o Braulio Porto de Matos que é um professor da UNB que tem defendido o Escola Sem Partido, o professor Orley José e Silva que tem um blog chamado ‘De olho no livro didático’ que procura ocorrências de doutrinação nos livros didáticos e o terceiro convidado foi um padre que quer proibir a discussão de gênero nas escolas. Esses três foram chamados pra discutir ciências humanas da Base. Nós temos educadores de renome internacional no campo das ciências humanas, mas nenhum deles estava lá. Então existe um movimento muito forte se articulando, são varias alianças que estão sendo tecidas e a difusão desse discurso é alarmante” alerta.

“Nesse ano, um mês atrás, teve um caso de homofobia na escola. Um casal de amigos meus estava conversando no pátio e um grupo de alunos foi ameaçar eles, foram perguntando “Cadê a lâmpada? Pega a lâmpada na mochila”. A gente já tem uma formação boa para dizerem que a gente é influenciada. As opiniões dos professores podem trazer coisas positivas, mais discussão, não manipulação” – Lara, 16 anos, estudante do 3º ano da ETEC Basilides de Godoy, São Paulo

Em Alagoas é lei

Othoniel Pinheiro conta que a lei nº 7.800 “Escola Livre” aprovada em maio desta ano (e que tem o texto da justificativa exatamente igual ao anteprojeto de lei estadual sugerido pelo ESP) começou a ganhar corpo quando Miguel Nagib foi a Maceió debater a questão da identidade de gênero que estava sendo votada na Câmara Municipal. “Foi nesse momento que ele se encontrou com grupos conservadores e com a Igreja Católica daqui e esses grupos procuraram o deputado Ricardo Nezinho (PMDB), autor do projeto, que não tem o menor conhecimento de causa”. Ele conta que o projeto caminhou silenciosamente, sem muito debate com estudantes, conselhos de educação, sindicatos ou professores. “O projeto não se iniciou por estudos técnicos, por estatísticas adequadas ou pesquisas. Ele se iniciou por uma crença política e uma paixão de que existe uma doutrinação em sala de aula”.

Uedson Silva, professor da rede de ensino municipal de Alagoas que lutou para que o projeto não fosse aprovado diz que, na pratica, quase nada mudou em sala de aula. “Aquilo que o Karnal disse no Roda Viva, que esse projeto é uma asneira, é a mesma impressão que eu tenho. Porque isso não chegou às escolas, é como se essa lei não existisse. Até porque a lei prevê uma formação para os profissionais se adequarem mas a gente vive uma situação terrível na educação aqui em Alagoas e a falta de recursos é tão grande que nem isso permite. Os professores vêm fazendo várias paralisações, não há previsão de reajuste salarial esse ano então não vejo como esse curso poderia acontecer nas 102 cidades de Alagoas”. Ainda assim, ele acredita que a lei será usada para punir os professores em caso de greve ou ocupações de escolas. “Não temos nenhuma escola ocupada aqui, acho que isso sim tem a ver com a lei”.

Já a estudante Maria Kamila da Silva Santos, de 18 anos, aluna do 3º ano na Escola Estadual Moreira e Silva em Maceió, sente que a lei já começou a fazer efeito. “Infelizmente nós ficamos um pouco limitados com o projeto Escola Livre. Tanto o professor quanto a gente porque o professor não pode expressar sua opinião, não pode falar o que acha. Então a gente acaba meio que tendo mais dúvidas, tendo que amadurecer por conta própria, sem pessoas ali para nos orientar. Sou totalmente contra o projeto porque dentro de sala de aula a gente não pode mais tirar nossas dúvidas. YouTube e Internet às vezes a gente nem sabe qual é a fonte. É bom ter uma informação que a gente sabe de quem vem. E depois da lei, em algumas discussões, o professor fala: ‘Não quero opinar, não posso opinar’. Ele simplesmente chega e dá o tema mas não explica muito o assunto. Antes do projeto os professores falavam de temas como o racismo, por exemplo. Ele dava esse tema, debatia, e aí falava sua própria opinião. E depois da lei ele apenas dá o tema e traz alguns fatos sobre ele. Por exemplo, o racismo, ele fala das leis contra o racismo, de casos famosos, mas em momento algum ele dá opinião. E quando a gente fala: ‘Professor, o que o senhor acha?’ ele fala: ‘Olha, eu não posso opinar porque existe uma lei que não me permite falar isso’. E às vezes nem é o professor que traz o tema, é o próprio aluno que chega falando. E para mim esse projeto só veio para assassinar a qualificação do professor. Eu quero ser professora mas por que eu vou me formar se eu não vou poder me expressar?”

Renato Janine: projeto conservador como o momento

Para o ex-ministro da Educação e professor de Ética e Filosofia Política da USP Renato Janine Ribeiro, o avanço do Escola Sem Partido tem a ver com o momento que a gente está vivendo, de um avanço do conservadorismo em várias direções.

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“Mas é bom lembrar que embora o ESP, o Bolsonaro, se coloquem bem à direita, não quer dizer que todos os defensores do impeachment são conservadores ou defensores dessas ideias. O que aconteceu no último ano foi que a oposição democrática e por oposição democrática eu chamo basicamente o PSDB e alguns outros partidos, ficaram muito fracos depois da eleição e acabaram se aliando a essa extrema direita, o que eu chamo direita de costume, que são aqueles que não estão apenas defendendo uma economia liberal, estão defendendo restrições aos direitos das mulheres, de inclusão social etc. É diferente dos que defendem o liberalismo econômico, essa defende o conservadorismo de costumes. E o Escola Sem Partido é um projeto conservador e reacionário. O ponto de partida deles é misturar educação com doutrinação, falando que o que o professor faz é doutrinar. Por isso que o pior artigo do projeto é aquele que o professor não pode ensinar nada que entre em conflito com os valores religiosos das famílias dos alunos. Eles tem uma ideia de que o aluno não é um sujeito autônomo capaz de fazer suas escolhas, se você der uma aula você faz a cabeça dele e isso porque eles próprios concebem a transmissão de conhecimento sob a forma de doutrinação. O espírito critico significa que não pode ensinar aos alunos apenas uma visão do mundo, tem que falar de várias visões. Por exemplo: economia. Não dá pra falar de economia sem falar de Adam Smith. Se você falar da organização social sem falar dos pensadores de esquerda como o próprio Marx fica truncado. Isso não quer dizer que a pessoa saia de uma aula dessa marxista ou discípulo de adam Smith. Ela precisa ter visões diferentes das coisas e essas visões não são meras opiniões, são pensamentos, teorias, é ciência”.

Para a professora de sociologia Renata Hummel, que dá aulas em uma escola estadual de São Paulo, a vigilância piorou muito depois das ocupações das escolas pelos estudantes secundaristas: “Dou aula no ensino médio desde 2009 em sociologia, em São Paulo. Desde o ano passado, quando tivemos greve e depois as ocupações das escolas, houve uma preocupação dos gestores e dos alunos em saber se a gente estava apoiando ou não, se é de esquerda se é feminista. Depois das ocupações, minhas aulas e as do professor de história foram assistidas pela coordenação da escola e alunos foram questionados sobre o que a gente tem ensinado em sala de aula. A acusação de que a gente controlou os alunos foi feita diretamente para nós pela direção da escola. O professor de filosofia foi denunciado por um aluno para uma página do Facebook. Ele tirou foto da sala e disse que estava sendo obrigado a estudar ‘esquerdismo’ e feminismo e o professor estava discutindo socialismo. Mas já tinha discutido liberalismo, são coisas que fazem parte do currículo, e ele falando em doutrinação. Já existe o medo por parte dos professores em discutir certos assuntos. As religiões afro por exemplo, os professores tem medo de falar a respeito e dar problema com pais evangélicos. E o Escola Sem Partido vem institucionalizar essa tentativa de controle do que está sendo falado em sala de aula, que a gente já vem sentindo forte”. Fernando Penna acrescenta: “Mesmo com os projetos de leis não aprovados, o Escola Sem Partido já esta vigorando. Temos visto que muitos professores já estão deixando de abordar temáticas porque estão com medo de ser processados, muitos já foram demitidos, alguns nem por coisas que disseram em aula mas por seus posicionamentos nas redes sociais. O que esse projeto propõe é uma escola aterrorizada”.

A gente não vai deixar

“Esse projeto não dialoga com o que nós estudantes pensamos e lutamos pela escola pública. Ele é a lei da mordaça, que ameaça a democracia e a liberdade dentro da escola não só dos professores mas também dos estudantes. Não aprovamos e vamos lutar para que ele não seja aprovado. Na escola pública existe uma diversidade gigante, não só diversidade sexual mas de tudo, de cor de pele, de estilo, de tipo de música que escuta, de gênero, tem estudante gay, lésbica, heterossexual, assexuado, que já começou sua vida sexual, que ainda não começou mas que é importante que a gente tenha informações quando começar até pra não entrar pra estatística de gravidez na adolescência que só aumenta – e a escola pública tem um número muito alto de evasão escolar por conta disso. O combate a evasão escolar também passa pela discussão de gênero, por discussões em sala de aula! É preciso debater pra que não se reproduza o machismo e a homofobia dentro das escolas e existe essa perseguição maluca de alguns grupos religiosos. A escola pública parou no tempo. E a gente precisa se movimentar pra não criar novas gerações machistas, lgbtfóbicas. Não vão ser projetos malucos como esses que vão nos impedir de pensar, discutir, debater assuntos importantes em sala de aula. Não é assim que acontece, a gente não vai deixar”, desafia a presidente dada Ubes, Camila Lanes.

Fonte: Agência Púbica

Ilustrações e GIF por Guilherme Peters

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