Por Edna Garcia Maciel, para Desacato.info.
O livro “Nem sempre foi assim: contos dos anos de chumbo”[1] traz textos de ficção de diversos autores catarinenses. Todos eles têm em comum algum fato ocorrido num dos períodos mais sombrios da história brasileira: a ditadura militar de 1964. Indivíduos e grupos sociais são alvos de brutais perseguições militares. Muitos são presos, torturados e mortos em defesa do dogma nazifascista: família, Deus e liberdade. Quase meio século depois, escritores catarinenses se reúnem e recriam com seus personagens, os horrores daquele longo período de exceção terrivelmente autoritário. Com seu conto, “Escola das Américas”, Klueger nos surpreende com um relato em que a personagem principal é uma criança de apenas quatro anos de idade[2]. O tempo não consegue apagar de sua memória lembranças pavorosas. Muitos anos depois, a jovem se depara bruscamente com o algoz de sua infância.
A história tem início numa noite em que a menina está dormindo com sua boneca cor-de-rosa. É bruscamente despertada quando arrebentam a porta da casa. Sua mãe a abraça no quarto escuro e aconchega sua cabecinha ao peito para ela ouvir menos os terríveis ruídos. Mas, sua vida virara de cabeça para baixo. A mãe e o pai são levados às bordoadas por um homem de olho azul e de uniforme. O homem tenta acalmar a menina acarinhando-a em seu peito. Desesperada ela grita sem parar segurando por uma perna a boneca cor-de-rosa. Depois, deixam que ela fique com a mãe. As duas são deixadas num lugar escuro e pequeno ouvindo gritos que atravessam as paredes. Muito tempo depois, quando tiveram que ir também, ainda segurava sua boneca cor-de-rosa.
Quatro anos é demais para uma menina ver aquilo. Nunca vira o pai nu. Ele tinha cortes e queimaduras por todo corpo. Só seus olhos pareciam estar vivos, mas ele pulou no momento em que um homem de uniforme encostou nele um instrumento com um fiozinho. Então, o homem de olho azul pegou-a do colo da mãe e abraçou-a junto ao peito. Tinha um cheiro bom e usava uma roupa engomada. A menina soluça e o homem de farda e olho azul a acaricia em seu colo enquanto outros tiram a roupa de sua mãe. Amarram a mulher e a colocam na mesma posição do seu pai. A menina não consegue se livrar dos braços do homem de farda engomada e já ficara rouca de tanto gritar. Ela não consegue entender todas aquelas maldades. A mãe não para de gritar. Foi então que o homem de farda azul amarrou seus bracinhos nos braços de um cadeirão e tapou sua boca com esparadrapo. Vê o homem de farda e olhos azuis abrir a roupa e tirar um grande órgão sexual. Em seguida, sem deixar de olhá-la, enfia aquela coisa enorme na mãe que berra até perder os sentidos. Somente mais tarde lembra-se que não tem mais a boneca rosa e desmaia. Depois de muito tempo, ela e a mãe saem dali. A mãe parecia muito doente e mal conseguia caminhar. Elas nunca voltaram para casa. Foram para a casa da avó e seu pai nunca retornou. A mãe estava tão doente que depois de algum tempo falece. Dizem para ela que sua mãe estava muito cansada e que precisava de um longo tempo de sono. Ainda hoje, nem a prisão, tortura e sequestro de crianças por forças repressivas conseguem calar a desfaçatez de apologistas ao golpe civil militar de 1964. Afinal, a ideologia nazifascista não é algo do passado. Há mecenas que financiam sites de divulgação neonazistas, segundo Adriana Dias, em entrevista ao The Intercept Brasil[3]. Além disso, manifestações públicas nos tempos atuais alardeiam a superioridade da raça branca, o extermínio de negros, índios, judeus e comunistas, dentre outros. Utilizam símbolos nazistas estampados em camisetas e tatuagens[4]. O neonazismo está se tornando um movimento de massas, conclui a pesquisadora.
A menina fica morando com a vó. Todos são bons com ela. A madrinha lhe dá uma boneca cor-de-rosa. Ela olha para a linda boneca, para o avô e com a cabeça sobre a mesa chora inconsolável. Nunca mais quis uma boneca e nem conseguiu olhar para algo cor-de-rosa sem sentir pavor, pois apareciam aqueles olhos azuis sedutores. Aos poucos o tempo amortece aqueles horrores. A moça faz vestibular e se forma em direito. Torna-se uma advogada de sucesso. Num dia perfeito de sol quando passeava no calçadão à beira-mar, tem uma visão. Algo como um imã atrai seu olhar para um homem que vem correndo pelo calçadão. Fica paralisada. É um belo homem de bermuda branca, bronzeado, cabelos prateados cortados rentes e sorridente, com aqueles olhos azuis nunca esquecidos. A moça se afasta para a beira da rua e não sabe como não se pôs a gritar de novo. Acha que vai desfalecer, contudo, não pode. Quem seria ele? De onde tinha vindo? Todo o horror infantil toma seu corpo. Mas, ela consegue forças e corre atrás do homem até vê-lo entrar num prédio de luxo. Seu medo se transforma em raiva.
Sua aproximação se dá programada e calmamente. Ela levanta dados. Vê que aqueles bordados nos ombros do uniforme tinham virado estrelas. O homem é um autêntico general. Afinal, haviam se passado trinta anos. Passa a correr na paria no mesmo horário do homem para investigar tudo que pudesse. Então, ela o seduz de maneira lenta e gradual. O general de olho azul acaba se apaixonando por aquela mulher linda e elegante. Não sabia mais o que fazer para tê-la de vez. Frequentam restaurantes, degustam comidas sofisticadas em lugares fascinantes e dançam salsa. O general lhe conta que aprendera a dançar salsa em um país caribenho, onde fizera um curso de dança. Naquele dia, tem vontade de esganá-lo com as mãos. Mas, pensa que fora na “Escola das Américas” que ele aprendera a fazer o que fazia.
Depois de algum tempo, ele não consegue mais esperar. Ela acha que está na hora também. A mulher do general estava na Disney com seus netinhos. O encontro seria na suíte de luxo do apartamento de luxo, onde ele mora A moça impõe uma condição: que ele vestisse sua farda de gala com todas condecorações. Deseja vê-lo vestido de general. A voz rouca dela era muito mais aliciante do que os olhos azuis dele. Ele estremecia antecipadamente de prazer. Não havia como vencer a moça antes da hora. Foi para casa lustrar as medalhas e botões como no tempo de recruta em que lhe ensinaram a arte de polir. Seu sangue ferve de ansiedade. Ela chega na hora combinada. Ele de general de cabo a rabo prestando continência como humilde sargento. Ela o faz permanecer de continência, com os olhos fechados enquanto se ajoelha, abre sua farda e solta o pássaro pulsante louco para alçar voo… o final é surpreendente. É um texto forte de indignação diante de genocidas sociais[5].
[1] KLUEGER, Urda Alice. Escola das Américas In: Nem sempre foi assim: contos dos anos de chumbo. Organizado por Francisco José Pereira. Florianópolis, Editora Garapuvu, 2007. p. 81-87.
[2] Fotos: https://www.google.com/search?q=fotos+de+crian%C3%A7as+ditadura+de+64&tbm=Acesso: 27, setembro, de 2021.
[3] DEMORI, Leandro. Pesquisadora encontra carta de Bolsonaro em sites de 2004. Entrevista concedida ao The Intercept Brasil, 28 de julho de 2021. Adriana Dias é pesquisadora convidada da Fiocruz. Há 20 anos investiga o neonazismo em sites nacionais e estrangeiros. “Agora, tornamos público o fato de que neonazistas brasileiros apoiam Jair desde, pelo menos, 2004. Que não se trate isso mais como especulação, coincidência ou provocação. A base do bolsonarismo é nazista. E sabemos onde pode haver provas que confirmem a ligação do presidente com a ideologia de Hitler: basta que a Câmara dos Deputados abra arquivos e processos em andamento”. Disponível em: https://theintercept.com/2021/07/28/carta-bolsonaro-neonazismo/. Acesso em 29, setembro, 2021.
[4] O uso de símbolos nazistas é crime no Brasil. O artigo 20, § 1º, da Lei 7.716/89, alterada pela Lei 9.459/97, fala que “fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo”, tem pena de reclusão de um a três anos e multa. Disponível em: https://g1.globo.com/pe/caruaru-regiao/noticia/2021/06/17/jovem-e-expulso-de-shopping-em-caruaru-por-usar-suastica. Acesso: 30, setembro, 2021.
[5] EMORI, Lendro. Há pouco tempo, vários membros do governo receberam a deputada alemã Beatrix von Storch, do partido de extrema direita Alternativa para a Alemanha (AfD), neta do ministro das Finanças de Hitler, o homem que liderou os confiscos dos bens dos judeus enviados para os campos de concentração e extermínio, durante a ditadura do Partido Nazista. Bolsonaro já elogiou as qualidades de Hitler, já tirou foto com sósia de Hitler, já disse que o holocausto poderia ser perdoado. Seu ex-secretário especial da Cultura reproduziu, no início de 2020, em discurso, falas, ambientação e postura, um vídeo copiando o político nazista Joseph Goebbels. Seu assessor especial, Filipe Martins, é réu por fazer um gesto de white power em uma sessão do Senado. Disponível em: https://theintercept.com/2021/07/28/carta-bolsonaro-neonazismo/ Acesso: 29, setembro, 2021.
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