Por Jair de Souza, para Desacato.info.
Sim, eu estou com a consciência pesada por não ter cumprido a contento um dever fundamental. Mas, não creio que eu seja o único que esteja nesta situação. Todos nós que nos consideramos democratas e progressistas e com um nível de escolaridade acima da média nacional poderíamos ter feito muito mais para ajudar a nosso povo sofrido a não servir como carne de canhão para um projeto político que visa submetê-lo a um estado de espoliação e penúria ainda mais cruel do que o que ele já padece.
Em meu entender, nossa principal falha foi a de, na prática, não ter sabido alertar de modo compreensível a um grande número de gente trabalhadora humilde dos perigos e ameaças a que estavam expostos neste processo de luta. Nossas noções e conhecimentos formais de história e sociologia deveriam ter-nos servido para armar com mais consciência a nosso povo.
Como pode acontecer que existam tantas pessoas negras votando em Bolsonaro, apesar de todas as evidências de que Bolsonaro considera que os negros são uma “raça” inferior? Não foi ele quem disse abertamente que educou muito bem a seus filhos para que eles jamais cometessem a besteira de se relacionar afetivamente com negros? Será que isto é uma mentira (a tal de “fake news”) que está sendo inventada agora só para tentar prejudicar o candidato? Será que nós (eu, em primeiro lugar) não temos culpa por não ter feito uso há muito mais tempo das inúmeras declarações de racismo contra os negros proferidas pelo capitão Bolsonaro nos últimos anos? Seria difícil encontrar vídeos, áudios ou reportagens na grande imprensa com vários exemplos de suas expressões racistas contra os negros? Só por curiosidade, fiz um pequeno teste no Youtube e me deparei com enorme quantidade de vídeos em que o capitão aparece em pessoa exercendo esse seu “hobby”. Mas, quanta gente negra nunca soube disto? Culpa nossa!
+ Por que Bolsonaro não vai participar dos debates de segundo turno?
Também vimos muitas mulheres votando em Bolsonaro. Como podemos aceitar que uma mulher do povo, a quem ele considera um ser incapaz de exercer um papel social ao mesmo nível que os homens, dê um voto a quem a vilipendia e despreza? Logicamente que essa mulher do povo não pode ser considerada culpada. Ela tem contra si todo o aparelho de desinformação montado para aliená-la, além da enorme carga de trabalho (dentro e fora do lar) que torna sua possibilidade de compreensão do significado da candidatura Bolsonaro muito mais difícil. E, lamentavelmente, nós fizemos muito pouco para ajudá-la a encontrar a luz que a tirasse das trevas. Nem falo das mulheres de classe média, que por dispor de mais recursos, conhecem melhor o que de ruim Bolsonaro significa para elas. Falo, sim, daqueles milhares, ou milhões, de mulheres que precisam trabalhar como empregadas domésticas, faxineiras, agentes de serviços gerais, etc. Por que demoramos tanto para trazer a público os fatos comprovados e gravados de que Bolsonaro foi o deputado que se dedicou com mais vigor a derrotar as leis que garantiam direitos trabalhistas a elas? Culpa nossa de novo!
E quanto aos trabalhadores em geral? Dá para aceitar como normal o fato de Bolsonaro ter tido votações expressivas em regiões de eleitores marcadamente da classe trabalhadora?
Não nos espanta nada saber que Bolsonaro foi disparadamente o mais votado em bairros da elite econômica paulistana, como nos Jardins, por exemplo, ou também na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. Lá, a gente entende, os eleitores estavam votando coerentemente de acordo com seus interesses: Bolsonaro tem projeto para favorecer os mais ricos, então, nada mais natural que os ricos votem nele.
Porém, como engolir tranquilo a constatação de que Bolsonaro tenha obtido tantos votos do povo trabalhador, apesar de há 28 anos vir se destacando no parlamento como um campeão das votações contra os interesses da classe trabalhadora? Sabemos que seu plano de governo não prevê absolutamente nada de bom para os trabalhadores e que só aponta para a retirada de direitos conquistados no passado visando o favorecimento dos patrões. Por que não saímos todos nós com firmeza a mostrar para esses trabalhadores tudo de nefasto que o projeto Bolsonaro reserva para eles? Não podemos deixar de reconhecer que também falhamos aí!
Outra coisa que me chocou foi ver votantes de Bolsonaro (os de classe média) comparecer às urnas vestindo a camiseta do Brasil para dar a entender que eles são nacionalistas. Por que a gente não deixou claro a todos que é impossível ser nacionalista e apoiar a entrega de nossas riquezas aos gringos, que é impossível ser nacionalista e concordar que o pré-sal seja dado a Esso, a Shell e a outras petroleiras estrangeiras? Por que a gente permitiu que, a pretexto de combater à corrupção, quase toda a infraestrutura de engenharia de base do país fosse destruída, para benefício total de nossos concorrentes gringos? Não conseguimos evitar isto, infelizmente!
Como nos conformar com a realidade de que grandes contingentes de eleitores evangélicos tenham aceitado as orientações de “pastores” picaretas que usam o nome de Jesus Cristo para conduzir os fieis às práticas mais anticristãs imagináveis? Por que os cristãos progressistas não conseguiram mostrar a esses fiéis que os exemplos de vida de Jesus Cristo nunca permitiriam que alguém como Bolsonaro pudesse ser seu escolhido? Embora não seja fácil furar o bloqueio imposto pelos mercadores da fé que controlam boa parte das igrejas, poderíamos ter evitado que o mal atingisse tão elevada proporção.
Diante deste panorama de fracassos nossos no primeiro turno, temos de assumir o compromisso de lutar para reverter grande parte dos votos que nunca poderiam ter ido para Bolsonaro. A meu modo de ver, uma das maneiras de alcançar este objetivo é com a correção das falhas que procurei expor acima. A tarefa não vai ser fácil, é verdade, mas, quem alguma vez achou que construir uma pátria mais justa, solidária e soberana fosse algo fácil?