Paul Johnson, apesar de hoje em dia assumidamente ser um historiador católico da linha conservadora, prima pela honestidade intelectual em relação às suas obras – pelo menos é assim na História do Cristianismo. Nesse trabalho, jamais se mostra constrangido em revelar os artifícios, muitas vezes imorais, dos clérigos, monges, prelados, etc. para a manutenção do poder ao longo do tempo, bem como da degenerescência da Igreja na época das Reformas.
É justamente neste período que ele nos dá um panorama das relações entre os eruditos e a Igreja Católica, através do relato da vida de Erasmo de Roterdã, a começar com a sua visita a um santuário em Cantuária, ao lado de John Colet, reitor da Escola de S.Paulo.
Uma sociedade em plena mudança
Após a visita, Erasmo mais tarde relataria que as riquezas que viu nos adornos do santuário o deixaria profundamente chocado. Para se ter uma ideia, trinta anos depois, o rei inglês Henrique VIII, na esteira da sua reforma, mandaria arrancar dali 140 quilos de ouro, 300 quilos de prata e 26 carroças de outros tesouros.
Na época dessa visita, já estava bem claro que a sociedade europeia estava vivendo uma fase de profundas mudanças. A “sociedade total”, sob o domínio da Igreja, começava a se abrir em diversos domínios, como o político, o cultural e o religioso.
Essas mudanças proporcionaram o surgimento de eruditos que passaram a questionar a validade de documentos antigos, através de novos métodos de avaliação crítica. Foi assim, por exemplo, que por volta de 1450, o secretário do Papa Nicolau V provou que a Doação de Constantino e muitos outros textos fundamentais não passavam de flagrantes falsificações feitas pela Igreja Católica.
Esse movimento estava bem de acordo com o espírito das Reformas, com a ignorância identificada com o pecado, coincidindo praticamente com a difusão da imprensa na Europa, quando as obras de filósofos gregos e outras de grande interesse para a reforma passaram a circular de forma ampla e barata, gerando um grande problema para a Igreja Católica.
Erasmo de Roterdã
Erasmo nasceu nesse ambiente de disputas entre a Igreja e a Reforma, em 1466, e sua origem era o exemplo perfeito dos tempos antigos: filho bastardo de um padre e uma lavadeira, um testemunho vivo da incapacidade da Igreja em lidar com o concubinato de seus membros. Assim como hoje os clérigos do Vaticano condenam publicamente o homossexualismo e a praticam por debaixo dos panos, muitos padres naquela época tinham a aura de castos, embora repletos de filhos bastardos espalhados pelas comarcas.
A essas crianças só cabia entrarem para a Igreja, mesmo de má vontade ou sem qualquer entusiasmo religioso, por serem uma espécie de subclasse canhestra e cheias de rancor pelas classes privilegiadas, das quais seus pais eram membros. Erasmo era um caso desses.
Com uma educação precária na infância, teve a sorte de se tornar secretário de um bispo, que o enviou para a Universidade de Paris. E aqui cabe um registro: apesar de já estarmos numa época de novas perspectivas de erudição, de pesquisas e de ensino, a Universidade ainda era uma instituição plenamente “medieval”. A faculdade de Montaigu, por exemplo, era conhecida pelos parisienses como “O sulco entre as nádegas da Mãe Teologia”, porque seus recintos eram úmidos, antigos e asquerosos; a comida era nojenta, os dormitórios fediam a urina e os açoitamentos frequentes. Erasmo já tinha 26 anos de idade, e odiava o lugar. Outro aluno ilustre da mesma faculdade, João Calvino, por outro lado, a adorava, por conta de sua “austeridade”. Esse conflito de opiniões é a síntese de duas das mais importantes clivagens do século XVI: o humanismo e o puritanismo reformista.
Os inacreditáveis debates universitários da época
As Universidades estavam tão alheias aos acontecimentos de sua época, que na de Louvain, onde Erasmo passou um tempo, os professores e estudantes debatiam, em 1493, os seguintes tópicos:
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orações de quatro ou cinco minutos em dias consecutivos teriam melhores chances de ser atendidas que uma oração de vinte minutos?
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Uma oração de dez minutos, dita em benefício de dez pessoas, teria a mesma eficácia de dez orações de um minuto?
Esse debate se prolongou por oito semanas (!), mais tempo do que Colombo levara para chegar na América, no ano anterior!
A igreja considera Erasmo, é claro, “líder dos hereges”
Durante quatro décadas até a sua morte, em 1536, a produção de Erasmo cobriu uma imensa área, abrangendo a vida cristã, a teoria e a prática da Educação, tornando-se um elevado erudito de padrões acadêmicos. Era um best-seller mundial vivo, e recebia tantas cartas que o funcionário do correio passava primeiro na sua casa antes da prefeitura, quando vivia em Antuérpia.
Se tivesse proposto seus pontos de vista um pouco mais tarde, teria sido perseguido pelos Habsburgos e excomungado pelo papa. Em 1546, apenas dez anos após sua morte, o Concílio de Trento declarou a sua famosa versão do Novo Testamento um “anátema”, e em uma sessão posterior, o Papa Paulo IV denominou Erasmo o “líder de todos os hereges”, ordenando a queima de suas obras completas.
Por essas e outras que a Igreja Católica foi e continua sendo o bastião de todo o obscurantismo e ignorância. Se não fosse por reformadores como Erasmo de Roterdã e outros que, antes e depois dele, com coragem, enfrentaram a autoridade da Igreja Católica, que tipo de sociedade medieval teríamos até hoje em dia?
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JOHNSON, Paul. A História do Cristianismo. Ed Imago, Rio de Janeiro: 2001. pp. 321-327.
http://www.historiadomundo.com.br/idade-antiga/a-doacao-de-constantino.htm
http://www.infoescola.com/biografias/erasmo-de-roterda/
Fonte: Panorâmica Social.