“Era Chávez” mudou a Venezuela

Por Breno Altman e Marina Terra.

A mais de mil metros de altitude, na costa venezuelana do Caribe, uma cidade brota do zero. Ocupa uma área de 1,2 mil hectares, no estado de Vargas, encravada entre Caracas, a capital, e o principal aeroporto do país. O loteamento foi planejado para ser uma das grandes vitrines do governo de Hugo Chávez Frias, presidente da República desde fevereiro de 1999.

O projeto leva o nome em espanhol de Ciudad Caribia. Sob responsabilidade de uma empresa mista cubano-venezuelana, a Construtora Alba Bolivariana, a empreitada já abriga quase sete mil pessoas em 1,1 mil apartamentos. Quando estiver concluída, em 2018, será uma urbanização com mais de 20 mil unidades habitacionais, moradias de 100 mil venezuelanos.

Apenas gente muito pobre já recebeu e continuará recebendo o direito de propriedade sobre esses apartamentos com 72 metros quadrados, distribuídos em três quartos, dois banheiros, área de serviço, sala de jantar, de estar e cozinha. Totalmente mobiliados e equipados.

Mas não é apenas um conjunto residencial. Abriga escolas, parques infantis, creches, biblioteca, delegacia, radio comunitária, clube esportivo, centro comercial, áreas para reuniões e eventos. Não podem circular automóveis em seu interior. A mobilidade será garantida por um sistema de transporte público que prevê até teleférico para levar seus moradores à costa e à capital.

O condomínio público é dirigido por conselhos comunais eleitos, que têm poder até para criar empresas comerciais e industriais. Um dos projetos que já está de pé é a coleta de lixo e sua reciclagem. O funcionamento obedece a um modelo de autogestão, que conta com apoio do governo nacional e subverte o tradicional verticalismo estatal.

“Ouço muita gente dizer que Ciudad Caribia não existe, que é mais uma mentira do governo”, relata Carlos Marques, 45 anos, do primeiro grupo de famílias a chegar e porta-voz de um dos quatro conselhos comunais. “Somos parte de uma experiência. Não sou chavista, daqueles que acatam tudo o que fala o presidente, mas votarei nele em outubro. Ele mudou a minha vida.”

Essa sensação redentora, aparentemente generalizada entre os mais pobres, tem sua contrapartida na rejeição por vezes furiosa dos mais abastados. Quando Chávez foi eleito a primeira vez, imaginava-se que ele seria um revolucionário na política e um suave reformador na economia. Parte do empresariado chegou mesmo a apoiá-lo, porque o sistema carcomido da chamada IV República (1958-1999) havia se tornado uma chaga insuportável. Tão corrupta que atrapalhava até os negócios.

O mecanismo que imperava era um duopólio de poder, repartido entre a Ação Democrática (AD), de centro-esquerda, e o Comitê de Organização Político Eleitoral Independente (COPEI), social-cristão, de centro-direita. Depois da queda do ditador Perez Jimenez, em 1958, essas duas agremiações fizeram um acordo (conhecido como Pacto de Punto Fijo, nome da localidade na qual foi assinado) e criaram regras implacáveis para quem quisesse atrapalhar a festa. Durante quarenta anos ficaram por cima da carne seca.

Petróleo

No caso venezuelano, a roda da fortuna é girada pelo petróleo. O país é o quinto maior exportador e possui as maiores reservas comprovadas. Até 1976, a exploração era privada e controlada principalmente por empresas norte-americanas. Os empresários locais acumulavam riquezas como sócios menores ou prestadores de serviço de grandes companhias.

No reino do capitalismo predatório, a Venezuela usava os dividendos do óleo da pedra para importar quase tudo o que consumia e tinha baixíssimo padrão de desenvolvimento industrial ou agrícola. Os que tinham acesso aos negócios com o ouro negro, viviam como nababos. A maioria da população, sem emprego fixo ou renda estável, amontoava-se nas cidades e vivia de trabalhos precários.

A elite política também se refastelava. Os dois partidos, que se alternavam no governo, viviam das gordas comissões que eram pagas pelas licenças de exploração e outras concessões públicas. De alto a baixo, o país foi sendo enlaçado por um dos maiores propinodutos do planeta.

A alta dos preços petroleiros, a partir da crise mundial de 1973, inspirou o presidente Carlos Andrés Perez, da AD, a passar essa atividade para direção estatal e a criar, em 1976, a PDVSA – Petróleos de Venezuela SA. Sem atrapalhar os interesses multinacionais, pois as atividades de refino e comércio internacional continuavam em mãos privadas, o novo paradigma alimentou a roubalheira, apresentando como álibi um nacionalismo de fancaria.

Os ganhos com os hidrocarbonetos, geridos diretamente pelos políticos de Punto Fijo, engordaram uma plutocracia paraestatal beneficiada por contratos dos mais diversos tipos com a PDVSA. Esses barões do petróleo fortaleceram suas posições como banqueiros, controladores de cadeias televisivas, proprietários de companhias importadoras, entre outros ramos de baixo risco. O fato é que o estamento político fundiu-se de vez com os donos do dinheiro.

Durante os dez anos de bonança, nacos de felicidade chegavam ao andar de baixo. Afinal, mesmo com as bolsos cheios, políticos precisam de votos e isso demanda agradar a clientela. A Venezuela petroleira era um país saudita, mas em regime de democracia eleitoral.

Quando a cotação do petróleo despencou, a partir dos anos 80, o modelo foi à bancarrota. A inflação deu um pinote de 7,4% anuais em 1978 para 103% em 1996. Os juros da dívida passaram a representar 30% do orçamento nacional. O PIB per capita, descontada a inflação, caiu quase 19% entre 1978 e 1998. No mesmo período, o salário real perdeu 48% de seu valor, provocando uma queda de 25% no consumo familiar, enquanto o desemprego pulou de 4,3% para 14,5%.

A ruína, porém, não foi para todos. O setor privado, antes vivendo à tripa forra graças a escalada da renda petroleira, passou a compensar eventuais perdas com ganhos financeiros auferidos através dos juros que o Estado passou a oferecer para colocar no mercado títulos da dívida pública. A prova dessa fartura está nos mais de US$ 30 bilhões de dólares enviados para o exterior entre 1984 e 1998, quando o país sucumbia.

A transferência acelerada de recursos públicos para os grupos empresariais, nos governos pré-Chavez, foi acompanhada por uma das versões mais radicais do programa de ajustes recomendado pelo FMI (Fundo Monetário Internacional): reajuste das tarifas de serviços públicos, corte das verbas sociais, privatização de empresas estatais.

O fato é que, quando o atual presidente começou sua gestão, tinha diante de si um país com a economia quebrada e a sociedade esgarçada. Dez por cento da população de então, 23 milhões, estavam incluídos na pátria do petróleo e das finanças. Os demais 90% assistiam seu padrão de vida despencar, corroído pelo desemprego, o arrocho salarial e a eliminação de direitos. A maioria dessa gente deu a Chávez seu aval para enterrar a IV República e iniciar um impetuoso processo de mudanças.

Início

O primeiro passo do novo regime, denominado V República a partir da Constituição de 1999, foi explodir o sistema político que havia herdado. Amparado por maioria parlamentar, os partidários de Chávez puderam adotar uma série de mecanismos plebiscitários e de participação política que detonaram o controle institucional antes exercido pelo bipartidarismo. As forças derrotadas pelo chavismo perderam hegemonia sobre a assembléia nacional, o poder judiciário e as forças armadas.

As novas regras do jogo permitiam que consultas impositivas, através de referendos, fossem convocadas pelo presidente, o parlamento ou até por iniciativas populares com um mínimo de apoio. Mandatos legislativos ou administrativos poderiam ser revogados por voto popular. Leis poderiam ser aprovadas a despeito do parlamento, se fossem chanceladas pelas urnas.

Essa ofensiva política enfraqueceu os setores mais conservadores. No final de 2001, Chávez sente-se forte para deslanchar suas primeiras reformas estruturais na economia. As principais foram a Lei de Terras (que fixou os parâmetros de reforma agrária) e dos Hidrocarbonetos (que aumentou impostos sobre as companhias privadas e o controle governamental sobre a atividade petroleira).

A reação da oposição e dos grandes grupos econômicos foi imediata, convocando às ruas a classe média e açulando os militares para que se rebelassem contra o governo. Aproveitando-se de seu amplo domínio sobre os meios de comunicação, esses círculos criaram um clima de caos e lançaram-se na empreitada do golpe de Estado, em abril de 2002. A aventura durou menos de 48 horas. Militares legalistas, impulsionados por centenas de milhares que se manifestavam nas ruas, restituíram a Chavez o mandato constitucional.

Nova intentona viria a ocorrer no final de 2002, dessa vez através de uma greve patronal que paralisaria a economia do país, centrada na PDVSA, ainda controlada por diretores e gerentes que se recusavam a obedecer ao governo. Novamente o presidente venceu a queda de braço, após uma batalha de 60 dias. Na seqüência do golpe de abril, tinha desbaratado os grupos adversários dentro das forças armadas. Derrotada a paralisação petroleira, Chávez finalmente conseguiu colocar a estatal sob seu comando, ainda que às custas da demissão de 32 mil funcionários que aderiram ao locaute.

A oposição ainda teve energias para convocar, em 2004, um referendo revogatório, para destituir o presidente pela via constitucional. Aliás, na Venezuela de Chávez, tisnado por seus inimigos como déspota, a assinatura de 20% dos eleitores pode levar a um plebiscito para demitir o chefe de Estado. Apesar de ter conseguido essa subscrição mínima, os oposicionistas foram batidos na consulta popular. O presidente manteve seu mandato e foi reeleito, em 2006, com mais de 60% dos votos.

Teste para Chávez

Essa gestão se encerra em janeiro de 2013. Terá sido a terceira do líder bolivariano (a primeira durou apenas um ano e meio, entre 1999-2000, encerrada após a promulgação da nova Constituição). Depois de cinco anos nos quais sua principal preocupação foi levar a cabo uma revolução política que afastasse as velhas elites do poder e derrotasse suas empreitadas anticonstitucionais, Chávez dedicou os últimos seis anos à construção de um novo projeto econômico-social, que em outubro será julgado nas urnas.

O presidente abriu várias frentes. Sua primeira invenção foram as missões sociais, destinadas a enfrentar principalmente as carências na saúde e na educação. Ao mesmo tempo, acelerou um amplo processo de nacionalizações, a começar pela ramo petroleiro, mas atingindo também outras áreas estratégicas como sistema financeiro, siderurgia e comunicações, às vezes resvalando para segmentos menos importantes como a distribuição varejista e serviços. Parte dos lucros da PDVSA, do aumento dos impostos e da dívida pública foi destinada a pagar pela aquisição dessas companhias.

A estratégia chavista, desde 2006 batizada de “socialismo do século XXI”, tem como centro um Estado forte, provedor de direitos e regulador da economia, com expressiva participação direta na propriedade dos meios de produção. Não está no horizonte a eliminação dos capitalistas, como ocorreu em outras experiências socialistas. Seus oponentes, por sinal, costumam criticá-lo por ter criado uma “boliburguesia”, empresários atrelados ao governo e ao projeto bolivariano. De toda forma, não há dúvidas que, ao nadar contra a corrente das idéias liberais triunfantes após o colapso da União Soviética, Chávez despertou a atenção mundial para seu país.

Esse destaque atualmente é movido mais pela polarização político-ideológica com os Estados Unidos e demais potências ocidentais, além dos conflitos com a oposição interna. Defensor da integração latino-americana e de uma geopolítica sem o predomínio exercido pela Casa Branca, o presidente venezuelano virou ator importante no cenário internacional. A recente filiação de seu país ao Mercosul, celebrada dia 31 de julho, ressalta esse protagonismo.

Mas a Venezuela de Chávez merece ser investigada para além da batalha de ideias. Os resultados desses quase 14 anos não são desprezíveis. Apesar dos problemas, como as dificuldades para diversificar a indústria e a alta criminalidade nas grandes cidades, o país realizou feitos notáveis. Não é pouca coisa ter sido declarada nação livre do analfabetismo pela UNESCO. Ou ser o país sul-americano com a melhor distribuição de renda, segundo o índice Gini. Ou apresentar o maior salário mínimo da região, conforme dados da OIT (Organização Internacional do Trabalho). Ou comemorar o mais acelerado padrão de crescimento do IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) no continente durante a última década, fato informado por relatório recente das Nações Unidas.

A pátria fundada por Simón Bolívar passou a jorrar mais do que petróleo. Suas experiências e mudanças, goste-se ou não, são assuntos relevantes para quem quiser discutir com seriedade os desafios contemporâneos.

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