Em maio de 2007, quatro meses depois se ter tornado presidente do Equador e quando ninguém esperava, Rafael Correa anuncia a criação de uma Comissão da Verdade. O objectivo? “Inquirir, esclarecer e impedir a impunidade nos feitos violentos e nas violações dos direitos humanos atribuídos a agentes do Estado”, particularmente no período 1984-1988, durante o governo de León Febres Cordero. A maior parte dos equatorianos recordava-se com dor destes anos tenebrosos. No plano internacional, a criação da comissão recebeu pouca atenção. Mas no plano interno do país, a direita e os sectores próximos dos organismos de segurança protestaram: pela primeira vez, a política da amnésia encontrava-se ameaçada.
Febres Cordero governou o Equador com mão de ferro e revolver à cintura, como se se encontrasse numa das numerosas haciendas de que era proprietário. Encorajado pelo seu grande amigo, o presidente americano Ronald Reagan, ele impõe o programa neoliberal que o Fundo Monetário Internacional (FMI) lhe sugeria desde a sua chegada ao governo. Consciente da possibilidade de uma reacção popular, aproveitou-se do pretexto da emergência de guerrilhas (pouco poderosas) no país para lançar os serviços de segurança numa escalada repressiva sem precedente. Toda pessoa ou organização cujas acções pudessem ser vagamente assimiladas às de oponentes políticos eram visadas, na linha da estratégia de guerra contra “o inimigo interno” ditada pela Doutrina da Segurança Nacional americana nos anos 1960. No Equador, evoca-se muito rapidamente a receita dos três “B”: bilhetes (de dinheiro) para os amigos; bastões para os indecisos; balas para os inimigos.
Após três anos de inquéritos, a 7 de Maio de 2010 a Comissão entregou seu relatório ao Presidente Correa [1] . Ali se encontrava o registo de 831 violações dos direitos humanos tendo afectado 456 vítimas, assim como os nomes dos principais oficiais responsáveis de torturas, de violações, de execuções extra-judiciais, de desaparecimentos e de assassinatos. Ainda que estas práticas tenham prosseguido nos governos seguintes, 70% dos crimes mencionados foram cometidos durante o mandato de Febres Cordero.
O relatório “revela” um segredo de polichinelo: no decorrer deste período, um grupo clandestino foi encarregado das “tarefas sujas”. Ele estava instalado no próprio seio do Serviço de Investigação Criminal, a polícia secreta, e usava o nome de SIC-10. Até então, a sua existência sempre fora negada pelos serviços de segurança e pelos responsáveis políticos de direita. A sra. Elsie Monge, presidente da Comissão Ecuménica dos Direitos Humanos (CEDHU) e à testa da Comissão da Verdade, entretanto declarou: “Ainda que alguns neguem a existência desta entidade, a realidade demonstra que ela semeou o terror por toda parte. Era o sistema mais repressivo que já se conhecera”. [2]
Em nome do Estado, o presidente Correa pediu perdão ao conjunto das vítimas. Quase três anos mais tarde, em Fevereiro de 2013, enquanto muitos duvidavam que os responsáveis fossem um dia punidos, o procurador-geral Galo Chiriboa ordenou a apreensão de cerca de 150 mil páginas conservadas nas caves da Polícia Judiciária. Depois, a 5 de Junho, ele anunciou publicamente: “Temos os nomes dos membros originais do SIC-10”. Ele prometia além disso que as pessoas implicadas em 136 casos de violações dos direitos humanos, além de 456 assassinatos políticos, seriam acusadas.
Graças ao testemunho isolado das vítimas – inclusive a do autor deste artigo [3] – soube-se que, desde 1985, existia um aparelho clandestino de repressão e que ele funcionava em coordenação com as forças armadas e as forças de política, assim como com a Interpol e numerosos governos estrangeiros (Colômbia, Chile, Peru, Costa Rica, Estados Unidos e Espanha). Tratava-se portanto de uma cópia do que havia sido o Plano Condor instaurado no Cone Sul do continente e dirigido pelo general chileno Augusto Pinochet com o apoio de Washington. Contudo, até então, nenhuma autoridade equatoriana havia efectuado o inquérito.
As investigações conduzidas pelo jornalista Rolando Panchana, no fim dos anos 1990, confirmaram uma parte destas informações. Elas permitiram concluir que o SIC-10 fora criado expressamente por ordem do presidente Febres Cordero e que ele dependia directamente do ministro do Interior da época, Luis Robles Plaza.
Ainda que a Comissão da Verdade não tenha tido acesso a uma boa parte dos arquivos dos serviços de segurança e que nem todos os oficiais implicados tenham aceite exprimir-se sobre o assunto, os resultados obtidos confirmam o que alguns se obstinavam em negar. Mas se as declarações do procurador-geral puseram fim à negação, a maior parte dos media equatorianos contentou-se com uma informação superficial.
O procurador-geral teve de reconhecer que seus pedidos de explicações às altas esferas da polícia nacional não tiveram resultado: “A resposta foi o silêncio e no caso do SIC-10 o silêncio e a negação dos factos”. [4]
Alguns membros do SIC-10 estão mortos. Os principais responsáveis políticos igualmente: Febres Cordero e Robles Plaza. Numerosos deles estão na reforma, inclusive os principais chefes das operações, mas continuam a dispor do apoio político da direita e de sectores das forças armadas e dos serviços de polícia, pois conseguiram ascender nos escalões das suas hierarquias. Por exemplo, Byron Paredes foi nomeado coronel (e aprisionado por tráfico de droga); Fausto Flores é doravante coronel e chefe da luta contra o tráfico de droga numa província do Equador; Enrique Amado Ojeda, chefe do SIC-10 na província de Pichincha, atingiu a patente de general da polícia; Mario Pazmiño foi nomeado director das informações do Exército, até a sua demissão pelo presidente Correa, nomeadamente devido à sua proximidade com a CIA [5] .
A Comissão da Verdade mostra claramente que o SIC-10 fora montado “no estilo paramilitar israelense” (montado para combater a resistência palestina). Um antigo membro do SIC-10 conta igualmente que antigos oficiais da Mossad haviam ensinado certas técnicas de tortura aos oficiais equatorianos: “Estes cursos de treino transformaram o pessoal em máquina para exterminar as pessoas”. E ainda: “A crueldade [dos israelenses] havia atingido um tal ponto que, para os exercícios práticos, utilizavam como cobaias seres humanos que haviam sido presos, (…) ordenavam-nos criar pequenos animais domésticos (cães) e, depois de alguns meses, obrigavam-nos a matá-los, como prova de lealdade; era preciso abrir-lhes o estômago com um punhal e extrair-lhes do seu corpo não importa que órgão com a nossa boca. (…) Utilizavam-se também silhuetas de madeira ou de papelão portando os nomes das nossas mães e devíamos atirar-lhes em cima”. [6]
De agora em diante a bola encontra-se no campo dos tribunais. Aquando da entrega do relatório da Comissão da Verdade, o presidente Correa afirmou: “Os actos violentos são imprescritíveis e não são susceptíveis de serem objecto de reduções de pena nem de amnistias, para construir uma sociedade cuja bandeira de luta contra a impunidade permitirá ao Equador ser um território de paz. [7]
[*] Auteur de Tais-toi et respire. Torture, prison et bras d’honneur , Bruno Leprince Editions, Paris, Março/2013.
O original encontra-se em http://blog.mondediplo.net/
Notas
[1] “Sin verdad, no hay justicia”, Rapport de la Commission de la vérité, Quito, mai 2010.
[2] Elsie Monge, ” En archivos de policia judicial consta listado de integrantes del SIC-10 “, Quito, 07 juin 2013.
[3] Ler seu testemunho: Tais-toi et respire. Torture, prison et bras d’honneur, Bruno Leprince Editions, Paris, mars 2013.
[4] ” Respuesta policial ha sido el silencio en el caso SIC-10 “, El Telégrafo, Quito, 13 juin 2013.
[5] ” Pazmiño, uno de los “cercanos” a LFC, CIA y DAS “, El Telégrafo, Quito, 8 juin 2012.
[6] Hugo España Torres, El testigo, Ediciones Abya-Yala, Quito, 1996.
[7] ” Crímenes de lesa humanidad son imprescriptibles, advierte el Gobierno “, ANDES, Quito, 08 mai 2010. 25/Junho/2013
Fonte: http://hcalvospina.free.fr/spip.php?article450
Foto: http://careitv.blogspot.com.br/2010/07/comision-de-la-verdad-entrego-informe.html